domingo, 4 de setembro de 2016

A HISTÓRIA QUE A VELHA JOANA CONTOU - CONTOS DE ANDERSENN

    




   O vento murmurava na copa do velho salgueiro. Parece que o vento canta uma velha cantiga, e a árvore a repete. Se não a entendermos, pergunta à velha Joana do Asilo, a velha Joana que envelheceu na aldeia...
    Há muitos, muitos anos, no tempo em que a estrada real ainda passava por ali, já árvore era alta e bonita. Erguia-se, como ainda hoje se ergue, em frente à cabana de taipa do alfaiate, junto ao charco, onde naquele tempo o gado ia beber, e os filhos dos camponeses, nos dias de verão, corriam nus chapinhando na água. À sombra da árvore erguia-se um marco milionário, de pedra talhada - mas está deitado no chão, coberto da ramagem da amoreira silvestre.
   A estrada nova, foi aberta para além da quinta grande, enquanto a antiga se transformava em um atalho que corta os campos, e o lago se convertia em um charco, coberto de lentilhas-d'água. De vez em quando pula lá dento um sapo; abre-se então a superfície verde, e aparece a água negra. Ainda crescem em roda os mesmos caniços, trevos do banhado e espadanas douradas.
   A casa do alfaiate foi ficando cada vez mais velha, mais inclinada. O telhado era um viveiro de musgos e sempre-vivas. O pombal, em ruínas, servia de morada aos estorninhos. E as andorinhas iam construindo os ninhos, um atrás do outro, no beiral do telhado e na empena, para trazer sorte àquele lugar.
  Em outros  tempos, era esse o aspecto da casa. Morava ali, solitário, o velho Rasmus, meio idiota. Ali nascera, ali brincara, saltando pelas valetas e pelas sebes, varando o charco, todo despido, e trepando ao velho salgueiro.
   Esse erguia, magnífico, a copa cerrada e vasta; apesar de ter o tronco fendido e encurvado ao peso dos anos e das tempestades, ainda era muito lindo. O vento enchera-lhe as fendas de terra, e brotavam nelas a grama e as ervilhas. Até uma sorveira lá se criara.
   Na primavera as andorinhas, já de volta, esvoaçavam ao redor da árvore e do velho telhado, e remendavam e cimentavam seus ninhos. Mas o velho Rasmus deixava o seu ir-se mantendo como estava, ou ir caindo em ruínas: não o remendava nem o escorava . E repetia a frase que já o pai usara:
   - De que serve?
Ficava em casa, quando as andorinhas iam embora; elas, porém, retornavam, como animaizinhos fies.Também os estorninhos iam embora e voltavam assobiando a sua canção. Dantes Rasmus cantava ao desafio com eles.
     O vento murmurava na copa do velho salgueiro. Murmura ainda hoje. Parece que o vento canta uma velha cantiga, e a árvore a repete. Se não a entenderes, pergunta à velha Joana do Asilo. ela sabe a  cantiga. Sabe tanta história, que até parece uma crônica viva, cheia de velhas recordações...
   Quando o alfaiate de aldeia, Ivar Olsen, foi morar ali com sua esposa, Maren Olsen, a casinha ainda estava nova e bonita. Naquele tempo a velha Joana era ainda criança. Era filha do tamanqueiro, um dos homens mas pobres da paróquia. A esposa do  alfaiate, que não precisava preocupar-se  com o sustento da família, dava-lhe muitas vezes um pedaço de pão. Maren mantinha boas relações com a senhora da quinta. Andava sempre alegre e risonha, e jamais desanimava. Servia-se tão bem da boca como das mãos, e manejava a agulha com a mesma rapidez que a língua. Ainda assim achava tempo para cuidar da casa e dos filhos, que chegavam quase a uma dúzia: eram onze ao todo, porque o décimo-segundo não aparecera.











    O morgado resmungava:
   - Gente pobre sempre tem o ninho cheio de filhotes. Se ao menos pudessem afogá-los, como os gatinhos novos, conservando somente um ou dois robustos, ainda vá!
   - Deus me livre! - dizia a mulher do alfaiate. - Os filhos são uma benção de Deus, e enchem a casa de alegria. Cada um deles vale um Padre-Nosso a mais. Se houver falta de víveres e forem muitas as bocas a encher, a gente trabalha mais e acha uma solução honesta para o caso. Deus Nosso Senhor não nos abandona, se nós não o abandonarmos.
    Apoiou-a a morgada com um gesto amável, acariciando-lhe as faces, como costumava fazer. Dantes até a beijava: era então uma meninazinha, e Maren a sua aia. Estimavam-se, pois, com uma feição constante e fiel.
   Todos os anos, pelo Natal, iam da quinta para a casa do alfaiate provisões de inverno: uma barrica de farinha, um porco, dois gansos, um barrilzinho de manteiga, queijos e maças. Nessa ocasião Ivar Olsen aparecia contente, de rosto corado; mas dentro de poucos dias tornava à sua frase favorita:
   - De que serve?
  Reinava na casa o asseio e o conforto. As janelas eram veladas por cortinas, e no peitoril floresciam cravos e balsaminas. Da parede pendia, esticado em uma moldura, o pano com os nomes da família, e ao pé dele a carta de noivado, redigida em versos feitos pela própria Maren. E ela mostrava, com prazer, como combinavam bem as rimas. Orgulhava-se muito do nome de Olsen, por ser essa a única palavra da língua dinamarquesa a rimar com "polse".
       -É um tanto agradável ser diferente dos outros em alguma particularidade- dizia ela, rindo.
    Maren estava sempre de bom humor. Nunca dizia, a maneira de seu marido: " Que adianta?" A sua locução preferida era: " Confia no bom Deus!" E cumpra à risca o preceito garantido, assim, o equilíbrio na vida do lar. Os filhos cresciam e prosperavam. Saíam pelo mundo, em busca de ocupação, e tornavam-se homens de valor Rasnmus era o mais moço. Fora criança tão linda que um pintor o tomou por modelo para um de seus quadros. E a tela se achava no castelo do rei: a senhora do morgado a vira num salão e reconhecera nela, imediatamente, o pequeno Rasmus.
    Mas sobreveio uma época difícil. O alfaiate contraiu a gota em ambas as mãos. Nenhum médico pode aliviar o mal, e a benzedeira da sábia Stine também nada adiantou.
    - Não se deve perder a coragem - disse Maren. - A tristeza não ajuda. E, se pararam as mãos que nos sustentavam, é preciso que eu aprenda a usar as minhas com mais rapidez. Além disso, Rasmus também já é capaz de manejar bem a agulha.
     - Ele não deve ficar preso ao trabalho o dia todo - disse a mãe. - Seria um crime contra a criança. É preciso que também tenha tempo para brincar.
   E nas horas de folga estava ele sempre com a Joana do tamanqueiro. A menina era muito pobre e nada bonita, Andava descalça e com roupas rasgadas; não tinha ninguém que as remendasse e ela mesma não se lembrava de que poderia fazer isso com as próprias mãos. Era criança e vivia alegre como um pássaro, à benéfica luz do sol de Deus.
   Rasmus e Joana costumava brincar junto ao marco de pedra, à sombra do grande salgueiro. Ele arquitetava grandes planos: queria tornar-se um alfaiate de nomeada, que morasse na cidade e ocupasse muitos oficiais, como um que o pai conhecia. Lá, principiaria como oficial e chegaria a mestre. Então Joana iria visitá-lo e, se entendesse de cozinha, poderia tratar da comida para todos e ter o seu quarto na casa.
    Joana hesitava em acreditar nesses projetos, apesar de Rasmus falar neles com uma convicção e uma fé inabaláveis.
   E assim permaneciam sob a velha árvore, com o vento a murmurar na ramaria. No outono, caía uma folha após outra, enquanto a chuva pingava dos galhos desnudos.
    - Eles voltarão a brotar - disse Maren.
    - Que adianta? - retrucou o marido. - Ano novo, cuidado novo.
    - A despensa está cheia - tornou Maren - graças à senhora do morgado. E eu ando bem de saúde e com muita força. Seria um crime a gente queixar-se.
    Os senhores demoraram-se no morgado durante as festas de Natal, mas após o dia de Ano Bom seguiram para a cidade, onde passaram o inverno entre prazeres e divertimento. E recebiam convites até para os bailes e festas da Corte.
    A morgada mandara vir da França dois riquíssimos vestidos, tão perfeitos no corte e no acabamento que a mulher do alfaiate não se cansava de admirá-los. Nunca vira coisa igual. E pediu licença para que o marido também os apreciasse.
    - Não houve ainda alfaiate de aldeia que pusesse os olhos em uma obra perfeita assim - disse ela.
    O alfaiate olhou-os e não fez nenhum comentário. De caminho para casa, porém, como se pensasse alto, lá veio a sua frase habitual:" Que adiante? " Mas desta vez suas palavras se tornaram verdade.
   Havia começado  a série de bailes e festas. Os senhores mal tinham chegado à cidade, quando, em meio àquela magnificência toda, faleceu o velho dono do morgado- e sua esposa nem teve oportunidade de usar os esplêndidos vestidos. Andava de luto fechado, de roupas pretas da cabeça aos pés; não tolerava nem sequer uma renda branca. Todos os criados usavam crepes, e até a carruagem de gala foi revestida de negro.
    Era uma noite fria de inverno; a neve cintilava à luz das estrelas. O carro fúnebre - novo em folha- transportou o féretro da cidade para a igreja do morgado, onde seria feita a inumação no jazigo da família. O administrador das terras e o burgomestre da aldeia vinham à frente do cortejo, a cavalo, com tochas acesas. A igreja estava iluminada. O pároco, no portão aberto, aguardava a chegada do morto. O caixão foi colocado em um catafalco, no meio do templo. A congregação toda o rodeou. Fez-se um belo necrólogo e cantou-se um salmo. A senhora também estava presente às cerimonias fúnebres; acompanhara a translação do féretro na carruagem de gala revestida de preto, por dentro e por fora. A congregação nunca presenciara uma solenidade assim, com tanta pompa. Durante todo o inverno se falou do enterro.
     - Por aí se vê o prestígio que tinha o finado - dizia a gente da aldeia. - Nasceu de família distinta e teve um enterro de verdadeiro fidalgo.
   - Que adianta? - retrucava o alfaiate. - Agora ele não possui nem vida nem fortuna. A nós, pelo menos, resta a vida.
    - Não fales assim - lhes disse Maren. - Ele tem a vida eterna, lá no outro mundo.
    - Como sabes isso? - perguntou o alfaiate. - Um homem morto dá mas é um bom adubo. E até para isso o morgado era fino demais. Tiveram de enterrá-lo na cripta...
   - Deixa de proferir blasfêmias! - acudiu a mulher. - Repito: ele tem agora a vida eterna.
  - Como sabes isso? - insistiu o alfaiate.
 Maren cobriu com o avental a cabeça do pequeno Rasmus, para que o menino não ouvisse as palavras do pai. Levou-o ao galpão e explicou-lhe, em voz baixa:
    - O que acabas de ouvir, meu filho, não foi dito por teu pai. O diabo é que passou pela sala e imitou a voz dele. Reza comigo um Padre- Nosso.
    E ela juntou as mãos da criança, para a oração.
   - Bem, estou contente outra vez - disse Maren.
   Terminara o ano de recolhimento e pesar. A senhora do morgado trajava meio-luto, e a alegria começou a voltar ao seu coração. Comentava-se que havia um pretendente e que já pensavam nas bodas. No Domingo de Ramos, à hora do sermão, deviam ser feitos os proclamas. Segundo se soube, o novo dono das terras era canteiro ou escultor: a gente do lugar não sabia bem como chamar àquela profissão. O noivo, diziam ainda, não pertencia à alta aristocracia, mas tinha uma bonita figura e era dono de grande saber.
   - Que adianta? - disse o alfaiate.
   Os proclamas foram feitos no Domingo de Ramos. A igreja estava cheia de fies. Lá se achavam também o alfaiate, Maren e Ramus. Nos último tempos a família do alfaiate tivera de reduzir as despesas com o vestuário. As roupas haviam sido viradas uma e outra vez; depois foram cerzidas e remendadas. Agora, pai , mãe e filho andavam de roupas novas: mas essas roupas eram pretas, como se eles estivessem de luto. É que haviam aproveitado. o revestimento da carruagem fúnebre. Ninguém devia saber isso, mas todo o mundo descobriu. A sábia Stine e outras mulheres - também sábias, embora não fizessem profissão disso - disseram que aquelas roupas trariam enfermidades à casa do alfaiate.
   A Joana do tamanqueiro chorou ao ouvir essas palavras. E, realmente, a profecia cumpriu-se: no primeiro domingo depois da Trindade falecia o alfaiate Olsen. Maren tinha agora de cuidar de tudo; e foi o que fez, corajosamente.
    Um ano após seguia Rasmus para o seu estágio de aprendizagem na casa de um mestre, na cidade. É certo que esse alfaiate tinha apenas um oficial e não dez. Mesmo assim, Rasmus ficou contente, e estava sempre de cara alegre. Joana, entretanto, chorava. Ela mesma não sabia que lhe ia custar tanto a separação. Maren ficou na velha casa, atendendo  o antigo negócio.
   Por aqueles tempo, a nova estrada foi concluída. A velha, que passava pelo salgueiro e pela casa do alfaiate, tornou-se um carreiro invadido pelo capim. Lentilhas dos rios estenderam-se na superfície do lago. O marco milionário caiu, já que terminara a sua função. Mas a árvore conservou-se bela e vigorosa. O vento murmurava nas folhas e nos longos galhos do velho salgueiro.
   Foram-se as andorinhas; foram-se os estorninhos. Mas voltaram na primavera; e quando voltaram pela quarta vez também Rasmus regressou ao lar. Passara pelo exame de oficial. Tornara-se  um rapaz bonito e esbelto. Tencionava preparar-se para uma viagem ao estrangeiro. Mas a mãe o reteve: seus irmãos se haviam sumido e, sendo ele o único que lhe restava, deveria ficar em casa. Poderia arranjar bastante trabalho pelas redondezas, costurando ora numa quinta ora noutra. Isso também era viajar. E Rasmus segui o conselho da mãe.
    Assim, tornou a dormir sob o antigo teto; tornou a sentar ao pé do velho salgueiro, e a ouvir o murmúrio do vento nas folhas verdes. Rasmus, além de ser um rapaz de bela aparência, sabia cantar que nem um pássaro; era entendido em velhas e novas canções. A sua chegada causava sempre alegria nas quintas grandes, principalmente na de Klaus Hansen, o segundo em fortuna entre os camponeses da aldeia.
   Klaus tinha uma filha, Elsa, bela como as rosas do jardim e alegre como um pássaro em liberdade. É verdade que algumas pessoas maliciosas diziam que ela vivia rindo para exibir a alvura dos dentes; mas o que é certo é que aquele modo brincalhão assentava bem na sua pessoa.
  Elsa e Ramus enamoraram-se um do outro; mas nenhum dos dois se atreveu a falar. E foi daí que ele se tornou melancólico: herdara uma parte demasiada da mentalidade do pai. Só estava alegre quando via Elsa. Então cada qual ficava mais contente; riam, gracejavam e até pequenas diabruras faziam um para o outro. Mas, apesar das melhores oportunidades, ele não lhe disse palavra alguma sobre o seu afeto. " Que adianta? " - remoíam seus pensamentos. "Os pais dela hão de exigir que o pretendente seja rico. Seria melhor que eu me fosse embora. " Mas era incapaz de apartar-se da moça.
   Joana, a filha do tamanqueiro, servia como criada, e por sinal das mais humildes, na mesma quinta. Empurrava o carro do leite até o curral, onde ordenhava as vacas, em companhia de outras serviçais. Tinha também de remover o esterco, e só raras vezes via a Rasmus e Elsa. Notou, entretanto, que ambos se queriam como noivos.
   - Que sorte Ramus! - disse ela consigo. - E ele bem merece.
   Mas seus olhos estavam rasos de lágrimas, embora nada houvesse de que chorar.
   Havia uma feira na cidade. Klaus Hansen convidou Rasmus para ir no seu carro . E ele se viu sentado ao lado de Elsa, tanto na ida como na volta. O contentamento transparecia no rosto do rapaz; e no entanto ele não dizia palavra sobre o seu amor.
    - Ele tem de ser o primeiro a falar - pensava Elsa: e nisso tinha razão. - Se não quiser abrir a boca, vou dar-lhe um susto.
   E logo correu o boato pela quinta de que o proprietário mais rico da aldeia pedira a mão de Elsa - o que era verdade. Mas ninguém conhecia a resposta que ela lhe dera.
  Os pensamentos faziam a zunir a cabeça de Rasmus. Certa noite Elsa enfiou no dedo um anel de ouro e perguntou-lhe o que significava aquilo.
   - Um noivado - disse ele.
   - E com quem achas que seja? - perguntou a moça.
    Rasmus, contra a vontade, disse o nome do pretendente.
     - Adivinhou - disse ela, fugindo da sala. 
     Mas ele também se sumiu. Voltou para casa, atordoado de desespero e de mágoa. e  preparou o saco de viagem. Nada adiantaram as lágrimas da mãe. Queria correr  mundo.
   Quando cortou um bordão do grande salgueiro, Rasmus assobiava, como se estivesse contente por poder partir  e ver as maravilhas todas de outras terras. Despediu-se da mãe e ganhou a estrada nova. Joana vinha por ali com um uma carroça cheia de estrume. Ela não lhe notara  a presença e ele fez como se não a visse. Escondeu-se atrás da sebe e ali ficou, até que Joana passasse...
    Ramus saiu, assim, para o mundo, sem que ninguém soubesse para  onde se dirigia.
   A mãe estava certa de que ele votaria antes do fim do ano.
    - De que qualquer jeito, voltará; não pode abandonar nem a mim nem a casa.
     Elsa, porém, tinha menos confiança, depois de um mês de ansiosa espera, foi consultar, clandestinamente, a sábia Stine. A velha nada mais sabia além do Padre-Nosso, mas era capaz de, benzendo, provocar, milagres e de interpretar as cartas e a borra de café. Por esse meio, chegou a ver Rasmus, através da borra de café. Estava numa cidade estrangeira, cujo nome, entretanto, não conseguiu identificar. Ali havia soldados e belas raparigas, e ele tencionava tomar o fuzil ou uma dentre as jovens.
    Elsa não podia suportar essa ideia. Estava disposta a dar todas as suas  economias para vê-lo regressar. Mas ninguém deveria saber da sua interpretação.
    E a velha Stine explorava o caso, afirmando que sabia um meio, se bem que perigoso para aquele a quem se destinava a magia. Contudo, não havia outro remédio. Ela poria no fogo uma panela, e a faria ferver em direção a Rasmus. Nesse caso, ele tinha de regressar, por mais longe que se encontrasse. Poderiam decorrer meses, é verdade; mas que ele voltaria, isso podia garantir, se ainda estivesse vivo.
   Então ele teria de caminhar sem trégua nem descanso, de dia e de noite, através de montes e lagos, ao longo de caminhos escorregadios e pedregosos, por mais fatigado que se sentissem seus pés. Mas deveria regressar! Não poderia senão regressar!
   A lua se achava no primeiro quarto. A velha Stine asseverou que essa era a época mais apropriada para começar o trabalho. Lá fora uivava a tempestade, sacudindo o velho salgueiro. A feiticeira cortou um galho e dobrou-o, fazendo um nó, para que Rasmus sentisse necessidade de tornar à casa da mãe. Foram procurar no telhado musgos e sempre-vivas, que atiraram na panela de barro posta ao fogo. Elsa teve de arrancar uma página do seu livro de orações. Por acaso, tirou a última, a das erratas.
   - Não faz mal- disse a velha, ao deitá-lo também à panela.
     Muitas coisas entrava na cocção, que tinha de ferver e continuar a ferver até o regresso de Rasmus. O galo preto da feiticeira teve de desfazer-se da sua crista vermelha, que entrou na panela de barro.  O anel de ouro de Elsa teve igual destino. Ela nunca tornaria a vê-lo, preveniu a velha. Sim, senhores! Era muito sábia a velha Stine. Mas muitos outros ingredientes, que não sabemos mencionar, foram fervidos na panela de barro, que sempre se achava ao fogo, sobre carvões em brasas ou cinzas quentes. Apenas Elsa e a feiticeira sabiam da história.
     Chegou a lua nova, e chegou a lua cheia. E Elsa sempre a perguntar:
   - Ainda não o vês chegar?
   - Vejo muita coisa - era a resposta.- Só não posso enxergar a distância que ele tem à sua frente. Agora já passou pelos primeiros montes. Acha-se no mar, com tempo desfavorável. Ah! agora atravessa grandes florestas. Ele anda com bolhas nos pés e febre na cabeça, mas tem de tocar para a frente.
   - Não, não! - gritou Elsa. - Isso não!
    - Agora não pode mais parar - tornou a feiticeira. - E se nós suspendêssemos com isto ele caíra morto na estrada.
    Decorreram dias e decorreram anos. A lua brilhava redonda e cheia. O vento murmurava no velho salgueiro. No céu apontou um arco-íris.
  - É um sinal!- afirmou Stine. - Agora Rasmus há de chegar.
   Mas ele não chegou.
   - Estou farta disso! - queixou-se Elsa.
   Ia à casa da velha mais espaçadamente, e já não levava presentes para ela. O seu pesar foi amortecedor, e um belo dia toda a gente da aldeia soube que Elsa estava noiva do rico proprietário, seu antigo pretendente.
    O banquete de bodas durou três dias. Dançava-se ao som de violinos e flautas. Nenhum morador do lugar ficara esquecido. Maren Olsen também esteve presente e, finda a festa, lá voltou ela, com o pacote que recebera das sobras.
  A tranca fora retirada na sua ausência e o portão se achava aberto. Rasmus estava sentado no seu quarto. Regressara justamente nesse dia!
   - Rasmus! - gritou a mãe. - És tu mesmo? Estás doente? Mas ainda assim eu me sinto tão feliz por teres vindo!
   Ele contou que nas últimas semanas o seu pensamento se voltava sem sossego para a mãe; sentia saudades da casa, da velha árvore. Era estranho como o salgueiro lhe aparecia repetidamente em sonhos; e, sempre, à sua sombra, a pobre da Joana. Não falou, porém, em Elsa.
   Rasmus estava doente e teve de ficar de cama. Naturalmente não fora por influência da panela de barro, embora a velha Stine e Elsa acreditassem nisso. Mas tanto uma como outra silenciaram a respeito.
  A febre que atacara Rasmus era contagiosa; por isso ninguém o visitava, com exceção da Joana do tamanqueiro, que chorou ao Vê-lo naquele estado. O médico receitara um remédio, mas o doente não quis tomá-lo.
  - Que adianta? - disse ele.
   - Assim não te podes curar - observou a mãe. - Confia  em ti e no bom Deus! Quando novamente te ouvir cantar e assobiar, morrerei de bom grado.
   E Rasmus se refez da enfermidade. Mas a mãe, por sua vez, adoeceu; e Deus a chamou.
   A solidão reinava agora na casa; e a indigência ali entrou.




    No estrangeiro, ele vivera uma vida desregrada. Isso, e não o cozimento da panela de barro, lhe devorara a medula e acendera a febre em seu corpo. Rasmus tinha agora o cabelo ralo e grisalho. não trabalhava, nem tinha gosto para isso.
  - Que adianta? - dizia ele, preferido a taverna à igreja.
   Uma noite de outono, ia ele para casa, de volta da taverna, cambaleando, debaixo da tempestade e da chuva. Já fazia muito tempo que perdera a mãe. As andorinhas e estorninhos, sempre tão leais, haviam desaparecido. Mas Joana, a filha do tamanqueiro, essa não se fora. Ela o alcançou e seguiu um bom pedaço lado a lado com ele.
   - Endireita-te, Rasmus! - disse ela.
    - Que adiante? - retrucou ele.
    - Essa locução é feia- tornou Joana. - Lembra-te das palavras de tua mãe: " Confia em ti e no bom Deus!" Não é isso o que andas fazendo, Rasmus. mas tens de te corrigir. Não tornes nunca a dizer: " Que adianta?" E assim hás de arrancar a raiz dessa fraqueza.
    Ela o acompanhou até a porta e seguiu para a sua casa. Rasmus não entrou. Foi direito ao velho salgueiro e sentou-se na pedra do marco miliário, que caíra ao solo. O vento murmurava nos galhos da árvore; parecia que contava uma história. Rasmus respondeu ao vento, falando alto. Mas ninguém o ouviu, a não ser o próprio vento e o velho salgueiro.
  - Como faz frio! Está na hora de ir para a cama. Dormir, dormir!
   E lá se foi, ele não porém em direção à casa, mas ao charco, em cuja beirada tropeçou e caiu. A chuva batia e o vento era de enregelar. Ao nascer do sol, quando os galhos voavam sobre o lamaçal, Rasmus acordou.
   Foi nesse dia que Joana se instalou na casa do alfaiate.
   - A gente se conhece desde criança, Rasmus. Tua mãe me deu de comer e beber, e eu nunca poderei retribuir-lhe isso, Serei a tua enfermeira; e tu não morrerás, não.



    E Deus quis que ele vivesse. Mas passou-se muito tempo, até que apresentasse alguma melhora. Seguido tinha colapsos, ou fantasiava coisas confusas.
   Iam e voltavam andorinhas e estroninhos; e tornavam a ir embora. Rasmus envelhecera antes do tempo. A sua casa estava também cada vez mais decadente. E ele se via agora mais pobre do que a pobre Joana, a filha do tamanqueiro.
  - Tu não tens fé! - disse ela. - Se nós não tivéssemos Deus, que nos restaria então? Deves acompanhar-me à Comunhão, Rasmus.
   - Que adianta! - replicou ele.
   - A mim sempre me dá consolo - respondeu ela, sentida.
   - Joana tu te conservaste a mais fiel dentre todos.
   E ele a olhou, com os olhos fatigados e enternecidos.
   Rasmus tornara-se um homem velho. Mas Elsa, tampouco, ficara jovem. É preciso que a mencionemos, porque Rasmus nunca o fazia. Era avó, e tinha uma netinha muito galante. Um dia, brincava ela na rua, com outras crianças. Rasmus foi em sua direção, apoiando-se na bengala. Contemplou-a um instante e sorriu. Mas a neta de Elsa apontou com o dedo para ele, gritando: - Rasmus, o doente! - As demais crianças imitaram-lhe o exemplo, e começarem: - Rasmus, o doente! Rasmus, o doente! 
   Vieram dias cinzentos e frios, mais raiou por fim uma manhã cheia de sol.
   A igreja estava enfeitada de verdes ramos de bétula. O cheiro do bosque passava pelo recinto, enquanto o sol luzia através dos vitrais. Ardiam grandes círios no altar. Era o momento da Comunhão. Joana achava-se entre os fieis; mas Rasmus não estava presente. Foi justamente a essa hora que Deus o chamou para si.
   Desde então se passaram muitos anos. A casa do alfaiate ainda está de pé, mas ninguém a habita, e ela pode desmoronar à primeira tempestade. O charco está coberto de junco e trevo. o vento murmura uma cantiga na velha árvore. Se não a entenderes, pergunta à velha Joana ali do Asilo, a Joana do tamanqueiro...
   Que coração leal!
FIM

 






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