segunda-feira, 12 de setembro de 2016

BONS VIZINHOS - CONTOS DE ANDERSEN

    Quem visse aquilo havia de supor que alguma coisa muito importante se passava em frente ao tanque dos patos.
     Todos os patos que estavam descansando na superfície da água, e os que se apoiavam sobre a cabeça- porque eles podem ficar de cabeça para baixo - nadavam agora em tumulto para terra e iam deixando impresso o rasto no chão úmido, enquanto o alarido das grasnadas repercutia, perto e longe. A água, um momento antes tão clara e lisa como um espelho, estava garota agitada. Ainda há pouco todas as árvores, todos os arbustos que ficavam perto do velho chalé de teto esburacado, cheio de ninhos de andorinhas - e principalmente a grande roseira literalmente coberta de rosas - tudo se espelhava distintamente na superfície da água - A roseira cobria a parede e ficava suspensa sobre a água, onde se via toda a paisagem como um quadro - mas de pernas para o ar. Quando, porém, a água se encrespou, tudo aquilo pareceu ir nadando,  e a paisagem desapareceu. Duas penas, que tinham caído dos patos que nadavam, embalavam-se ao sabor das ondas; de súbito moveram-se rapidamente, como se tivessem sido impelidas, enquanto a água ia alisando e serenando de novo. Já as rosas podiam espelhar-se. Eram muito lindas, ainda que não os soubessem, porque ninguém jamais lhes tinha dito isso. O sol espiava por entre as folhas tenras, vagava no ar uma aroma suave, e todas as coisas sentiam o que nós mesmos sentimos, quando nos vem alegrar a ideia da nossa felicidade.
   - Como é bela a vida! - dizia cada uma daquelas rosas. - O único desejo que tenho é de beijar o sol, tão quente e tão brilhante. Gostaria muito de beijar também as rosas que estão lá embaixo na água, e os passarinhos que metem a cabeça fora do ninho, e piam:  " Tuiii!" com uma vozinha fraca, e não tem penas, como as dos pais. São bons vizinhos, tanto os de cima como os de baixo. Que bela é a vida!
   Os filhotes de baixo e de cima - os de baixo eram apenas o reflexo na água - eram pardais; os pais também eram  pardais, que tinham tomado posse de um ninho vazio de andorinha, do ano anterior, e agora moravam nele como se fosse seu.
   - São os filhos dos patinhos que vão nadando lá? - Perguntaram os filhotes de pardal, olhando para as penas de pato que vogavam na água.
   - Se querem fazer peguntas, façam - disse a mãe - mas ao menos que sejam perguntas sensatas. Pois vocês não veem que aquilo são penas, matéria-prima para vestuário, com as que nós usamos- e vocês hão de usar também? A única diferença é que as nossas são mais bonitas. Ainda assim... bem quisera eu tê-las aqui no ninho, porque conservam muito o calor! Estou curiosa por saber o que foi que tanto assustou os patos...Certamente não seria de nós que se espantaram - apesar de ter eu dito "Tuiii!" bem alto para vocês. É claro que essas rosas não sabem nada, e nada mais fazem senão olhar para si próprias e cheirar...Estou farta de semelhante vizinhança!
    - Escutem os lindos passarinhos de cima! - diziam as rosas. -Também eles começam a cantar; mas ainda não conseguem grande coisa. Tudo virá a seu tempo! Que prazer teremos então! É muito agradável ter vizinhos tão alegres!
    Subitamente apareceu uma parelha de cavalos, cabriolando; iam tomar banho. Montado em um deles vinha um rapaz um camponês, que tirou toda a roupa, ficando somente com o chapéu preto, de aba larga. Assobiava como um passarinho; entrou, a cavalo, até o ponto mais fundo do açude, e ao passar pela roseira colheu uma rosa. Espetou-a no chapéu e continuou a cavalgar, achando-se muito elegante. Às outras rosas ficaram olhando para aquela irmã, e perguntavam consigo:
   - Onde irá ela?
   Mas ninguém  o sabia.
   - Eu gostaria de ir por esse mundo - disse uma - apesar de ser tão lindo o nosso lar verdejante. De dia o sol brilha e nos dá calor, e à noite o céu brilha ainda com maior encanto, com a gente vê pelos buraquinhos!
   Elas queriam dizer -  as estrelas, mas não sabiam que eram estrelas.
   - Nós tornamos a casa muito agradável - dizia a mãe pardoca; - e como as pessoas dizem que ninho de andorinha traz sorte, elas estão contentes conosco. Agora quanto aos nossos vizinho, uma roseira como aquela só traz umidade. Provavelmente ela será retirada dali, e tomara que plantem em seu lugar nem que seja uma espiga de trigo. As rosas não prestam  para nada, a não ser para serem vistas e cheiradas, ou, quando muito, para serem postas no chapéu. Ouvi minha mãe dizer que elas caem todos os anos. A mulher do lavrador conserva-as então em sal, e depois elas recebem um nome francês, que eu nem posso nem quero pronunciar; polvilham com elas o fogo, para sentirem um cheiro agradável. E esta é a sua  carreira no mundo: são destinadas apenas a alegrar  os olhos e o nariz. E agora já vocês sabem em que consiste a vida das rosas.
   Quando anoiteceu, e os mosquitos andavam brincando no ar tépido e entre as nuvens rosadas, veio o rouxinol e cantou para as rosas: que beleza se assemelha o sol neste mundo, e que a beleza vive para sempre. Mas as rosas pensavam que o rouxinol cantava seu próprio louvor- o que não é de admirar; porque se há coisa que jamais sonharam é que aquele canto se referisse a elas. Ficaram  deliciadas com a canção, ainda assim, e perguntavam lá consigo se todos os filhotes de pardal viriam a ser também rouxinóis. E os filhotes diziam:
   - Eu compreendo perfeitamente o canto deste passarinho. Há só uma palavra que não sei o que significa...Que é " beleza"?
   - Ora! Não é nada importante , não- replicou a mãe pardoca. - Refere-se apenas ao exterior. Lá em cima, na casa grande, onde os pombos são alimentados diariamente com ervilhas e trigo -já tenho tomado parte em suas refeições algumas vezes, e vocês hão de também participar delas, quando for tempo, porque minha máxima é esta: " Dizem-me com quem andas, dir-te-ei quem és"-pois bem: lá em cima, na casa grande, como tu ia dizendo, há duas aves de pescoço verde, que tem topete, e podem abrir a cauda como uma enorme roda. As cores são tão brilhantes, que ofuscam os olhos da gente, quando nelas bate o sol. Essas aves chamam-se pavões, e representam  a beleza; mas se lhes arrancassem alguma daquelas penas, não ficariam diferente de nós. E eu teria certamente arrancado, se não fossem aves tão grandes!
   - Pois eu vou arrancá-las! - guinchou o menorzinho dos filhotes, que ainda não tinha penas.
   No chalé morava um casal novo; os esposos amavam-se ternamente, e eram diligentes e ativos- por isso tudo quanto os cercava estava em ordem e bem cuidado. Todos os domingos, de manhã cedo, a moça colhia algumas rosas, que arranjava em um copo d'água, sobre a comoda.
   - Agora estou vendo que é domingo -dizia o marido, beijando-a,
   Sentavam-se então, de mãos dadas, e liam o livro de orações; e os sol iluminava com seus brilhantes raios as rosas e o jovem par.
   - Que vista monótona, está! disse um dia a mãe pardoca, que lá do   seu ninho via o que se passava na sala. - Sempre a mesma coisa!
    E ela voou do ninho.
   No domingo seguinte repetiu-se a mesma coisa- novas rosas foram colhidas e postas no copo; e apesar disso a roseira continuava cheia de flores e de beleza. Os filhotes de pardal já estavam emplumados, e gostariam bem de voar com a mãe, mas a pardoca não lhes deu licença; e eles tiveram de ficar em casa. Ela saiu voando; mas de repente viu que estava presa em uma rede de sedenho que uns meninos tinham amarrado a um galho de árvore. O sedenho apertou-lhe tanto as pernas, que parecia cortá-las. Que susto, e que angústia! Os meninos vieram correndo, subiram à árvore, e seguraram o passarinho sem nenhum cuidado.
  - Ora! É um pardal! - disseram eles desapontados.
   Contudo, não a soltaram: levaram-na para casa; e cada vez que ela piava, batiam-lhe no bico.
    Os meninos conheciam um velho, em uma granja próxima, que sabia preparar sabão, para lavar roupa e para barbear também. Era um velhote alegre, que vivia andejando pela região. Ouviu os meninos se queixarem de que aquele passarinho não servia para nada, e disse-lhes:
   - Querem ver com ele vai ficar bonito?
    A pardoca sentiu pelo corpo todo ao ouvir estas palavras.
   O velho tirou então da sua caixa, cheia de tintas de várias cores, uma porção de folhas douradas, e pediu aos meninos que lhe trouxessem uma clara de ovo; untou com ela todo o corpo da avezinha, assentou por cima as folhas, e a mãe pardoca ficou toda dourada, da cabeça às patinhas. E ela, porém, pouco se lhe dava aquele esplendor, e tremia de susto. O saboeiro tirou então um pedaço do forro vermelho do seu casaco velho, cortou-o em bicos, fingindo uma crista de galo, e amarrou-o na cabeça da pardoca.
   - Agora vocês vão ver o casaco-de-ouro voar! - disse o velho, libertando o animalzinho.
   E a pardoca saiu voando, meio morta de medo, à luz do sol ardente. E como brilhava!
   Não foi só aos pardais que ela assustou, não: um corvo velho, apesar de toda a sua experiência, ficou espantado diante daquela estranha visão. E foram todos voando atrás da mãe pardoca, na esperança de descobrir quem poderia se aquele pássaro estrangeiro.
   Desesperada de aflição e de medo, a pardoca voou para casa; mas ia quase caindo, por não ter forças para sustentar o corpo. O bando de pássaros que a perseguia aumentava cada vez mais; alguns tentaram mesmo dar-lhe bicada. E gritavam:
   - Olhem o bicho! Olhem o bicho!
   - Olhem o bicho! Olhem o bicho! - repetiam os filhotes no ninho, quando viram que a ave se aproximava. Isto há de ser um pavãozinho novo, porque tem todas as cores, e elas ofuscam os olhos da gente, como disse a mamãe! Tuiii! Tuiii! Isto é a beleza!
  E davam bicadas na mãe, com os biquinhos ainda  tão pequenos; e ela não podia chegar ao ninho. Estava tão fraca que não se animava a dizer sequer "Tuiii! quanto mais explicar que " era mamãe"! E as outras aves caíram em cima da pardoca, e arrancam-lhe as penas, até ela cair, toda ensaguentada, sobre a roseira.
     - Coitadinha! - disseram as rosas. - Fica tranquila; nós te escondemos. Deita a cabecinha no nosso peito.
    A pardoca abriu ainda uma vez as asas, depois cingiu-as ao corpo e caiu morta no meio de suas vizinhas, as frescas e lindas rosas.
   - Tuiii! Tuiii! - pipilavam lá do ninho. - Mas que poderá reter nossa mãe tanto tempo? É inconcebível! Será um ardil dela, para mostrar que devemos cuidar de nossa vida? Ela nos deixou a casa de herança; mas a qual de nós pertencerá, quando tivermos nossas famílias?
     - Não me agrada que fiquem aqui comigo, quando eu aumentar minha família: quando tiver mulher e filhos! - disse o mais novo.
   - Mas eu hei de ter mais mulheres e mais filhos do que tu, certamente- disse o segundo.
   - Mas e eu, eu sou o mais velho! - bradou outro.
   Estavam todos, davam bicadas, e de repente - Bum! - foram caindo, uma um, para fora do ninho. Lá ficaram, furiosos, com a cabecinha inclinada para um lado, e piscando e revirando os olhos. Era  a  sua maneira de mostrar zanga.
   Podiam apenas dar voos muito curtos, mas com exercício constante, conseguimos mais destreza. Concordaram em combinar uma senha, para se reconhecerem mutuamente, caso se encontrassem ainda algum dia no mundo. Consistia ela em uma espécie de "tuiii! " particular, ao mesmo tempo que arranhavam o chão três vezes com o pé.
   O mais novo, que ficou de posse do ninho, espichou-se o mais que pode, pois que era agora o dono da casa. Mas o seu regozijo não durou muito: nessa mesma noite rebentaram das janelas do chalé labaredas vermelhas, e toda casa desmoronou em chamas; e o pardalzinho pereceu, enquanto o casal novo escapava com vida, felizmente!
   Ergueu-se o sol mais uma vez, e a natureza inteira parecia renovada, como se saísse de um sono tranquilo; do chalé nada mais restava, senão alguns barrotes carbonizados, que se apoiavam na chaminé, agora solitária. Subiam ainda das ruínas rolos de fumaça; mas cá fora a roseira, intata, continuava a florescer, sempre fresca, e todas as flores,e  todos os brotinhos espelhavam-se ainda na água límpida.
  Um homem que passava exclamou:
   - Que lindas estão aquelas rosas, assim em frente do chalé queimando! Não se pode imaginar mais belo quadro! Vou esboça-lo.
    E o estranho tirou do bolso um livrinho de folhas em branco, pois era pintor, e desenhou um esboço das ruínas fumegantes, dos barrotes carbonizados, e da chaminé, que dominava o quadro, e parecia cada vez mais vacilantes; e no fundo aparecia a grande roseira florida, que fazia um belo efeito. na verdade, a roseira sugerira ideia do quadro.
   No mesmo dia dois do pardais que tinham nascido ali, voltaram.
  - Mas ...onde está a casa? - perguntavam eles. - Onde está o ninho? Tuiii! ...Tudo pegou fogo, e com a casa lá se foi o nosso valente irmão! Aí está o que ele ganhou, em ficar com o ninho! As rosas é que se livraram lindamente! E ainda conservam as faces rosadas...Não se importam nada com a infelicidade dos vizinhos! Por isso mesmo nem vou falar com elas! Além de tudo, este lugar aqui é muito feio, para meu gosto.
   E os pardais foram embora.
  No outono, num dia claro e luminoso, que mais parecia de pleno verão, um bando de pombas, brancas, cinzentas e manchadas, andavam passeando  em frente da larga escada, no pátio da casa grande. Sua plumagem luzia ao sol. E a velha mãe pomba dizia aos filhotes:
   - Vamos! Formem grupos! Formem grupos! Fica melhor assim!
   - Que é aquilo? Aquelas criaturinhas cinzentas, que andam saracoteando ao redor de nós? - perguntou uma pomba velha, de olhos verdes e vermelhos.
    E pôs-se a gritar.
   - Casaquinhos pardos! Casaquinhos pardos!
   - São pardais - muito boas criaturas, por sinal; e como nós temos sido sempre reconhecidos como gente bondosa, vamos deixá-los  comer alguns grãos conosco, porque não interrompem a nossa conversa, e espicham a perna com tanta graça...
     Era certo, sim, que estavam espichando uma perna- por sinal que a esquerda! - e dizendo: "Tuiii!" Reconheceram-se, pois: eram os pardais que em tempos tinham morado no ninho do chalé que o incêndio destruiu.
   - Há aqui comida boa, e abundante - disseram os pardais.
   As pombas empertigavam-se, pavoneando-se, aferrando-se cada uma aos seus próprios pensamentos e opiniões.
    - Estás vendo aquele pombo " papo de vento"? - disse uma delas, falando de outra. - Vês como ele engole ervilhas? Come tanto - e o que há de melhor, além disso! Cou!...Cou!...Como aquela criatura suja, feiosa e perversa ergue a crista! Cou...Cou!...
   E, com os olhos luzentes de maldade:
   - Formem grupos! Formem grupos! Casaquinhos pardos! Casaquinhos pardos! Cou!...Cou!...
  Os pardais comiam sofregamente, escutando com atenção, e chegaram a formar fila com os outros; mas como não estava habituados, não deu resultado. Assim, depois de fartos, deixaram as pombas, trocaram opiniões a respeito delas, e depois meteram-se por baixo dos sarrafos que cercavam o jardim; e um deles, achando aberta a porta da sala. arrojado agora, depois da boa refeição, saltou para o limiar, dizendo:
   - Tuiii! Eu voarei bem longe!
   - Tuiii! - disse outro. - Eu voarei também, e mais longe ainda! - E saltou para dentro da sala.
   lá não havia ninguém, e, vendo isso, o terceiro voou ainda mais longe, para o fundo da sala, dizendo:
  - Agora ou nunca! Isto é um velho ninho humano, não há dúvida, e...mas...que é que puseram ali? Que pode ser aquilo?
   Bem na frente dos pardais estavam as rosas, em plena floração, refletidas na água ; e os barrotes chamuscados inclinavam-se contra a chaminé, que torreava acima das ruínas. Mas- que acontecera? Que seria aquilo? Como viera tudo aquilo parar dentro de uma sala, na casa grande?
   E os três pardais quiseram voar para a chaminé; mas bateram contra uma superfície plana, porque era um quadro - um grande e belo quadro - que o artista pintara daquele pequenino esboço.
   - Tuiii! - disseram os pardais. - Isto não é nada! Isto só parece alguma coisa. Não, não é nada! Tuiii! Isto é a beleza! Vocês acham que isto tem sentido! Eu, não!
   E, como naquele momento entrava alguém na sala, saíram voando.
Passaram-se um ano e um dia. As pombas tinham muitas vezes arrulhado, para não dizer brigado - criaturinhas perversas, aquelas! Os pardais tinham tremido de frio no inverno, e vivido na fartura durante o verão; todos se haviam acasalado, ou casado; todos tinham filhotes, e, é claro, cada um achava que o seu era o mais bonito e inteligente. Um voou para um lado, outro para outro; e quando se encontravam, reconheciam-se pelo outro ; e quando se encontravam, reconheciam-se pelo"Tuiii! e porque estendiam três vezes a perna esquerda. A pardoca mais velha ficou solteira, e nunca teve ninho nem filhotes; seu maior desejo era ver uma cidade grande, e voou para Copenague.
   Junto do castelo e do canal, onde flutuavam navios carregados de maças e de cascos de vinho, via-se uma grande casa, pintada de várias cores. As janelas eram mais largas embaixo do que em cima, e os pardais, espiando pelas vidraças, viram uma sala que parecia uma tulipa, pintada com as cores mais alegres do mundo. No centro da tulipa viam-se criaturas humanas, umas feitas de mármore, outras de gesso - o que, para os pardais, é a mesma coisa. No teto via-se um carrinho de metal, com cavalos de metal, guiado por uma Deusa da Vitória, também de metal. Era o Museu Thorwaldsen.
   - Mas que coisa brilhante! Que coisa brilhante!= disse a pardoca solteirona - Aquilo deve ser a beleza! Tuiii! Mas é maior que o pavão...
  Lembrava-se ainda do tempo da infância, em que ouvira sua mãe proclamar o pavão como o mais perfeito exemplo do belo. Baixou o voo e entrou no pátio, cujos muros eram pintados com muito gosto, representando plameiras e folhagens; no centro do pátio florescia uma grande e bela roseira, que espalhava os ramos frescos e suaves sobre um túmulo. E a pardoca, avistando gente da sua espécie, voou para lá, dizendo: "Tuiii!" e espichando o pé - maneira de cumprimentar que muitas vezes tinha experimentado durante todo o ano, sem receber a devida resposta, porque os que se dispersam não se encontram todos os dias! Mas é aquela forma de saudação já se fizera hábito nela.
   Mas agora dois pardais velhos e um novo replicaram; "Tuiii!" esticando três vezes a perna esquerda.
   - Ah! Bom dia! Então, como passas?
   Eram dois pardais velho, daqueles que primitivamente moravam no ninho, e um novo, da mesma família. E continuaram:
   - Quem havia de imaginar, hem? Encontrarmo-nos aqui! Isto é um lugar muito aristocrático, mas falta o que comer; isto é a beleza! Tuiii!
   Saíam agora muitas pessoas, que vinham das salas cheias de esplêndidas estátuas de mármore, e aproximavam-se do túmulo, onde jazem os restos mortais do célebre mestre, cujo gênio formara aquelas estátuas. E todas, com expressões de admiração ardente, paravam ao pé do túmulo do Thorwaldsen; algumas juntavam as pétala de rosas que estavam espalhadas ali, para guardá-las. Toda aquela gente viera do estrangeiro: uns da poderosa Inglaterra, outros da Alemanha, outros ainda da França. Uma dama muito linda colheu uma rosa e escondeu-a no seio. E os pardais pensaram então que as rosas eram onipotentes naquele lugar, e que a casa inteira fora construída em sua intenção, o que, seja dito de passagem, achavam que era demasiada honra. Contudo, como todos lhes prestavam tantas homenagens, também eles não queriam ficar atrás em matéria de cortesia.
   -Tuiii! - disseram então, varrendo o chão com a cauda.
   Deitaram um olhar de esguelha às rosas, e convenceram-se sem demora de que eram as suas velhas vizinhas. E eram, de fato. O pintor que tinha feito aquele esboço da roseira vizinha do chalé incendiado obtivera permissão para transportá-la, e dera-a de presente ao arquiteto, porque nunca tinha visto rosas mais belas; e o arquiteto plantara-a no túmulo de Thorwaldesen, onde ela continuou a florescer, como a imagem da beleza, semeando no chão suas pétalas rosada e cheirosas, para que pudessem ser levadas para terras estrangeiras, como lembrança daquele sítio reverenciado.
  - Então vocês obtiveram nomeação para a cidade? - perguntaram os pardais.
   E as rosas acenaram com a cabeça - que sim; porque reconheceram também seus vizinhos pardacentos, e ficaram muito contentes de tornar a vê-los.
   - Como é agradável - disseram elas - viver, e florescer, e tornar a encontrar velhos amigos...e ver diariamente rostos alegres! É como se todos os dias fossem domingos!
   - Tuiii! responderam os pardais. - Sim, elas são mesmo as nossas antigas vizinhas. Lembramos-nos muito bem da sua origem, junto do açude. Tuiii! Como subiram de categoria! E que honras, as que recebem! Ah! É bem certo que algumas pessoas nascem com uma colher de prata na boca! Mas lá está uma folha seca...
   E deram bicadas e bicadas na folha,a té vê-la cair ao chão.
   Mas a roseira continuou a florescer, mais fresca e mais verdejante que nunca; e rosas, ao calor do sol, espalhavam o seu perfume sobre o túmulo de Thorwaldsen, a cujo nome imortal ficaram assim ligadas.
FIM    
   

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