terça-feira, 13 de setembro de 2016

MÃE - CONTOS DE ANDERSEN

  Sentada ao pé do leito do filhinho, a mãe angustiada receia que ele morra. O rosto da criança empalideceu, e ela fechou os olhinhos. Respirava com dificuldade, e de vez em quando parecia suspirar. E nesses momentos o olhar da mãe era ainda mais cheio de ternura.
   Batem à porta. Entra uma velha pobre, envolta em um velho manto: bem precisava ela de alguma roupa quente, na verdade, pois esta história se passou em pleno inverno. Lá fora tudo estava coberto de gelo e de neve, e soprava um vento tão cortante, que gretava o rosto.
   A velha tiritava, e  como a criancinha adormecera por um instante, a mãe foi por na lareira uma caneca de cerveja, para que a velha a bebesse quentinha. A visitante sentou-se na cadeira, e ficou acalentando a criança, enquanto a mãe se acomodou em uma cadeira velha, ao seu lado; tinha os olhos fixos no filhinho doente, que respirava com dificuldade, e segurava-lhe a mãozinha.
   - Não te parece que não vou perdê-lo? Deus Nosso Senhor não me tirará, não é?
    A velha - que era a Morte- sacudiu a cabeça de uma maneira estranha, que tanto podia significar sim, como não. A mãe baixou os olhos, derramando lágrimas. Pesava-lhe a cabeça; havia três dias e três noites que não pregava olho. E adormeceu, por um único minuto. Despertou sobressaltada, transida de frio; olhou em roda, aflita. Sumira-se a velha, sumira-se a criança. No seu canto, o velho relógio sussurrava e rangia. O forte peso de chumbo ia até o chão. E de repente...Pum! ...O relógio parou .
   Saiu a pobre mãe correndo, e gritando pelo filhinho.
   Lá fora, no meio da neve, estava sentada outra mulher, com um vestido preto muito comprido, que lhe disse:
   - Quem esteve no teu quarto foi a morte. Vi quando ela fugiu, levando teu filhinho. Anda mais veloz que o vento, e nunca devolve o que tirou.
    -Dize-me que caminho ela tomou- é só o que te peço! Dize-me por onde ela foi, hei de encontrá-la!
   - Eu sei o caminho - disse a mulher de preto- Mas antes que o mostre, canta-me todas as canções que cantaste para o teu filhinho. Gosto delas: ouvi-as, em tempos passados. Sou a noite, e vi tuas lágrima, quando as cantava.
    - Cantá-las-ei para ti - todas, todas! Mas tem piedade! Não faças perder tempo: preciso alcançá-la, preciso recuperar o meu filhinho.!
  Mas a noite ali ficou, muda e imóvel. Então a mãe, torcendo as mãos, cantou: cantava, chorando. Foram muitas as canções, mas ainda as lágrimas. E a Noite disse então:
   - Entra à direita daquele pinheiral tenebroso. Vi a Morte tomar esse  rumo, levando o teu filhinho.
   Dentro da floresta cerrada o caminho bifurcava-se e ela ficou sem saber que lado tomar. Mas viu um espinheiro, despido de flores ou folhas, porque era inverno rigoroso; os galhos estavam cheios de flocos de gelo.
   - Não viste passar a Morte com o  meu filhinho?
   - Vi, sim. Mas só te direi que caminho tomou, se me aqueceres no teu seio. Estou morrendo de frio! Já estou gelado!
   E ela apertou o espinheiro firmemente ao peito para que ele degelasse. Os espinhos se lhe cravavam na carne, o sangue escorria em grandes gotas. Mas o espinheiro brotou: na noite glacial, rebentou em folhas e flores- tão grande é o calor , junto ao coração dolorido de uma mãe. Então lhe mostrou o caminho.
   E a mãe chegou a um grande lago, sem barco nem balsa. Não estava tão gelado que pudesse suportar o seu peso; nem tão livre e raso, que desse passagem a vau.Todavia ela precisava atravessá-lo, para encontrar o filho. Então a mãe se deitou, para beber o lago e assim esgotá-lo. Nenhum ser humano pode conseguir semelhante coisa. Mas a mãe, no meio da sua imensa dor, esperava que se produzisse um milagre.
   - Não, nunca o conseguirás! - disse o lago. - Vamos ver se podemos chegar a um acordo. Eu gosto de colecionar pérolas, e teus olhos são duas das mais fascinantes que já vi. Se quiseres deixá-los cair em mim, juntamente com as tuas lágrima, levar-te-ei para a grande estufa onde mora a Morte, cultivando flores e árvores. Cada planta ali é uma vida humana.
   - Que não daria eu para chegar até onde está meu filhinho! - disse a mãe.
   E ela chorou e chorou, e seus olhos caíram no fundo do lago, e lá viraram em duas pérolas preciosas. Mas o lago, como se fosse um balanço, ergueu-a e, num tirão só, levou-a até a outra margem. havia lá uma casa, maravilhosa, de uma légua de comprimento; nem se sabia bem se aquilo era um cerro, cheio de bosques e cavernas, ou uma obra de carpintaria. A pobre mãe, contudo, não a podia ver, porque chorara os olhos, juntamente com as lágrimas.
  - Onde poderei encontrar a Morte, que carregou meu filhinho?
  - Ela ainda não chegou- disse uma velha de cor embaciada, que andava por ali vigiando a estufa da Morte. - Mas como encontraste o caminho? Quem  te auxiliou?
   - O Senhor Deus me ajudou. Ele é misericordioso e tu também o serás agora. Onde poderei encontrar meu filhinho?
   - Não o conheço. E tu não enxergas. Esta noite murcharam muitas flores e muitas árvore. A Morte não tardará a chegar, para as transplantar. Sabe bem que cada criatura humana tem uma árvore ou uma flor da vida, conforme a sua índole. Tem a aparência de plantas comuns, mas possuem coração, que bate. O coração das crianças também pode pulsar. Guia-se pelas pulsações: talvez  reconheças a do teu menino. Mas que me darás tu para que te diga o que ainda será preciso fazeres?
   - Nada tenho para dar- respondeu a mãe, angustiada. - Mas irei para ti até o fim do mundo, se quiseres.
    - Não tenho negócios por lá - disse a velha. - Mas podes dar-me teu lindo cabelo preto. Sabes, certamente, que é lindo, não é? Pois gosto muito deles! Em troca, podes levar o meu, todo branco. sempre é alguma coisa...
   - Se é o que desejas - exclamou a mãe- dou-te meu cabelo com muita alegria.
   E deu-lhe os lindos cabelos, recebendo em troca a cabeleira branca da velha.
    Entraram então na grande estufa da Morte, onde cresciam em maravilhosa convivência, árvores e flores. Havia ali belos jacintos, abrigados em redomas, e grandes peônias, vigorosas como árvores. e plantas aquáticas, umas bem frescas e viçosas, outras meio doentes, que tinham cobras d'água na corola, e caranguejos pretos seguros à haste. Viam-se também palmeiras esplêndidas, carvalhos e plátanos; salsa e tomilho em flor. Todas as árvores e flores tinham nome, e cada uma representava uma vida humana. E esse seres humanos estavam ainda vivos, um na China, outro na Groenlândia -por todas as partes do mundo. Havia árvores grande em vasos pequenos, de modo que as raízes ficavam apertadas, e vasos estavam a ponto de estourar; outras flores frágeis e franzinas , achavam-se em terra forte, rodeadas de musgo, mimadas e bem tratadas. A mãe aflita debruçava-se sobre todas as plantas pequenas, para escutar-lhes as pulsações do coração. E, entre milhões, reconheceu o coração do seu filhinho.
    - Aqui está ele! - gritou ela, estendendo os braços para um pequeno açafrão, que, doentio, já estava derreado.
   - Não toques na flor! - gritou a velha. - Quando a Morte chegar - espero-a a todo instante - não a deixes a arrancar a planta; dize-lhe que arrancarás todas as outras flores. Ela ficará assustada com essa ameaça, porque é responsável perante Deus. Nenhuma delas deve ser arrancada antes que Ele o permita.
    Nesse momento passou pela sala um sopro glacial, e a mãe cega sintou que era a Morte que chegava.
   - Como conseguiste achar o caminho? Como foi que chegaste mais cedo do que eu?
  - Sou mãe.
   A Morte estendeu o braço em direção à pequenina flor fanada, mas a mãe a cerrava entre as  mãos, abrigando-a com firmeza - com tanto carinho, que não tocava em uma só pétala, A Morte soprou-lhe nas mãos, e a mãe sentiu que aquele hálito gelado era mais frio do que o vento mais gélido. E as mãos penderam-lhe inerte.
  - Nada podes contra mim! - disse ela.
   - Mas Deus pode - respondeu a mãe.
   - Eu faço apenas o que Ele manda Sou o Seu  jardineiro. Tomo todas as Suas flores e árvores, a fim de transplantá-la para o grande jardim do paraíso, no país desconhecido. Não te posso dizer, porém, de que modo elas crescem ali, nem como vivem.
   - Devolve-me meu filho! - suplicou a mãe. exclamando:
   E segurou as mãos as duas flores mais bonitas,
   - Apanharei todas as tuas flores...tamanho é o meu desespero!
   - Não toques nelas! - gritou a Morte. - Dizes que és tão infeliz , e queres fazer com que outra mãe seja igualmente infeliz?
   - Outra mãe?- murmurou a pobre mulher, largando imediatamente as duas flores.
  - Toma teus olhos! - disse a Morte. - Pesquei-os no lago, Seu brilho subia do fundo, e eu não sabia que eram teus. Fica com eles: agora estão ainda mais límpidos do que eram antes. Lança um olhar para o fundo desse poço profundo. Direi o nome das duas flores que querias arrancar, e verás o que tencionava destruir e aniquilar.
   A mãe olhou para dentro do poço. Grande alegria era ver uma das flores, que se tornava uma benção para ao mundo, espalhando felicidade e alegria ao redor de si. Depois apareceu a vida da outra, formada de preocupação e de miséria, de tristeza e calamidades.
  - Ambas as coisas saem da vontade de Deus -disse a Morte.
  - Qual das duas é a flor da desgraça, e qual é a abençoada?
 - Não te direi. mas fica sabendo: uma dessas flores é a do teu filho. O que viste é o destino do teu filhinho, o futuro do teu próprio filho!
   Ouvindo essas palavras a mãe lançou um grito de aflição.
  - Qual é a de meu filho: Dize-me! Liberta a inocente criança! Redime o meu filho daquela miséria! Antes leva-o contigo!Leva-o para o reino de Deus! Esquece as minhas lágrimas! Esquece os meus rogos, esquece tudo o que fiz!
   - Não te compreendo- disse a Morte. - Queres que eu te devolva o teu filho, ou devo levá-lo para aquele lugar que não conheces?
   E a mãe, torcendo as mãos, ajoelhou-se, para suplicar a Deus:
  - Senhor! Não me escutes, se eu te pedir uma coisa contra a Tua vontade, que é sempre a melhor! Não me escutes, não me escutes!
   E baixou a cabeça sobre o peito.
   E a Morte foi embora, levando a criança para o país desconhecido.
FIM
  

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