sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A FLOR DE SABUGUEIRO - CONTOS DE ANDERSEN

    Era uma vez um menino que apanhou um resfriado, porque saiu de casa e molhou os pés. Ninguém conseguia descobrir, contudo, como chegou a molhar os pés, pois o tempo estava seco. A mãe despiu-o e meteu-o na cama; e mandou trazer os petrechos para fazer uma boa taça de chá de flor de sabugueiro, que logo aquece a gente. Naquele momento chegou o amável velhote que morava no último andar, e vivia sozinho - porque não tinha mulher nem filhos. Gostava muito de crianças, e sabia uma infinidade de histórias de fadas, e de contos muito bonitos; e contava com tanta graça, que era um encanto ouvi-lo.
  - Se tomares teu chá - disse a mãe - quem sabe se o vizinho te contará alguma história bonita, enquanto vais bebendo?
   - E quem me dera saber uma nova! - acudiu o bom do velho, sacudindo a cabeça e sorrindo. - Mas como foi que esse gurizinho molhou os pés?
   - Pois é isso mesmo que eu pergunto - disse a mamãe. - Ninguém o sabe?
   - Então o senhor vai contar uma história? - perguntou o menino.
   - Sim; mas primeiro hás de me dizer com certeza que profundidade tem a calha daquela travessa por onde passas para a escola. Sabes?
   - Dá-me pela barriga da perna, quando entro no buraco mais fundo.
   - Então foi lá que molhaste os pés. Agora é justo que te conte uma história, como prometi; mas o caso é que não sei mais nenhuma.
   Oh! A mamãe diz que o senhor converte em histórias as coisa que vê; e que pode tirar um conto de fadas de tudo quanto toca...Invente uma agora!
   - É verdade; mas são histórias que não prestam para nada. As boas, as verdadeiras histórias, sãos as que vem de si mesmas; batem-me na testa e dizem: " Aqui estamos, aqui estamos!"
   - E não está batendo uma agora?
   A mãe ria, enquanto ia deitando no bule as flores de sabugueiro, e água fervendo.
  - Um conto! Quero uma história! - dizia o doentinho. tade - respondeu o velho. - Mas as histórias são gente de alto coturno, e só aparecem quando lhes dá na cabeça...Mas espera...Ah! Já temos uma! Olha para o bule de chá: lá dentro está uma história.
   O menino olhou para o bule. A tampa ia se erguendo, se erguendo...e de dentro foram brotando ramos cheios de folhas e de flores, alvas e frescas, que se estendiam em todas as direções. Até do bico saía um broto, também florescido. E os raminhos iam crescendo, crescendo, e formaram uma árvore, que chegou até a cama, afastando as cortinas para um lado. E que perfume delicioso espalhavam aquelas flores! E no meio da árvore estava uma velhinha de ar bondoso, com um estranho vestido, de cor verde, como as folhas, e todo estampado de flores de sabugueiro; e assim não se distinguia bem se era feito de um tecido, ou de folhas e flores vivas.
   - Como se chama aquela dama? - perguntou o menino.
    - Os gregos e romanos diziam que era uma Dríade( Dríade é um ser da natureza que tem sua alma contida em uma árvore muito antiga).  - respondeu o velho. - Mas nós não entendemos essas palavras, e achamos um nome que lhe assenta mais: no bairro onde moram os marinheiros chamam-na " A Mãe Sabugueira". E agora deves olhar bem para ela, e escutar sem despregar os olhos da linda árvore.
   E o velhinho começou:
    " Em um canto de um pátio pequenino, no bairro de Niburgo, há uma árvore assim , grande e cheia de flores, como esta. Em uma tarde de verão um casal idoso estrava sentado à sombra do grande sabugueiro, pátio sombrio: era um velho marujo e sua mulher, tão idosa como ele. Tinham muitos netos e bisnetos, e pouco faltava para celebrarem as "Bodas de Ouro":  sim, faltava pouco tempo, mas nenhum deles se lembrava da data exata do casamento. A Mãe Sabugueira, que estava sentada na árvore, e olhava para eles com simpatia, como nos está olhando agora, disse-lhes:
   "- Eu sei a data.
   "Mas eles não a ouviram, porque estavam falando dos seus tempos passados. O velhinho dizia:
   " - Lembras-te de quando éramos pequenos, como brincávamos juntos, neste mesmo pátio? E o dia em que enterramos galhinhos de plantas, formando um jardim?
      "- Sim! Lembro-me de tudo, como se fosse hoje - disse a velhinha. - E nós regávamos as varinhas, e uma delas, um galho de sabugueiro, enraizou, e brotou, e cresceu, cresceu tanto que veio a ser esta grande árvore, que agora nos dá sombra na velhice.
    " - Isso mesmo! E ali naquele canto está o tonel onde eu gostava de por a flutuar meu barquinho, que eu mesmo talhara na madeira. E como ele navegava! ...Mas em breve naveguei de outra maneira...
   "- Sim- disse a velhinha. - Mas antes disso estivemos na escola, onde aprendemos muitas coisas. E um dia fomos passear a Frederiscburgo, e vimos e o rei e a rainha que passavam no canal, no seu magnifico bote.
   "- É, mas eu teria de navegar depois muito mais longe do que eles,  e anos e anos, por mares longínquos!
    "- E eu quantas vezes chorei por ti - acudiu a velhinha- julgando-te morto lá longe, no fundo do mar, embalado pelas vagas!! E quantas vezes me levantei de noite, para ver se o catavento tinha virado...Sim, dava muitas voltas, mas tu, tu não voltavas! Um dia - lembro-me como se tivesse sido ontem - chovia tanto, tanto, que parecia que o céu vinha abaixo. O lixeiro chegou à casa aonde eu servia, e eu peguei na tina de lixo  e desci a escada, e parei à porta. Mas que tempo! Chovia a cântaros! E enquanto eu esperava ali parada, chega o carteiro e entrega-me  uma carta. Era tua - e Deus sabe quanto tinha viajado! Abri-a imediatamente, e li-a ali mesmo, chorando e rindo de alegria. Nela contavas que estavas naquelas terras quentes, onde nasce o café. Que lindo devia ser esse país! Era uma terra maravilhosa, conforme dizias, e eu ali fiquei, lendo a tua carta, sem me lembrar mais da chuva que caía, com a tina do lixo na mão - quando alguém me passou o braço pela cintura...
   " - Ah! Mas tu me assentaste um belo soco na orelha, que até hoje ainda chia...
    " - Pois se eu não sabia que eras tu, ora essa! Chegavas ao mesmo tempo que a carta, e vinhas tão guapo- e ainda o és, isso é verdade! Tinhas no bolso um grande lenço de seda amarela, e trazias um chapéu todo lustroso...Que elegante estavas! Mas que tempo espantosos, aquele! E a enxurrada enchia a rua...
   " - E casamos, lembras-te? E quando nos nasceu o primeiro menino, e depois a Maria, e o Niels, e o Hans Cristian...Lembras-te?
    " - Como não hei de, lembrar? Cresceram, enfim, e são hoje gente prestante, a quem todos apreciam.
  " - E  agora seus filhos também tem filhos - continuou o velho marinheiro. - Sim, tens netos em quantidade! E feitos de boa cepa, isso sim! Se não estou enganado, foi nesta época do ano mesmo que casamos...
   - Sim, é hoje o dia das bodas de ouro - disse a Mão Sabugueira, metendo a cabeça entre os dois velhinhos.
   "Mas eles pensaram que era o vizinho que os cumprimentava. E nisto entraram no pátio seus filhos, e os filhos de seus filhos, que sabiam bem que era aquele o dia das bodas de ouro, e já tinham dado os parabéns aos velhos naquela manhã, pela data feliz: mas eles, que recordavam tanta coisa tão remota, não se lembravam daquele fato que era mais recente,
    "E o sabugueiro desprendia seu perfume suave, e o sol poente iluminou  o rosto dos velhos, dando-lhes uma suave colorido às faces; e o menor dos netos cantou e dançou em redor deles, proclamando, cheio de alegria, que naquela noite iam celebrar uma grande festa, e que à ceia comeriam as batatas assadas. E a Mãe Sabugueira inclinava a cabeça, saudando-os, e dizendo como as outras pessoas:
   " - Parabéns! Parabéns!"--------------
   - Ora, isso não é história! - observou o menino, que escutara com muita atenção.
   Tu achas que não? - disse o velho. - Mas vamos perguntar à Mãe Sabugueira.
   - Não, não é uma história - confirmou ela. - Mas agora é que a história principia. As histórias mais estranhas tem, muitas vezes um fundo de verdade - senão, como teria a minha linda árvore brotado do bule de chá?
   Dizendo isso, tirou o menino da cama e aconchegou-o ao seio. Os ramos de sabugueiro fecharam-se  em redor deles, de sorte que parecia um caramanchão( Dá-se no nome de caramanchão a uma construção utilizada em diversos espaços públicos, nomeadamente em espaços verdes, com o intuito de poderem ser utilizados para efeitos de descanso, abrigo, entre outros.Na sua construção é habitual serem utilizados materiais como ripas, canas ou estacas, e servirem de suporte a espécies vegetais tais como trepadeiras).pequenino e saíram a voar pelos ares, levando-os assim abrigados - e era lindo , aquele voo!  Mãe Sabugueira converteu-se em uma bela menina ainda rajada com o mesmo vestido verde da cor das folhas, recamado de flores alvas, que a velha vestia. Tinha no peito uma flor de sabugueiro, de verdade, e cingia-lhe a cabeça, adornando-lhe os cabelos dourados, uma coroa das mesmas flores. os olhos eram tão grandes, e tão azuis...oh! ela era na verdade muito, muita linda! Beijaram-se as duas crianças, porque eram da mesma idade agora, e alegravam-se por igual, vendo coisas tão belas.
    Saíram do pequenino caramanchão de mãos dadas, e encontraram-se em casa, no seu jardim. Viram a bengala do pai, amarrada a um pilar, perto do gramado, e correram a encarapitar-se nela; pois a bengala criou vida imediatamente, por amor das crianças; o castão brilhante converteu-se em uma cabeça de cavalo de verdade, que até relinchava, coberta de longa crina negra. e já brotaram quatro pernas, delgadas, mas vigorosas e lépidas, no corpo do cavalo. E o petiço saiu a galopar com as duas crianças no lombo, ao redor do gramado.
    - Viva! Vamos correr agora milhas e milhas! - disse o menino - Vamos àquela granja onde estivemos o ano passado, a linda morada daquele senhor tão opulento!
     E galopavam assim ao redor do prado, enquanto a menina -  que não era outra senão a Mãe Sabugueira, como sabemos - gritava de alegria, dizendo:
    - Agora estamos no campo. Olha aquele chalezinho, com um forno saliente na parede, que até parece um ovo gigantesco! Um sabugueiro estende os galhos por cima do chalé, e no pátio está o galo, muito atar que at´parece um ovo gigantesco! Um sabugueiro estende os galhos por cima do chalé, e no pátio está o galo, muito atarefado em esgaravatar para os pintos. Olha como se pavoneia! Já chegamos perto da igreja, lá em cima do morro, à sombra de um imenso carvalho, já meio seco. Agora lá está a forja; o fogo brame, enquanto homens seminus vibram os martelos, fazendo saltar faíscas, que voam para todos os lados. Vamos, vamos! Lá está a granja do homem rico!
   E tudo quanto a menina ia nomeando, ia aparecendo, e o menino via tudo. Depois varreram o caminho, para brincar de jardineiros: ela tirou do cabelo as flores de sabugueiro e plantou-as, e as flores cresceram imediatamente, e ficaram árvores  tão altas e tão copadas como aquela que o casal de velhinhos tinha plantado, quando eram crianças. Caminharam de mãos dadas, justamente como tinham feito também os velhinhos, quando eram crianças; não foram, porém, até o jardim de Fredericsburgo. Não: a menina segurou o menino pela cintura e saíram voando por sobre a terra. passavam alternando-se a primavera, o verão, o outono e o inverno; mil imagens flutuavam diante dos olhos do menino, gravando-se-lhe no coração, e a menina ia cantando para ele:
     "Oh! Nunca, nunca, nunca
      Hás de esquecer tudo isto!"
   E voavam, voavam, e o sabugueiro nunca se cansava do desprender seu aroma suave. O menino via lá embaixo roseirais, e faias verdejantes, mas o perfume do sabugueiro era mais penetrante, porque se exalava da flor que estava presa ao peito da menina, junto do seu coraçãozinho, sobre o qual o menino reclinava às vezes a cabeça, naquele voo maravilhoso.
   - Que linda é aqui a primavera! - disse ela, quando andavam pela alameda de faias.
    As árvores estavam cobertas de brotos novinhos; o lírio do vale perfumava o chão que iam pisando, e as anêmonas rosadas brilhavam entre a grama verde. Que maravilha se a primavera nunca acabasse nos bosques de faia da fragrante Dinamarca!
   Passavam agora pelos velhos castelos do fidalgo, e a menina dizia:
   - Como isto aqui é belo no verão!-----------
   As altas muralhas e os telhados pontudos espalhavam-se nas águas dos canais, onde nadavam cisnes, procurando a sombra das frescas alamedas. Nos campos ondulava o trigo, como o fluxo e refluxo das águas de um lago; nos fossos brilhavam flores vermelhas e amarelas, e nas sebes entrelaçavam-se o lúpulo e as clematites silvestres. À boca da noite apareceu a lua cheia, avermelhada, e as medas de feno espalhadas no prado recendiam perfume. Eram visões que nunca poderiam ser esquecidas!
   - Como é belo o outono! - Dizia agora a menina.
   E o céu parecia mais alto e mais azul, enquanto a floresta ostentava um manto vermelho, amarelo e verde. Os galgos corriam nos campos, e bandos da aves silvestres passavam, guinchando, por sobre os montículos, onde as amoreiras silvestres se enroscavam nos ásperos penhascos. O mar, de um azul profundo, estava cheio de velas brancas, e, na beira, velhas, moças e crianças recolhiam o lúpulo em enormes tonéis. As moças cantavam. Era na verdade uma cena encantadora!
      - Que belo é o inverno aqui! - dizia ainda a menina.
    E todas as árvores estavam cobertas de geada, de modo que pareciam de coral brando. A neve estalava debaixo dos pés; parecia que eles nadavam de botinas novas. e estrelas cadentes riscavam o céu, uma após outra. Nas salas aquecidas via-se a árvore de Natal, toda iluminada, e os presentes eram distribuídos, em meio as festas. No campo, sob o teto humilde do camponês, soavam as notas dos violinos; distribuíam-se maças cortadas em quartos, e até as crianças mais pobrezinhas diziam:
   - Como é lindo o inverno!
   Sim! Lindo era tudo quanto a menina ia mostrado ao seu companheiro, e o sabugueiro continuava a envolvê-los no seu suave perfume, enquanto a bandeira vermelha, com a cruz branca, ondulava à brisa fresca. Era a bandeira sob a qual navegara o velho marinheiro da história. O menino de outrora, agora moço, teve de ir por esse mundo fora, para o país quente, onde nasce o café. Mas, ao  despedir-se a moça tirou do peito uma das flores de sabugueiro e deu-lhe, como lembrança. Guardou-a ele no seu livro de orações, e onde quer que o abrisse, em terra estrangeira, era sempre naquela folha que estava o símbolo florido. E quanto mais olhava para a flor, mais fresca ela ia ficando, de sorte que podia sentir o perfume das florestas dinamarquesas; e até via a meninazinha ensaiando no meio da folhagem e das flores, com aquele olhar tão azul e tão claro, e murmurando baixinho:
   - Como é lindo aqui, na primavera, e no outono, e no inverno!------
    Correram muitos e muitos anos. Agora é ele um velho, e está sentado, ao lado de sua mulher, à sombra de um sabugueiro em flor, e estão de mãos dadas, bem como tinham feito antes deles o tataravô e a tataravó: e, como  eles, falavam dos tempos passados e das suas bodas de ouro. Então a menina de olhos azuis e coroa de flor de sabugueiro, que estava sentada na árvore, fez-lhes um aceno, dizendo:
   - É hoje o dia das bodas de ouro!
   E tirou de sua coroa duas flores, que beijou: elas brilharam a ficaram cor de prata, mas imediatamente resplandeceram como ouro; e quando ela as colocou sobre a cabeça dos velhinhos, ambas as flores se transformaram em coroas de ouro puro. E o velho casal, sentado à sombra do sabugueiro cheio de perfume, parecia um casal de reis. E o velho narrou à velha esposa a história da Mãe Sabugueira, tal qual a ouvira contar quando era menino; e acharam ambos que era uma história muito parecida com a sua, por isso gostaram muito dela.
    - Sim, é verdade- disse a menina lá em cima da árvore. - Uns chamam-me Mãe Sabugueira, outros dizem que sou uma Dríade; mas meu nome verdadeiro é Saudade. Sou a alma da árvore, que nasce e cresce, e vivo sempre nela. Tenho boa memória, e lembro-me sempre de tudo, por isso posso contar muitas coisas do passado.
    Depois disse ainda, dirigindo-se ao velhinho:
   - Quero ver se ainda guardas a tua flor!
    E ele, abrindo o livro de orações mostrou a flor de sabugueiro que lá estava ainda, e tão fresca como se tivesse sido posta naquele instante entre as páginas.
   A Saudade sorriu, contente, e os dois velhos, coroados de ouro, sentados ali, iluminados pela luz chamejante do sol poente, fecharam os olhos, e...e...e...
     ...e acabou-se a história!
    O menino, deitado na sua caminha, não sabia mais se sonhara, ou se tinha ouvido uma história. O bule lá estava sobre a mesa, mas já não brotava dele árvore nenhuma; o velho, que contara a história, ia saindo naquele momento, e fechava a porta do quarto.
   - Que lindo! Que lindo era! - disse a criança.- Mamãe, eu tive no país quente, sabe?
   - Sim, não o duvido - respondeu a mãe. - Quando a gente toma duas taças de chá de sabugueiro, bem quentinho, pode bem viajar pelos países quentes!
   Aconchegou-lhe as cobertas, para que não apanhasse frio, e disse-lhe:
   - Dormiste um bom sono, enquanto eu discutia com teu velho amigo - se isto era uma história real ou uma lenda.
FIM
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