quinta-feira, 7 de julho de 2016

A NOIVA VERDADEIRA - CONTOS DE GRIMM

  Era uma vez uma moça muito bonita e de muito bom coração. Cedo tornar-se órfã de mãe e sua madrasta a maltratava quanto podia. Quando a mulher lhe dava qualquer trabalho, por mais pesado que fosse, a moça empregava toda a sua boa vontade para executá-lo. Ainda assim, não conseguia conquistar a malvada criatura, que se mostrava sempre descontente, achando que nunca era bastante o que fazia e só pensava em amargurá-la. Um dia lhe disse:
    - Aí estão sete quilos de penas que deves desbarbar; se até logo à noite não tiveres aprontado isso, eu te darei uma boa surra. Pensas que vais ficar vadiando o dia inteiro?
     A pobre moça começou o trabalho, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces, pois sabia muito bem que era impossível terminar a tarefa em um só dia. Tentava fazer um montesinho de penas, mas, ao menor movimento - se ela acaso juntava as mãos em desespero ou suspirava - lá se iam as penas voando e era preciso apanhá-las e começar tudo de novo. Em dado momento, apoiou os cotovelos na mesa e, ocultando o rosto nas mãos, exclamou:
    - Meus Deus! Não haverá ninguém neste mundo que tenha pena de mim?
    Nisto a moça ouviu uma voz que lhe dizia suavemente:
    - Consola-te, minha filha; eu vim para ajudar-te.
    Levantando os olhos, viu uma velha que estava a seu lado. Esta tomou-lhe, carinhosamente, a mão e continuou:
    - Conta-me as tuas mágoas.
    Como lhe falasse tão amavelmente, a moça lhe contou sua triste vida, como lhe impunham sempre uma carga após outra e ela não podia dar conta de tantos trabalhos.
    - Se esta noite eu não houver terminado esta tarefa, minha madrasta me dará uma surra. Ameaçou-me e sei que cumprirá sua palavra.
    E as lágrimas voltaram a correr; mas a boa velha consolou-a:
    - Tranquiliza-te, minha filha; deita-te e descansa, que eu farei o teu trabalho.
    A moça estendeu-se na cama e pouco depois adormeceu. A mulher sentou-se à mesa e começou a trabalhar. Ah! Precisavam ver como os fios saltavam das penas logo que a velha as tocava com os seus dedos magros. Em pouco tempo aprontou os sete quilos. Quando a moça acordou, viu os grandes montes de penas, brancas como a neve. Toda a casa estava limpa e em ordem, mas a velha tinha desaparecido. A moça deu graças a Deus e aguardou sentada, em silêncio, a chegada da noite. Ao entrar, a madrasta assombrou-se, mas não se deu por achada.
    - Viste, sua imprestável - disse-lhe ela - o que é possível fazer quando se trabalha com vontade? Ainda poderias ter feito mais alguma coisa, em vez de ficar aí sentada de mãos cruzadas! - E, ao sair, ainda disse consigo mesma; - Essa criatura serve para algo mais que comer. Devo dar-lhe trabalhos mais pesados.
     Na manhã seguinte chamou a jovem e lhe disse:
    - Aí tens uma colher; com ela esvaziara o lago grande . Se, à noite não tiveres terminado, já sabes o que te espera!
   A moça pegou a colher e viu que estava furada; e, mesmo que não estivesse, seria impossível esvaziar com ela o lago. Pôs-se, imediatamente, a trabalhar, ajoelhada à beira da água, na qual iam caindo suas lágrimas.
    Mas logo a boa velha tornou a apareceu e, quando soube o motivo de tanta tristeza, lhe disse:
    - Acalma-te, filhinha. Vai até aquela moita e deita-te para dormir. Farei o teu trabalho.
   Uma vez só, tocou, de leve, o lago com os dedos. Imediatamente a água elevou-se em forma de vapor, confundindo-se com as nuvens; e pouco a pouco o lago foi secando. Antes do pôr-do-sol a menina despertou e, quando se aproximou da margem, só viu os peixes que se debatiam na lama. Foi à sua madrasta e lhe anunciou que o trabalho estava feito.
   -Já devias  ter terminado há mais tempo! - respondeu-lhe esta, pálida de raiva. E logo se pôs a imaginar outra coisa para aborrecê-la.
   Na terceira manhã, disse à jovem:
   - Vais construir, para mim, um belo palácio, la naquela planície; e terás de terminá-lo até a noite.
    Assustada, a moça exclamou:
    - Como poderei fazer uma obra tão grande?
    - Não me respondas! - gritou a madrasta. - Se podes esvaziar um lago com uma colher furada, também poderás edificar um palácio. Ainda hoje à noite quero instalar-me nele e, se faltar o menor detalhe na cozinha ou na adega, já sabes o que te aguarda.
   E mandou sair a jovem. Esta encaminhou-se para o vale, onde encontrou um monte de rochas. Por mais que se esforçasse, não conseguiu mover  a menor delas. Sentou-se e começou a chorar, embora tivesse esperança de que a velha viesse em seu auxílio. E, realmente, a boa mulher não se fez esperar muito. Tranquilamente, de novo, lhe disse:
    - Deita-te naquela sombra e dorme. Construirei o castelo pra ti. E, se te agradar, poderás viver nele.
     Depois que  a moça se afastou, a velha tocou de leve as rochas, que imediatamente se puseram em movimento. Juntaram-se e se alinharam como se gigantes estivessem construindo uma muralha. Em cima surgiu o edifício. Parecia que inúmeras mãos invisíveis trabalhavam colocando pedra sobre pedra. O chão retumbava; grandes colunas erguiam-se por si mesmas e se colocavam em devido lugar. No telhado, as telhas se dispunham também na devida ordem e, ao meio-dia, já o cata-vento girava no alto da torre, como uma imagem dourada com as vestes ondulando ao vento. O interior do palácio ficou pronto ao anoitecer. Como a velha foi capaz disso tudo, eu não saberia dizer; o certo é que as paredes das salas estavam atapetadas de seda e veludo; havia cadeiras de todas as cores e lindas poltronas rodeavam mesas de mármore; lustres de cristal pendiam do teto, refletindo-se no soalho polido; papagaios verdes ocupavam gaiolas douradas e o outras aves exóticas cantavam belas canções. Em toda a parte havia um luxo como para hospedar um rei.
     O sol já ia desaparecendo no horizonte quando a moça despertou e viu o brilho de mil luzes. Correu ao palácio e entrou pela porta aberta. Havia um tapete vermelho na escadaria e, junto ao corrimão dourado, tinham sido colocadas árvores floridas. Ao contemplar a beleza dos salões, ela parau extasiada. Sabe-se lá o tempo que teria permanecido ali, se não se houvesse lembrado da madrasta. "Ah! - exclamou - se ao menos ela se desse por satisfeita e não me atormentasse mais!"
     E foi anunciar-lhe que o castelo estava terminado.
     - Vou ocupá-lo em seguida, - disse a mulher, levantando-se.
     E quando entrou no castelo, teve de cobrir os olhos com as mãos , pois o esplendor era tanto que a cegava.
    - Vês como foi fácil! - disse ela. - Eu devia ter-te encarregado de uma tarefa mais difícil.
        Percorreu todos os salões, esquadrinhando todos os cantos para ver se faltava alguma coisa ou encontrava algum defeito, mas não achou a menor imperfeição.
    - Agora vamos à parte de baixo, - disse ela e, lançando um olhar maldoso à jovem: - Ainda preciso examinar a cozinha e a adega. Se te esqueceste de um só detalhe, não escapas ao castigo.
     Mas o fogo ardia no fogão; nas panelas a comida estava cozinhando; a lenha, partida, e a machadinha encostada à parede; nas prateleiras cintilava a bateria de cobre. Nada faltava; nem a caixa do carvão, nem o balde de água.
    - Onde fica a entrada da adega? - perguntou a mulher. - Se não tiver bons vinhos, vais ver o que te acontece.
     E ela  mesma levantou o alçapão e começou a descer as escadas; no segundo degrau, porém, a pesada tampa, que estava apenas encostada, lhe caiu em cima. A moça ouviu um grito e correu para auxiliá-la, mas a madrasta caíra escada abaixo e estava morta.
     Assim a moça ficou sendo a única proprietária do magnífico palácio. A princípio nem podia acreditar em sua sorte. Os guarda-roupas estavam cheios de belos vestidos e as arcas repletas de ouro e prata, pedras preciosas e pérolas, e não havia desejo que ela não pudesse satisfazer. Não demorou que a fama de sua formosura  e riqueza se estendesse pelo mundo afora e começaram a se  apresentar pretendentes. Mas nenhum era de seu agrado. Até que um dia chegou  um príncipe que soube conquistar-lhe o coração e ela tornou-se sua noiva. No jardim do palácio havia uma tília verde, a cuja sombra costumavam os dois sentar-se. Em dada ocasião, ele lhe disse:
   - Partirei para casa a fim de pedir o consentimento do meu pai. Espera-me em baixo desta tília. Voltarei dentro de poucas horas.
    A moça deu-lhe um beijo na face esquerda e recomendou-lhe:
    - Quero que me sejas fiel e não deixes nenhuma mulher beijar-te nesta face. Ficarei à tua espera em baixo desta tília até regressares.
    E a jovem continuou sentada junto à árvore até o pôr-do-dol ,mas o príncipe não voltou. Esperou-o durante três dias, em vão, da manhã à noite. No quarto dia, ao ver que não regressava, refletiu:
     - Na certa lhe aconteceu algum mal. Sairei à sua procura e não voltarei sem o ter encontrado.
    Levou consigo três dos seus mais lindos vestidos: o primeiro, bordado com estrelas brilhantes; o segundo, com luas prateadas e o terceiro com sóis dourados. Atou um punhado de pedras preciosas num lenço e se pôs a caminho. Por onde ia, perguntava pelo noivo, mas ninguém o tinha visto nem sabia dele. Percorreu grande parte do mundo, sem encontrá-lo. Finalmente, tão desiludida estava da vida que entrou a serviço de um camponês como pastora e enterrou suas roupas e jóias embaixo de uma pedra.
     Passou, então, a viver como pastora, guardando os rebanho, triste e cheia de saudades do seu amado. Havia uma terneirinha que comia em sua mão e, quando lhe dizia:
                      Terneirinha, terneirinha, fica ajoelhada
                        nunca te esqueças de mim,
                       como o príncipe que esqueceu a noiva amada
                        a esperá-lo sob a tília do jardim,
 o animalzinho se ajoelhava, deitava-se a seus pés e se deixava acariciar.
     Depois de ter vivido assim por alguns anos, correu pelo país a notícia de que a filha do rei se dispunha a celebrar seu casamento. A estrada real passava pela  aldeia onde residia a nossa jovem e, certo dia, ao levar o rebanho ao campo, passou por ali o noivo da princesa. Ia montado a cavalo, com porte arrogante e nem a olhou; ela, porém, logo viu que era o seu amado. Uma dor aguda lhe feriu como uma flecha o coração.
    - Ah! - exclamou. - Pensei que me tivesse sido fiel, mas vejo que me esqueceu.
   No dia seguinte, o príncipe passou pelo mesmo caminho. Ao aproximar-se, a moça dirigiu-se à ternerinha dizendo:
               Terneirinha, terneirinha, fica ajoelhada
               e nunca te esqueças de mim,
                como o príncipe que esqueceu a noiva amada
               a esperá-lo sob a tília do jardim.
      Quando ele ouviu sua voz, baixou os olhos e parou o cavalo. Por um momento olhou o rosto da pastora, levou a mão à fonte, como esforçando-se para recordar alguma coisa, mas em seguida continuou seu caminho e desapareceu.
      - Oh! - suspirou ela. - Nem  ao menos me reconhece, - e sentiu-se mais triste do que nunca.
           Algum tempo depois foi anunciada uma grande festa no palácio. Devia durar três dias e o povo todo foi convidado. " Farei uma última tentativa" - pensou a jovem. Quando chegou a noite, foi à pedra embaixo da qual escondera seus tesouros. Tirou o vestido de sóis dourados, vestiu-o e se enfeitou com as pedras preciosa. Soltou os cabelos que ocultava sob o lenço e os lindos cachos lhe caíram sobre os ombros. A seguir encaminhou-se para a cidade e, como era noite cerrada, ninguém a viu. Ao entrar no salão esplendidamente iluminado, todos os presentes deixaram passar, maravilhados, mas ninguém a reconheceu. O príncipe saiu a recebê-la e dançou com ela. Ficou tão encantado com sua beleza que chegou a esquecer-se da noiva. Ao terminar a festa, a moça despareceu entre a multidão e regressou ao povoado, onde se vestiu, novamente, de pastora.
      Na noite seguinte, pôs o vestido de luas prateadas e ornou os cabelos com uma meia-lua de brilhantes. Ao apresentar-se na festa, todos os olhares se concentraram nela. O príncipe correu a saudá-la e com ela dançou a noite inteira, sem fazer caso de nenhuma outra. Antes da moça partir, obrigou-a a prometer-lhe que não faltaria à festa na terceira noite.
     Quando se apresentou, pela terceira vez, usava o vestido de estrelas que cintilavam a cada passo; o diadema e o conto eram também de estrelas, formada de pedras preciosas. O príncipe, que já a esperava, apressou-se em sair-lhe ao encontro.
    - Dize-me quem és, - implorou ele. Tenho a impressão de que te conheço há muito tempo.
    - Não te lembras do que fiz quando te despediste de mim? - retrucou a moça.
     E, aproximando-se, beijou-o na face esquerda. Naquele instante, o príncipe sentiu como se lhe caísse uma venda dos olhos e reconheceu a sua primeira noiva.
   - Vem, - disse-lhe então, - não deves continuar aqui. - E, estendendo-lhe a mão, a conduziu a uma carruagem.
    Mal entraram nela, os cavalos saíram em disparada, como impelidos pelo vento até chegarem ao palácio encantando. Passando pela tília, viram inúmeros vaga-lumes voando entre as folhas, enquanto as flores esparziam seu doce aroma. Sobre os degraus da escadaria, as plantas estavam em flor e dos aposentos vinha o grito das belas e estranhas aves. Na sala principal achava-se reunida toda a Corte e o sacerdote aguardava para realizar o casamento do príncipe com a verdadeira noiva. FIM
   

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