quarta-feira, 28 de setembro de 2016

O FEITO MAIS EXTRAORDINÁRIO - CONTOS DE ANDERSEN

   Casaria com a princesa, e ainda ficaria com a metade do reino o homem que realizasse o feito mais extraordinário.
   Não somente os moços, mas os velhos andavam a se esforçar, treinando o cérebro, os músculos e os tendões. Dois homens morreram de tanto comer; outro bebeu tanto que estourou - porque entendiam que era quilo que praticavam o feito mais extraordinário, ainda que não tivesse acertado com a solução. Até moleques da rua esforçavam-se por cuspir nas próprias costas, supondo que era isso o que há de mais difícil de executar.
   Foi marcado um dia para a exposição que cada um devia fazer do que considerava mais extraordinário. Faziam parte do júri crianças de três anos, e, subindo na escala da idade, havia juízes de mais de noventa.
   Houve, de fato, uma verdadeira exposição de coisas extravagantes; contudo não demorou o júri a chegar a uma acordo quanto ao vencedor; era o artista que fabricara um grande relógio de parede, executando, tanto no exterior como no interior, com engenho extraordinário. Ao bater as horas exibia o relógio quadros vivos, que indicavam as horas. Eram doze espetáculos inteiros, com figuras móveis, que cantavam e falavam.
    E era aquilo, certamente, o que havia de mais extraordinário - e nisso concordaram todos.
   O relógio deu uma hora; ergue-se Moisés no cimo de um monte, escrevendo nas Tábuas da Lei o primeiro Mandamento: " Eu Sou o Senhor teu Deus; não terás outros deuses diante de mim".
    Quando deram duas horas, surgiu o jardim do Paraíso; ali estava Adão e Eva, felizes, apesar de nada possuírem, nem sequer um guarda-roupa - coisa de que aliás não precisava mesmo.
   Às três horas apareceram os três Reis Magos; um era preto como carvão, mas a culpa não cabia a ele; o sol assim o tisnara. Traziam incenso e jóias.
   Às quatro horas mostravam-se as Estações : a primavera era representada por um cuco, empoleirado no galho verde de uma árvore; o verão por um gafanhoto sobre uma espiga de trigo madura; o outono apresentava um ninho vazio de cegonha; o inverno, uma velha gralha, daquelas que ficam a um canto da lareira, e sabem contar uma porção de histórias.
   Quando bateram as cinco, apareceram os cinco sentidos: o da vista era um óptico; o do ouvido, um violinista, com o seu instrumento; o do olfato vendia violetas e aspérculas; o paladar vinha vestido de cozinheiro, e o tacto era representado como um cego, apoiado ao seu bordão.
    Às seis, aparecia um jogador lançando os dados, num dos quais se via o lado dos seis pontos.
    Vinham agora os sete dias da semana; mas diziam outros que eram os sete pecados mortais: nesse ponto divergiam as opiniões, pois há estreita ligação entre uns e outros, de sorte que era difícil estabelecer distinção.
 Às oito aparecia um coro de monges, entoando a missa.


   As nove Musas acompanhavam as badaladas das nove horas; uma delas era funcionária do Instituto Astronômico, outra do arquivo Histórico, e as restantes pertenciam ao elenco do Teatro.
    Às dez em ponto reapareceu Moisés com as tábuas da Lei, onde estavam gravados todos os Mandamentos de Deus.
   Quando o relógio tornou a bater, apareceram onze meninas, saltando, dançando, e cantando:

           "Onze horas é má hora!
            Se não correres depressa
            Vem o tigre e te devora!"

   Ouviram-se então as doze badaladas; apareceu o guarda-noturno com a sua indumentária entoando a velha canção dos guardas:
             
              "Esta noite, à  meia-noite,
                Um salvador vos nasceu."

   E enquanto cantava, brotavam rosas, que iam se transformando em cabeças de anjos, suspensas por asas irisadas.
   Era magnifico tudo aquilo! O conjunto representava uma obra de arte sem igual, e todos concordavam em dizer que era aquele o feito mais extraordinário.
   O artista era um moço de coração bondoso, alegre como uma criança, cheio de atenções para com seus pais, que viviam pobremente. Diziam todos que merecia a princesa e a metade do reino.
   Chegou o dia do julgamento. A cidade inteira estava coberta de galas. A princesa sentava-se no trono acolchoado de crina - e nem por isso lhe parecia mais comodo nem mais agradável. Os juízes faziam sinais amistosos àquele que, sem nenhuma dúvida, seria o vencedor, e que lá estava, risonho e robusto, certo da vitória, pois realizara o feito mais extraordinário.
   Eis senão quando rompe por entre o povo um homenzarrão, alto e ossudo, gritando:
   - Alto lá! Quem vence sou eu! Sou o homem capaz de praticar o ato mais extraordinário!
   E- dito e feito! - meteu o machado naquela obra de arte, que se despedaçou em um momento. E eram só rodinhas e molas voando pelos ares.
    - Eu, eu o consegui! - exclamou o homem possante. - Meu feito é superior ao dele, e venci a todos: realizei o ato mais extraordinário - o que ninguém seria capaz de fazer!
   Destruir semelhante obra de arte!...Na verdade, fora a coisa mais inesperada e os juízes concordaram em que isso constitui o ato mais extraordinário.
    O povo disse o mesmo; e assim aquele homem obtera a mão da princesa e a metade do reino. A lei era a lei, ainda que aquilo fosse revoltante.
   Em todas as muralhas e torres da cidade ressoaram as trombetas:
  - Vai celebrar-se o casamento! Vai celebrar-se o casamento!
   A princesa, ainda que nada satisfeita com o que sucedera, mostrava um rosto alegre, e apresentou-se ricamente trajada.
    Ao escurecer a igreja resplandecia, toda iluminada; as donzelas nobres da cidade conduziram a noiva ao altar, entoando cânticos. Seguia o noivo a ordem dos Cavalheiros, e esses também cantavam. Quanto ao noivo, pavoneava-se, todo orgulhoso, como se não temesse que alguém pudesse jamais abatê-lo. De repente, quando tinham emudecido os cânticos, e o silêncio era tão grande que se poderia ouvir a queda de um alfinete, abre-se o grande portão da igreja e ouve-se um grande estrondo - Bum! Bum-bum-bum!
    Era toda a engrenagem do relógio, que vinha entrando pela nave a dentro; e foi postar-se entre os dois noivos. Ora, gente morta não pode tornar à vida, não há quem não saiba; mas uma obra de arte, essa sim, pode; o corpo  fora despedaçado, mas o espiríto não; e o espirito ali aparecia, como um fantasma, o que não era nada tranquilizador!
   Lá estava a obra de arte, tal como quando ainda permanecia intata. E foram ressoando as badalas dos sinos, uma após outra, até as doze horas, e a todas as horas iam aparecendo os respectivos vultos. Veio primeiro Moisés, com a fronte a arder, como se o cercassem labaredas de fogo. Atirou as pesadas tábuas de pedra aos pés do noivo, que ficou assim preso ao chão.
   - Não posso tirar-te daí - disse Moisés. - Tu me cortaste os braços. Ficarás pois seguro nesse lugar, c
 nesse lugar, como eu próprio fiquei!
    Vieram depois outros - Adão e Eva, os três Reis Magos, as quatro estações - e todos diziam ao noivo verdades terríveis. E ele ia ouvindo, entre outras coisas, apelos para que "criasse vergonha".
   Mas qual ! Ele não criou vergonha.
   Todos os vultos que anunciavam as horas foram saindo do relógio, e foram crescendo, crescendo, despropositadamente, já nem havia mais espaço na igreja para os homens de verdade.
   E quando ao soar a décima-segunda badalada, apareceu o guarda-noturno com todos os seus petrechos, inclusive a alabarda, houve estranha agitação entre os assistentes.
   O guarda foi direito ao noivo e abateu-o ali mesmo.
   - Fica aí agora! Quem com ferro fere, com ferro será ferido. Agora estamos vingados, nós e o mestre que nos criara!
   E, dirigindo-se aos vultos do relógio, bradou:
   - Vamo-nos!
   E sumiu-se toda o obra de arte.
   Mas as velas que ardiam iluminado a igreja, tornaram-se grandes flores de luz, e as estrelas douradas despediam raios rutilantes. O órgão tocou sozinho, e todos disseram que era isso o que houvera de mais extraordinário.
   Então falou a princesa:
   - Tenham agora a bondade de ir buscar o pretendente verdadeiro. Aquele que executou a obra de arte será meu marido.
   O artista estava na igreja. Todos o acompanharam alegrando-se com ele e cobrindo-o de bençãos.
    Não havia ali um único homem que sentisse inveja dele.
   E isso sim - isso foi o acontecimento extraordinário.
FIM

Alabarda é uma arma antiga composta por uma longa haste. A haste é rematada por uma peça pontiaguda, de ferro, que por sua vez é atravessada por uma lâmina em forma de meia-lua (similar à de um machado), com um gancho ou esporão no outro lado. )


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