quarta-feira, 14 de setembro de 2016

NO QUARTO DAS CRIANÇAS - CONTOS DE ANDERSENN

 O papai e a mamãe e os irmãos tinham ido ao teatro. Só ficaram em casa a Ana, que era muito pequena, e  o avô.
   Mas o avô disse:
   - Nós também havemos de ter uma comédia. E vai começar já, já.
   - Mas nós não temos teatro - disse a menina.- E não temos ninguém para representar...A minha boneca velha não pode, porque ela é muito feia; e a nova, a nova não há de amarrotar assim o vestido, que é tão fino...
   - Ora, atores a gente arranja: é só contentar-se com o que tem. Vamos construir o teatro. Aqui vai este livro de pé, lá outro, e mais outro...uma fila oblíqua. Agora  outros  três do outro lado, assim. Pronto: já temos os bastidores. Aquela caixa velha pode servir de fundo: é só virar o fundo para cima. O cenário representa uma sala, isso logo se vê. Precisamos agora arranjar os personagens.Vejamos o que há nesta caixa de brinquedos...Primeiro, os personagens, depois faremos a comédia: uma coisa depois outra, e tudo sairá bem. Aqui está um fornilho de cachimbo, e ali uma luva sem par: serão pai e filha.
  - Pois sim, vovô!  Mas são só dois...Oh! Aqui está o colete velho do meu irmão...Ele poderá também desempenhar um  papel?
   - Tem tamanho suficiente para isso...Pode fazer o galã. Não tem nada nos bolsos, e isso não deixa de ser interessante: é a metade de um namorado infeliz...E aqui temos um quebra-nozes em forma de bota, e com espora. Arre! Como a bota se pavoneia, e pisoteia tudo...Pois ela vai set o pretendente antipático, que a mocinha aborrece...E agora que gênero de peça preferes?  Uma tragédia, ou um drama de família?
   - Um drama de família, sim, vovô? Todos gostam tanto disso...O senhor conhece algum?
   - Sim, centenas! Os que o público preferem são traduzidos do francês, mas esses não convêm para uma meninazinha como tu...Mas a gente pode escolher um mais conveniente. No fundo, todos são iguais. Pois bem! Vamos lá! Entrem por aqui, senhoras e senhores...O drama de família mais novo! Quinhentas representações, com a casa lotada! Vejamos agora qual é o elenco.
   E o avô pegou o jornal, fingindo que lia:
       
 " O FORNINHO E O BOM RAPAZ"
        - Drama familiar em uma ato - 
          Personagens:
Senhor Fornilho - pai.
Senhorita Luva - filha.
Senhor Colete - galã.
Senhor de Bota - pretendente.


     -Vamos começar. Levanta-se o pano - como não temos pano, já está levantado. Todos os personagens estão presentes, não nos falta nada. Agora vou falar, como se eu fosse o Senhor Fornilho. Ele está muito zangado hoje...Bem se vê que foi feito de espuma-do-mar, e amarelada!
   Fala então, como se fosse o Fornilho:
  - Que tolice! Tudo isso é asneira, ora essa! Quem manda nesta casa sou eu! Sou o pai da minha filha! Ouçam, pois, o que estou dizendo: o Senhor da Bota é uma pessoa em que a gente pode mirar-se como em um espelho. Por cima é de marroquim,  e embaixo tem espora. Ora essa! É ele quem há de casar com  a minha filha!
   - Agora, Aninha, presta atenção ao que diz o Colete; agora é o Colete quem fala. Ele tem a gola virada e é muito modesto, mas sabe o que vale, e tem toda a razão quando diz:
  - Sou imaculado! E devem tomar também em consideração a fazenda! Fui feito de legítima seda, e tenho galões.
   A isso acudiu logo o Senhor Fornilho:
   - Mas é só no dia do casamento! Depois, acabou-se! A sua cor não se mostrou muito firme na lavagem. Agora o Senhor de Bota é a prova d'água, é feito de couro forte, e muito macio. Sabe ranger, sabe fazer a espora tinir! E tem feições italianas.
  - Mas eles deviam falar em verso! - exclamou a Aninha. - Dizem que é a coisa mais linda que há...
  - Pois sim, podem falar em verso, podem. Se o público assim o determina, fala-se em verso...Olha para a Senhorita Luva, vê como estende as mãos...e diz:
  
   " Hei de me empenhar, hei de me empenhar,
          Hei de ter um par!
    Mas não o consigo...não posso alcançar...
    Já sinto meu couro, de dor, estalar!"

O Senhor Fornilho:
  - Asneiras...

- Agora é o Colete quem fala:

"Luva, minha bem-amada!
 Oponha-se quem quiser;
 Eu aqui declaro a todos:
 Hás de ser minha mulher!"


Aqui o Senhor de Bota começa a dar pontapés, e derruba três bastidores, enquanto Aninha grita:
   - Mas que maravilha!
   - Silêncio! Silêncio! - branda o avô. - O aplauso silencioso mostra que o público que está na platéia- porque tu estás na platéia - é um público culto. Agora a Senhorita Luva vai fazer uma mesura, e depois cantará a sua grande ária, acompanhada de castanholas:
    " E quem não tem boa voz,
      E não canta de verdade,
      Cantará ' coricocó!'
     Na frente da sociedade.  

 - E agora é que chega o momento mais empolgante, Aninha!  O que há de mais  importante, em uma comédia . Olha, o Senhor Colete entreabriu-se; vai falar. E é a ti que ele se dirige, para que batas palmas no fim. Mas...não, não batas palmas; é mais distinto. Repara...ouve o ruge-ruge da seda...Ele começa:
   - Estou extraordinariamente exasperado! Cuidado! Começa agora a intriga! O senhor é o Fornilho, bem sei: mas eu sou o bom rapaz...Zás-trás! Pronto! Sumiu-se o Fornilho!
- Vês, Aninha, como o cenário e a mímica são perfeitos? O Senhor Colete pega no velho Fornilho e mete-o no bolso... O Fornilho lá fica escondido, e o Colete diz:
   - Agora está o senhor dentro do meu bolso, e não poderá sair daí enquanto não me prometer em casamento a sua filha, a Senhorita Luva da Esquerda, a quem darei a minha Direita!
    - Mas é extraordinário! - gritava aninha.
   - Ouve agora o que responde o velho Fornilho:

 " Eu ouço perfeitamente,
  Mas...parece que estou tonto...
  Que é do meu antigo espirito,
  Que dantes era tão pronto?
  Meu tubo onde foi parar?
  Se saio desta armadinha,
  Prometo; Com minha filha,
  Irás depressa casar!"

- Acabou-se a comédia? - perguntou Aninha.
 - Qual! Acabou somente para o Senhor de Bota. Agora os namorados ajoelham, e ela canta:

   " Ó meu pai!"
 e o namorado canta também:

   " ...sai escondido!
   Vem teus filhos abençoar!"

  Ambos recebem a benção, celebra-se o casamento. Os móveis cantam em coro;

     "Tilintintim! Tilintintim!
   Já se acabou a comédia!
    Tilinrintim!"

- Agora sim, vamos bater palmas; vamos  chamar todos os atores, e os móveis também, porque são de acaju!
  - Vovô, a nossa comédia não foi tão boa como a que eles foram ver lá no teatro de verdade?
  - A nossa é muito melhor! É mais curta, não custa nada, e serviu para nos entreter até a hora do chá.
FIM




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