domingo, 4 de setembro de 2016

OS SAPATOS VERMELHOS - CONTOS DE ANDERSEN

    Era uma vez uma meninazinha - uma menina muito linda, muito delicada. No verão ela andava descalça, porque era muito pobre. No inverno usava uns sapatos de pau, grosseiros e pesados, de modo que o peito do pé ficou todo vermelho, bem vermelho.
   No centro da aldeia morava a mulher do velho sapateiro, uma senhora já muito idosa; ela se pôs a coser, e fez um par de sapatinhos, de umas tiras de pano vermelho. Esmerou-se e fez o melhor que pode, mas os sapatos eram muito esquisitos. Contudo, foram feitos com boa intenção, e ela os deu a Karen.
    A boa mulher deu-lhe os sapatos, e ela teve de calça-los, pela primeira vez, mesmo no dia em que sua mãe foi sepultada. Certamente não eram próprios para o luto; mas a menina não tinha outros, por isso meteu neles os pezinhos nus e foi seguindo atrás do pobre esquife de pinho.
   Aconteceu que passou uma grande carruagem, levando uma velha senhora, que ficou com muita pena da menina. E ela disse ao pároco:
    - Dê-me essa menina! Eu me encarreguei de educá-la, e serei boa para ela.
   Karem pensou que tinha agradado a senhora por causa dos sapatos. mas a velha dama declarou que eram horrorosos, e mandou queimá-los. E a menina recebeu roupas boas e apropriadas, e aprendeu a ler e a coser. Diziam que ela era agradável; mas seu espelho, esse, dizia-lhe:
   - És muito mais do que agradável: és linda!
   Naqueles dias andava a rainha de viagem pelo país, e levava consigo a filhinha, a princesa. O povo amontoava-se ao redor do palácio para vê-las - e Karen lá estava também. A princesa postou-se a uma sacada para que todos a vissem; não tinha comitiva, nem trazia coroa de ouro: vestia um lindo vestido branco, e calçava uns sapatos muito lindos, de verniz vermelho.
  Karen recebera um vestido novo, e precisava também de um par de sapatos para completar o traje. O rico sapateiro da cidade encarregou-se de fazê-los. A loja, em que ela foi para que ele tomasse as mediada, estava cheia de vitrinas, onde se viam muitos sapatos lindos, de couros brilhantes. Era uma vista encantadora; mas a velha dama, que não enxergava bem, não se interessou em examiná-los, porque não tinha nenhum prazer nisso. Entre os sapatos havia um par vermelhos, exatamente como os da princesinha. E que lindos eram! Disse o sapateiro que tinham sido feitos para a filha de um conde, mas que ficaram justos demais.
   - Isto deve ser verniz - disse a velha senhora- são tão brilhantes!
   - Sim, eles brilham! - replicou Karen.
   E ficaram-lhe bem nos pés, e foram comprados. Mas a velha dama não sabia que eram vermelhos.
   No domingo seguinte seria celebrada a Sagrada Comunhão, e Karen iria participar dela pela primeira vez. Ela olhou para os sapatos brancos, olhou para os vermelhos; olhou de novo para os vermelhos - e acabou por calça-los.
   Era um dia muito luminoso; Karen e a velha dama iam pelos campos, pelo meio dos trigais, e havia muito pó. À porta da igreja estava um velho soldado barbudo, com a sua muleta porque era inválido. A barba do velho era esquisita: mais vermelha do que banca. Era de fato quase completamente vermelha. O velho inclinou-se até o chão e perguntou à velha senhora se podia escovar-lhe os sapatos. E Karen também estendeu o pezinho.
    - Vejam que lindos sapatos de dança! - disse o soldado velho. - Não se esqueçam de apertar bem, quando dançarem!
   E, dizendo isto, deu palmadinha nas solas. A velha dama  deu-lhe uns cobres e entrou na igreja com Karen.
   E todas as pessoa na igreja olhavam para os sapatos vermelhos de Karen. Quando ajoelhou à mesa da Comunhão, ela só pensava nos sapatos vermelhos: parecia-lhe vê-los flutuando diante dos olhos. E ela se esqueceu de rezar as orações.
   Saíram todos da igreja, e a velha dama entrou na carruagem. Já Karen ia erguendo o pé para subir também, quando o velho soldado, que ainda estava aparado ali, disse:
   - Olhem que lindos sapatos de dança!
   E Karen não pode resistir: deu alguns passos de dança: e, sem poder dominar-se, seus pés continuavam a dançar. Parecia que os sapatos tinham adquirido poder sobre ela. Saiu dançando, rodeou, dançando, a igreja, sem conseguir parar - o cocheiro teve de ir buscá-la e erguê-la nos braços, para metê-la no carro. Mas os pés continuavam dançando, de sorte que ela batia com eles na boa velha, machucando-a. Afinal, tiraram-lhe os sapatos e os pés ficaram quietos.
   Quando chegaram a casa os sapatos foram guardados em um armário; mas Karen não podia deixar de ir olhar para eles.
   Um dia a velha dama adoeceu, e disseram que não poderia sarar. Precisava agora que alguém tratasse dela, e ninguém mais do que Karen devia incumbir-se dessa tarefa. Mas ia realizar-se um baile na cidade, e ela foi convidada. Karen olhou para a sua mãe adotiva, que talvez não escapasse da morte; olhou para os sapatos vermelhos, e achou que não tinha obrigação de ficar junto à doente. Calçou-os e foi para o baile - ou antes, eles foram para o baile, e começaram a dançar!  Mas quando Karen queria ir para a direita, eles dançaram para esquerda; quando ela quis dançar em uma ponta, desceram a escada, saíram para a rua, atravessaram as portas da cidade. Dançando saíram dela, e dançando foram para a floresta sombria- e ela tinha de dançar! Viu então que alguma coisa brilhava acima das árvores, e pensou que fosse a lua, porque parecia uma cara. Mas enganara-se: era o rosto do soldado velho de barba vermelha, e e ele acenou-lhe, dizendo:
   - Vejam que lindos sapatos de dança!
   Ficou a menina muito assustada, e quis lançar fora os sapatos vermelhos; mas eles se lhe apegaram aos pés com tanta força, que não pode tirá-los. Rasgou as meias e arrancou-as, mas os sapatos pareciam enraizados nos pés, e continuavam a dançar, e ela teve de ir dançando pelos campos e pelas pastagens, à chuva e ao sol, de dia e de noite.
   Dançou no cemitério, que estava aberto; mas os mortos não a companharam na dança: tinham coisa melhor a fazer. Quis sentar-se em um túmulo pobre, onde crescia a losna, mas para ela não havia descanso nem repouso. Quando ia dançando para a porta da igreja, que estava aberta, viu  que lá estava parado um anjo de longas vestes brancas e de asas tão compridas que chegavam até os pés; o rosto era severo e grave, e tinha na mãos uma espada larga e brilhante.
  - Piedade! - gritou Karen.
   Mas nem chegou  a ouvir a resposta do anjo, porque os sapatos a arrastaram - levando-a porta fora para os campos, para as estradas, para os caminhos, por cima de tocos e de pedras; por toda a parte era ela obrigada a dançar.
   Uma manhã passou dançando pela frente de uma porta aberta, e que ela conhecia muito bem: vinham trazendo para fora um esquife, coberto de flores. Viu então que a velha dama tinha morrido, e pareceu-lhe que estava agora abandonada de todos, e condenada pelo Anjo do Senhor.
   E ela dançava sempre; era compelida a dançar, mesmo dentro da noite negra. Os sapatos arrastavam-na por sobre as sarças e os espinheiros, e ela já tinha os pés escorrendo sangue.
    Foi, então, sempre dançando, pelo trigal afora, e chegou a uma linda casinha solitária. Sabia que morava ali o carrasco, e bateu com os nós dos dedos na vidraça; e disse:
   - Sai, sai cá para fora! Eu não posso entrar, porque tenho de dançar!
   O carrasco disse-lhe:
   - Acaso não sabes quem sou? Eu sou o homem que corta a cabeça dos malvados; e vê como meu machado está impaciente!
   - Não, não me cortes a cabeça! Senão nunca poderei arrepender-me das más ações. Mas peço-te que me cortes os pés, com estes sapatos vermelhos!
     Contou, então, o que acontecera. O carrasco cortou-lhe fora os pés com os sapatos vermelhos - e eles lá se foram dançando, para as profundezas das floresta.
   Então ele fez para ela um par de pernas de pau, com muletas, e ensinou-lhe um cântico, aquele que os condenados sempre cantavam; e ela beijou a mão que brandia a acha, e foi embora, pelo meio da charneca.
     - Muito tenho padecido por causa daqueles sapatos vermelhos! - disse ela. - Irei agora à igreja, para que  todos me vejam!
     E foi, o mais depressa que pode, para a igreja. Quando lá chegou, viu os sapatos vermelhos que dançavam na sua frente. Ficou muito assustada, e voltou para casa.
   Passou toda a semana muito triste, e chorou muitas lágrima, mas quando chegou o domingo, disse:
   - Agora já sofri e lutei tanto...creio que estou tão boa como qualquer daqueles que entram na igreja de cabeça tão erguida!
    E lá se foi ela, com ar insolente; mas ainda não tinha passado do portão, e já avistou os sapatos vermelhos que dançavam diante dela! Ficou mais assustada do que nunca, e deu volta - mas desta vez tinha no coração um verdadeiro arrependimento. Foi à casa do pároco, e pediu-lhe que a tomasse como criada; que seria diligente, e faria tudo quanto pudesse; que não fazia questão de salário, pois só queria um teto para se abrigar, e viver com pessoas bondosas. A mulher do pastor ficou compadecida da menina e tomou-a ao seu serviço. E ela mostrou-se mesmo diligente e fiel. À noite, quando o pastor lia a Bíblia, ela ouvia atentamente, muito quieta. Todas as crianças gostavam muito dela, mas quando falavam a respeito de vestidos, e de coisas de luxo, ela sacudia a cabeça.
  No domingo, ao saírem para a igreja, perguntaram-lhe se ela queria ir com eles. Mas Karen olhou tristemente para as muletas, com os olhos cheios de lágrima, e foram sem ela; foram ouvir a palavra de Deus, e ela ficou sentada no seu quartinho, sozinha. No quarto só cabiam a cama e uma cadeira. Sentou-se, pois, com o livro de oração nas mãos, e quando estava lendo com um espirito cheio de humildade, ouviu o som do rojão, que o vento trazia da igreja; ergueu o rosto banhado de lágrima, dizendo:
    - Oh! Senhor! Ajuda-me!
   Então o sol brilhou com todo o esplendor, e o Anjo de vestido branco, aquele mesmo Anjo que ela vira naquela noite, à porta da igreja, estava diante dela. Não tinha a espada afiada na mão; trazia agora um ramo verde, coberto de rosas. Tocou com ele o teto - e o teto foi se erguendo, se erguendo...e onde o Anjo tocava aparecia imediatamente uma estrela de ouro. Tocou então as paredes e elas foram-se afastando para longe, para longe...e ela viu o órgão, que ressoava tão belos hinos - porque a igreja tinha vindo ter com a pobre menina, no seu pequenino quarto, ou o seu quarto se havia transformado em igreja. Ela estava, também entre os fieis. Alguém, a seu lado, lhe disse:
   - Que bom que vieste, Karen!
   - Foi pela graça de Deus! - respondeu ela.
    Soou o órgão, espalhado suas notas cheias de alegria. As vozes das crianças ergueram-se, suaves, cantando em coro; o sol, que entrava pela janela, veio direito ao banco onde estava Karen, enchendo-a de fulgor; e seu coração sentiu-se tão cheio de luz, e de paz, e de alegria, que estalou. E sua alma voou para o céu, em um raio de sol.
FIM

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