domingo, 25 de setembro de 2016

O ROUXINOL- CONTOS DE ANDERSEN





  Na China, como todos sabem, o imperador é chinês, e todos aqueles que o cercam são igualmente chineses. (Este caso aconteceu há muitos, muitos anos.) O palácio do imperador era ao mais magnificente do mundo inteiro- todo feito da mais fina porcelana. No jardim, cultivavam-se as flores mais raras e belas; e para lhes dar maior realce havia pequeninas campainhas de prata que tiniam constantemente, de modo que ninguém podia passar sem as ver. Sim, tudo era admiravelmente arranjado no jardim do imperador. E o jardim cobria tamanha extensão que nem o próprio jardineiro lhe conhecia os limites. Se agente fosse sempre andando por ele chegaria a uma floresta lindíssima, onde havia altas árvores e lagos profundos. Grandes navios podiam navegar neles sob a ramaria das árvores. E nessas vivia um rouxinol, cujo canto era  tão belo que até o pescador, que tinha tanto que fazer, parava estático a escutá-lo, quando saía à noite para deitar as redes.
  - Que lindo!- dizia ele.
    Mas, como tinha de atender ao seu ofício, esquecia o passarinho. Na noite seguinte o passarinho tornava a cantar, e o pescador tornava a ouvi-lo, e de novo exclamava:
   - Que lindo!
   De todas as regiões da terra vinham viajantes à cidade do imperador para conhecê-lo, e admirar o seu palácio, e o seu jardim; mas, ao ouvir o rouxinol, diziam:
   - Isto é o que há de melhor em todo o império!
    E, quando retornavam ao seu país, falavam naquilo; e homens ilustrados escreveram muitos livros a respeito da cidade, e do palácio, e do jardim, sem esquecer o rouxinol, que  elevavam acima de tudo o mais. E os poetas escreveram poemas magníficos,  cantando o rouxinol da floresta que ficava perto do lago profundo.
   Corriam mundo os livros, e alguns deles foram ter às mãos do imperador. Sentado no seu trono de ouro, ele lia, e lia: a cada passo ia acenando com a cabeça, em sinal de aprovação, porque lhe agradavam muito aquelas magistrais descrições da cidade, do palácio e do jardim, De repente, leu: " Mas o melhor de tudo é o rouxinol! " Aquilo estava escrito ali!----
   - Mas...que vem a ser isto? - exclamou o imperador. - Eu não sei o que é rouxinol! Há semelhante passarinho no meu império, e até no meu jardim? Nunca ouvi falar nele! E dizer-se que eu havia de vir a saber disto pelos livros!
  E chamou imediatamente o seu mordomo. Era este tão grande dignitário, que quando algum outro de categoria inferior ousava falar-lhe, ou dirigir-lhe alguma pergunta- "P!" - isto é, nada.
  - Dizem que há aqui um passarinho admirável, chamado rouxinol! E que é a coisa melhor que existe em todo o meu imenso império! Como nunca ouvi falar em semelhante coisa?
  - Não sei; nunca ouvi falar nele- respondeu o mordomo. - Nunca foi apresentado na Corte.
  - Pois ordeno agora que ele compareça hoje à noite, e que cante na minha presença!- disse o imperador. - Todo o mundo sabe que o possui, menos eu!
  - Nunca ouvi falar nele- repetiu o mordomo.- Mas vou procurá-lo; e hei de achá-lo!


    Mas onde estaria o rouxinol? O mordomo correu abaixo e acima, subiu e desceu escadas, atravessou salões e corredores, mas nenhuma das pessoas que encontrou ouvira jamais falar no rouxinol .E ele voltou à presença do imperador , e disse que aquilo devia ser uma lenda, inventada pelos escritores de livros.
   - Vossa Majestosa Imperial não imagina quanta coisa tem sido escrita, que não passa de ficção! E além disso há coisas a que chamam arte negra.
   - Mas o livro em que li isso me foi remetido pelo alto e poderoso imperador do Japão: portanto não pode conter falsidades. Quero ouvir o rouxinol! Quero que esteja aqui esta noite! Ele goza do meu favor imperial. E se não vier, toda a Corte será calcada aos pés, depois da ceia!
   - Tsing-Pe! - disse o mordomo.
   E lá voltou a correr abaixo a acima, subiu e desceu escadas, atravessou salões e corredores. E metade da Corte corria também atrás dele porque os cortesões não achavam graça nenhuma em ser pisoteados.
  Fez-se então um grande inquérito a respeito do rouxinol, que todo o mundo conhecia, exceto a gente da Corte.
   Encontraram, afinal, na cozinha, uma pobre rapariguinha, que disse:
  - O rouxinol? Mas sim, conheço-o bem; canta lindamente. Todos os dias, ao escurecer, levo para minha mãe, que está doente, alguma sobra da mesa. Ela mora lá embaixo, perto da praia. Quando volto, e me sinto cansada, sento à sombra do mato: e ouço então o rouxinol cantar.
   - Oh! serva! - exclamou o mordomo - obterei para ti um emprego permanente na cozinha, e permissão para veres o imperador jantar, se nos levares até onde está o rouxinol! Porque ele está citado para comparecer à Corte hoje mesmo!
    Então seguiram todos par a o bosque onde costumava cantar o rouxinol. Metade da Corte lá ia. Quando estavam a meio caminho, uma vaca começou a mugir.
   - Oh! - gritou o pajem da Corte - é ele! Mas que força, para um animalzinho tão pequeno! E eu já tenho ouvido isto!
   - Não, aquilo é o mugido da vaca- explicou a menina da cozinha. - Ainda estamos muito longe.
   Dali a pouco começaram as rãs a coaxar no brejo.
   - Admirável! - disse pregador da Corte chinesa. - Agora sim, é ele mesmo...parecem pequeninos sinos de igreja...
   - Não; aquilo são as rãs! - corrigiu ela. - Mas estamos perto do lugar.
   E então começou o rouxinol a cantar.
  - Agora sim! - exclamou a menina. - Agora é ele mesmo. Escutem! Escutem!E lá está ele num galho!
   E mostrava um passarinho cinzento, pousado em um ramo.
  - É lá possível! - brandou o mordomo. - Nunca imaginei que fosse assim! Como é simples! Sem dúvida perdeu as cores, ao ver tanta gente em roda!
   - Meu rouxinolzinho!- gritou a menina em altos brados. - Nosso muito gracioso imperador quer que cantes diante dele! - Com o maior prazer! - prontificou-se o passarinho, que rompeu logo a cantar.
  - É como o som das campainhas de vidro! - disse o mordomo. - Vejam como se move a sua gargante, tão pequenina! É assombroso que nós nunca o tenhamos ouvido até hoje! Este passarinho vai obter um grande êxito na Corte!
   - Tenho de cantar outra vez diante do imperador?
- perguntou o rouxinol que o julgava presente.



   - Meu delicado rouxinolzinho - retrucou o mordomo- tenho grande prazer em convidá-te para a festa na Corte, hoje à noite; encantarás então Sua Majestade Imperial com teu delicioso canto.
   - Meu canto soa melhor debaixo das árvores - disse o rouxinol, contrariado ao saber o que desejava o imperador.
  O palácio foi festivamente adornado. As paredes e o pavimento, que eram de porcelana, brilhavam à luz de milhares de lâmpadas de ouro: as flores mais raras, as que podiam tirar sons mais claros de suas campainhas, foram postas nos corredores. Era tal o barulho de idas e vindas e tão forte a corrente de ar - o que fazia tinirem as campainhas das flores - que as pessoas mal podiam ouvir a própria voz.
   No centro do grande salão, onde estava sentado o imperador, fora colocado um poleiro de ouro, e nele pousava o rouxinol. Toda a Corte se achava presente, e a pobre menina da cozinha obtivera permissão para ficar atrás da porta, porque recebera o título de cozinheira da Corte. Todos trajavam de grande gala, e olhavam para o passarinho cinzento, ao qual o imperador fez uma aceno com a cabeça.
   E o rouxinol cantou. Cantou tão bem, que o imperador ficou com os olhos cheios d'água; corriam-lhe as lágrima pelas faces; e então o rouxinol cantou ainda com mais sentimento, um canto que ia direito ao coração. O imperador ficou tão comovido, que declarou conceder-lhe a sua chinela de ouro, para que ele a usasse no pescoço; mas o rouxinol declinou desta honra, com muita cortesia, dizendo que já estava mais que recompensado.
   - Vi lágrimas nos olhos do imperador- e isto é para mim um verdadeiro tesouro. As lágrimas de um imperador tem virtude especial. Deus sabe que estou suficientemente recompensado!
    E cantou outra vez, um canto doce e suave.
   - Mas como ele é faceiro! - diziam as damas.
   E, quando alguém lhes falava, punham água na boca, para gorgolejar quando respondiam. E pensavam que sua voz era como a do rouxinol. E os lacaios e camareiras também se declararam satisfeitos; e isso não é dizer pouco, porque eram a gente mais difícil de contentar! Em resumo- o rouxinol obteve completo êxito.
   Ficaria na Corte, onde teria sua gaiola particular, com a liberdade de sair duas vezes ao dia, e uma à noite. Foram nomeados doze criados para acompanhá-lo quando quisesse passear, cada um dos quais o mantinha preso por um fio de seda, cuja ponta estava amarrada à perna do passarinho. E eles deviam segurar bem aquele fio! Não havia é claro, prazer algum em voar assim, preso por doze cordões.
    A cidade inteira não falava de outra coisa, senão do passarinho admirável, e quando se encontravam duas pessoas, uma dizia logo" rouxi..." enquanto a outra acabava:"nol"; não era preciso mais: suspiravam e compreendiam-se. Onze crianças, filhas de roupavelheiros, foram batizadas com o nome do passarinho; mas nenhuma delas chegou a cantar uma só nota.
   Um dia o imperador recebeu um grande pacote, sobre o qual estava escrito: " O Rouxinol".
   - Há de ser algum novo livro sobre o célebre passarinho - disse ele.
   Mas enganara-se. Era um trabalho de arte - um rouxinol artificial, todo incrustado de diamantes, rubis e safiras, e que devia cantar como o rouxinol de verdade. Assim que lhe deram corda, o passarinho artificial cantou um trecho - porque podia cantar mesmo - e movia a cauda para baixo e para cima, e brilhava, todo recamado de ouro e de prata. Trazia ao pescoço uma fita em que estava escrito: " O rouxinol do imperador do Japão é miserável, comparado com o do imperador da China."
   - É maravilhoso! - diziam todos.
   E o homem que trouxera o presente foi no mesmo instante agraciado com o título de " Carregador-chefe-o-rouxinol-imperial".
    - Agora eles devem cantar juntos; que lindo dueto vamos ouvir!
    E começaram a cantar juntos. Mas foi impossível continuar, porque o rouxinol de verdade cantava conforme sabia cantar, e o artificial só cantava valsas, como lhe permitia o maquinismo.
    - A culpa não é do passarinho artificial - disse o mestre de música. Ele segue o compasso e canta de acordo com a minha escola.
   Então o passarinho mecânico teve de cantar sozinho. Obteve tanto êxito como o verdadeiro, e além disso era muito mais bonito - rutilava como os alfinetes de gravata e as pulseiras.
   Cantou trinta e três vezes o mesmo trecho sem cansar. Ainda queriam todos ouvi-lo mais uma vez, mas o imperador disse que agora o rouxinol vivo devia cantar alguma coisa. Mas...que fim levara ele? Sem que ninguém notasse, voara pela janela aberta, e voltara para a mata.
   - Mas que é feito dele? - perguntava o imperador.
   E todos os cortesões censuram o rouxinol, chamando-o de criatura ingrata.
  - Mas ficou o passarinho mais valioso - disseram afinal.
   E assim foi que o passarinho mecânico teve de cantar outra vez; e era já a trigésima-quarta vez que ouviam o mesmo trecho. E ainda assim, ninguém o sabia de cor, porque era muito difícil. E o mestre de música louvava incessantemente o passarinho: era melhor que o rouxinol - declarava ele- não só quanto  à plumagem e aos lindos diamantes, mas também por dentro.


   - Porque devo observar a todas as damas e cavalheiros, e acima de todos ao nosso gracioso senhor e imperador de todos nós - com um rouxinol de verdade a gente nunca sabe com o que pode contar; mas neste passarinho artificial tudo está regulado. A gente pode explicá-lo; pode abri-lo, e fazer o povo compreender de onde vem as valsas, como são executadas, e como uma se segue à outra.
  - É exatamente essa a minha opinião - disse cada um dos presentes.
  E o mestre de música teve ordem de mostrar o rouxinol mecânico ao povo no domingo seguinte. todos deviam ouvi-lo cantar, conforme a ordem, do imperador. E todos ouviram e gostaram muito do canto - até parecia que se tinham embriagado com chá, conforme a moda chinesa; e gritavam:
    - Oh! Oh!
   E erguiam o dedo indicador, e acenavam com a cabeça. Mas o pobre pescador, que ouvira o rouxinol de verdade, dizia:
  - É, é muito lindo; e as melodias são todas semelhantes umas às outras; mas falta ainda alguma coisa- embora eu não saiba dizer o que é.
   O verdadeiro rouxinol viu-se banido do império. O artificial foi acomodado sobre uma almofada de seda, ao pé da cama do imperador. Todos os presentes que lhe tinham sido oferecidos- ouro e pedras preciosas - estavam em ordem, ao redor dele. Seu título era o de Supremo-Cantor-Imperial-depois-do-jantar; e quanto à categoria, teria o número um da ala esquerda. O imperador considerava esse lado o mais importante, por ser o do coração - porque até nos imperadores o coração está do lado esquerdo. O mestre de música escreveu  uma obra de vinte e cinco volumes a respeito do passarinho artificial. Era obra muito erudita e muito longa, inçada das palavras mais difíceis da língua chinesa; mas ainda assim todos declararam que a tinham lido e compreendido - com receio de serem considerados estúpidos, e ainda pisados aos pés.
   Passou-se um ano inteiro. O imperador, a Corte e todos os outros chineses conheciam e já sabiam de cor cada pequenino pio do canto do passarinho artificial. Mas por isso mesmo gostavam daquele canto do passarinho artificial; podiam acompanhá-lo cantando também, e todos o faziam, na verdade. Os moleques cantavam na rua: " Tsi-tsi-tsi-glu-glu!" e o próprio imperador também cantava aquilo. Sim, era notável aquela música.
    Mas uma tarde, quando o passarinho artificial estava no melhor do canto, e o imperador o escutava, estendido na cama, ouviu que alguma coisa, dentro do maquinismo, dizia: " Uuuuiizzzz!"  E alguma coisa estalava: Uuuiiirrr!" Todas as rodas desandaram a girar, e a música parou.
  Saltando da cama imediatamente, o imperador mandou chamar o seu médico; mas que podia esta fazer? Chamaram então um relojoeiro; e depois de muito palavrório, de muita investigação, ficou o passarinho mais ou menos em ordem. Contudo, o relojoeiro disse que era preciso o maior cuidado, porque as molas estava gastas, e não havia possibilidade de substituí-las: nesse caso o rouxinol não cantaria mais. E grande foi a lamentação - só uma vez por ano poderia o passarinho cantar, e isso mesmo...ainda seria muito!
   Foi então que o mestre de música fez um pequeno discurso, todo formado de palavras difícies, dizendo que gosto acabrunha a nação. Os chineses gostava muito do rouxinol estava tão bom como antes - e é claro que estava mesmo.
    Correram ainda cinco anos; e eis que um grande desseu imperador, e agora vinham a saber que ele estava muito doente, e que não tinha vida para muito tempo. Já fora escolhido o novo imperador, e o povo, reunido na rua, indagava do mordomo como estava o antigo.
   -P! - disse ele, sacudindo a cabeça.
   E, estendido no seu grande leito deslumbrante, lá estava o imperador, lívido e gelado. Toda a Corte o julgou morto, e todos correram a render homenagem ao novo senhor. Os camareiros saíram, para tratar de seus negócios, e as camareiras resolveram reunir-se para tomar café. Por toda a casa tinham estendido tapetes, que abafavam o rumor dos passos, de sorte que reinava no palácio um silêncio absoluto.
   Mas o imperador ainda não estava morto; lívido e gelado, jazia estendido no grande leito deslumbrante, adornado de longas cortinas de veludo e pesadas borlas de ouro. Uma alta janela ficara aberta, e o luar caía sobre o imperador e sobre o passarinho artificial.
   O pobre imperador mal podia respirar; parecia-lhe que tinha um peso sobre o peito: abriu os olhos e viu que era a Morte, que estava sentada ali, e pusera na cabeça a sua coroa de ouro. Trazia em uma das mãos a espada do imperador e na outra a sua linda bandeira. E em roda dele, de dentro das pregas das esplêndidas cortinas de veludo, cabeças estranhas espiavam: algumas medonhas, mas outras muito amáveis e humildes. Eram todas as ações do imperador - boas e más - que ali estavam diante dele, agora, que tinha a Morte sentada sobre o coração.



   - Lembra-te disto? - sussurrava uma a outra. - Lembras-te daquilo?
    E contaram-lhe tantas coisas, que o suor começou a lhe escorrer da fronte.
    - Eu não sei o que é isto! - disse o imperador. - Música! Música! O grande tambor chinês! Para abafar o que estão dizendo!
   Mas continuavam falando, e a Morte acenava com a cabeça, como fazem os chineses, a tudo quanto diziam.
   - Música! Música! - gritava o imperador. - Oh! passarinho precioso, passarinho de ouro, canta, canta! Dei-te regalias e presentes valiosos; pendurei minha chinela de ouro ao pescoço- canta agora! Canta!
   Mas o passarinho permanecia calado; ninguém estava ali para lhe dar corda, e sem isso ele não podia cantar. E a Morte continuava a olhar para o imperador, com seus grandes olhos vazios, quieta, espantosamente quieta.
   Então soou de repente, vindo da janela, o canto mais lindo que se pode ouvir. Era o rouxinolzinho vivo, que estava ali fora, pousado em uma árvore próxima. Ouvira falar no estado em que se achava o imperador, e viera cantar para ele, um canto de consolo e de esperança. E enquanto ele cantava os espectros foram ficando pálidos, cada vez mais pálidos; o sangue começou a circular mais depressa nos membros enfraquecidos do imperador; e até a Morte se pôs a escutar; e disse:
   - Continua, rouxinol, continua!
   - Mas dar-me-às essa esplêndida espada de ouro? E não me darás essa rica bandeira? E também a coroa do imperador?
   E a morte lhe foi dando aqueles tesouros, de um em um, cada vez que ouvia novo canto. E o rouxinol cantava e cantava; cantou o cemitério tranquilo, onde vicejam rosas brancas; onde recende tão suavemente a flor do sabugueiro; onde as lágrimas dos vivos vem regar a grama fresca. Então a Morte começou a sentir saudades do seu jardim, e foi flutuando para a janela, na forma de um nevoeiro esbranquiçado e gélido.
      - Obrigado!Obrigado! - disse o imperador. - Oh
   Passarinho celestial! Conheço-te, sim! Desterrei-te do meu país e do meu império, e ainda assim vieste enxotar do meu leito aquelas medonhas carrancas, e expulsaste a Morte do meu coração! Como hei de recompensar-te?
    Já me recompensaste - replicou o rouxinol.- Arranquei lágrimas dos teus olhos, quando cantei para ti da primeira vez- jamais hei de esquecê-los. São  essas as joias que alegram o coração de um cantor. Mas agora dorme, e ficarás de novo forte e bem disposto. Vou cantar para adormeceres.
 


 


    E cantou; e o imperador caiu em um sono profundo e suave. Ah! que sono calmo e reparador!
   Iluminava-o o sol, que entrava pela janela, quando ele despertou, restabelecido e forte. Nem um único servo voltara ainda, porque todos pensavam que estava morto; só o rouxinol permanecia ao seu lado, e cantava.
   - Agora ficarás comigo para sempre! - disse o imperador. - Cantarás como quiseres; e vou quebrar o passarinho artificial em mil pedaços.
   - Não- replicou o rouxinol.- Ele cumpriu a sua missão enquanto pode. Conserva-o, como o fizeste até agora. Eu não posso construir meu ninho no palácio, para morar nele; mas deixa-me vir quando tiver vontade; pousarei, ao por do sol, naquele ramo acima da janela, e cantarei alguma coisa que te deixe alegre e pensativo ao mesmo tempo. Cantarei os felizes e os que padecem. Cantarei o bem e o mal que teceram. O cantorzinho de asas voa por toda a parte: vai ter com o pobre pescador, pousa no teto do aldeão, e de todos os que vivem longe de ti e da tua Corte. Ouvindo meu canto, viverás com o teu  povo.
   E o imperador ali estava embevecido, de pé, trajado com o seu manto imperial - porque se vestira sozinho- apertando ao peito à espada, pesada de ornatos de ouro.
   Entraram então os servos, que vinham ver seu imperador defunto. E...sim, ele lá estava, o seu imperador, e apenas lhes disse:
     - Bom dia!
FIM

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