segunda-feira, 25 de julho de 2016

A FILHA DE MARIA - CONTOS DE GRIMM

     Perto de uma grande floresta vivia em lenhador com sua mulher e sua única filha, uma menina de três anos. Eram tão pobres que lhes faltava até o pão de cada dia e não sabiam o que dar de comer à criança. Certa manhã, o lenhador saiu para o trabalho e, enquanto estava rachando lenha, com a cabeça cheia de preocupações, viu de súbito, à sua frente, uma dama alta e muito linda, com  uma coroa de estrelas. Dirigindo-se a ele, assim falou:
    - Sou a Virgem Maria, mãe do Menino Jesus. És pobre e necessitado; entrega-me tua filha para que a leve comigo. Serei sua mãe e tomarei conta dela.
    O lenhador, obedecendo, foi buscar a filha e a entregou à Virgem Maria, que  com ela subiu para o Céu. Lá a menina passou a viver bem, comendo pão doce e bebendo leite à vontade. Suas vestes eram de ouro e os anjinhos brincava com ela. Ao completar quatorze anos, a Virgem mandou chamá-la e lhe disse:
   - Minha filha, vou fazer uma longa viagem e confiarei à tua guarda as chaves das treze portas do reino dos Céus. Permito-te abrir doze delas, para contemplares que encerram. Mas a décima terceira, que se abre com esta pequenina chave, ficas proibida de abrir. Toma cuidado! Senão, será a tua desgraça.
    A menina prometeu obedecer e, quando a Virgem partiu, foi olhar as salas do Céu; cada dia abria uma porta, até completar a sequência das doze. Em cada sala se encontrava um apóstolo, cercado de grande esplendor e a menina ficava contente vendo toda aquela glória e magnificência. os anjinhos, que sempre a acompanhava, compartilhavam da sua alegria.
    Por fim só restava, ainda, a porta proibida. Sentindo, de repente, uma vontade louca de saber o que se ocultava atrás dela, dirigiu-se aos anjinhos, dizendo-lhes:
     - Não vou abrir a porta completamente, nem entrar na sala; só quero entreabri-la um pouquinho para podermos espiar pela frestinha.
     Oh, não! - exclamaram os anjinhos. - Isso seria pecado. A virgem Maria proibiu e poderá ser a tua desgraça.
    A menina, então, calou-se. Mas a curiosidade continuava a roer-lhe o coração, sem lhe dar sossego. E, certa ocasião, quando todos os anjinhos se haviam retirado, ela pensou:" Agora que estou sozinha, poderia dar uma espiada. Ninguém ficará sabendo."
    Procurou a chave dentre as outras e, tendo-a na mão, enfiou-a na fechadura e lhe deu volta. A porta abriu-se de súbito e ela viu a Santíssima Trindade, envolta em esplendor. Por algum tempo a menina ficou ali parada, olhando tudo com assombro. Depois, tocou, de leve, naquele brilho santo. E seu dedo ficou todo dourado. Logo após, sentiu-se tomada por um medo horrível, fechou a porta com força e saiu correndo. Mas o medo não a soltava e o seu coração batia cada vez mais forte. Também o dourado no seu dedo não saía, por mais que ela o lavasse e esfregasse.
     Pouco depois, a Virgem Maria  voltou da viagem. Chamou a menina e pediu-lhe as chaves do Céu. Ao recebê-las, Nossa Senhora olho-a vem nos olhos e perguntou:
   - Abriste a décima terceira porta?
   - Não, minha Nossa Senhora, - respondeu a menina.
   A Virgem colocou-lhe  a mão sobre o peito e notou como o seu coração palpitava. Percebeu logo que ela desobedecera, abrindo a porta. Entretanto, tornou a perguntar:
   - Na verdade, não abriste aquela porta?
   - Não, minha Nossa Senhora, - repetiu a menina.
    Aí a Virgem viu o dedo que se tornara dourado ao toque da luz celestial e teve a certeza de que ela pecara; e, pela terceira vez, peguntou:
   - Não abriste mesmo aquela porta?
    - Não, minha Nossa Senhora, - retrucou a menina teimosamente.
    Disse, então, a Virgem Maria:
    - Desobedeceste á minha ordem e, pior ainda, mentiste; não és mais digna de estar no Céu.
    A menina mergulhou num sono profundo e, quando acordou, estava na terra, em meio de uma floresta. Tentou gritar, mas não saiu e quis sair correndo, mas para qualquer lado  que se dirigisse, encontrava sempre umas cercas de espinhos que ela não conseguia atravessar.
   Naquele sítio onde estava encerrada, havia uma árvore velha e oca, que lhe servia de abrigo  para dormir à noite e onde encontrava refúgio, durante as chuvas e tempestades. Era, porém, uma vida miserável aquela, e, quando se lembra quanto havia sido bela e a vida que levava no Céu, com o anjinhos a brincarem com ela, começava a chorar amargamente. Seu único alimento eram morangos do mato que saía a procurar. Durante  outono recolheu as nozes e folhas caídas das árvores, que levou para a sua toca. No inverno as nozes lhe serviam de alimento, e quando caiu a neve e veio a geada, meteu-se como um pobre animalzinho entre as folhas, para não sentir frio. Em pouco tempos suas vestes começaram a rasgar-se e, peça por peça, lhe caíam do corpo. Quando o sol começou, de novo, a aquecer a terra, a menina saiu do seu esconderijo e foi sentar-se ao pé de uma árvore; e seus cabelos longos a cobriam toda como um manto. Assim ficou ali, ano após ano, sentindo toda a desgraça e misérias do mundo.
    Certa vez quando as árvores ostentavam novamente suas folhas verdes, o rei daquele país saiu a caçar pela floresta. Perseguindo um cervo, o rei apeou do cavalo e meteu-se entre os espinhadeiros onde se refugiara a caça, abrindo caminho com sua espada. Quando, finalmente, pode atravessar o matagal, viu sentada embaixo de uma árvore uma moça lindíssima cujos cabelos dourados a cobriam até aponta dos pés. O rei se deteve, contemplando-a cheio de admiração e, passados alguns minutos, falou-lhe:
   - Quem és? Por que estás sentada aqui nesta solidão?
   Não obteve resposta, pois a jovem não podia falar.
O rei prosseguiu:
    - Queres ir comigo a o castelo?
    Ela concordou com um leve aceno da cabeça. O rei ergue-as nos braços e a levou até onde estava o seu cavalo; colocou-a na sela e regressaram para o castelo. Ao chegar, mandou que lhe dessem lindos vestidos e tudo o que precisasse. Ainda que não pudesse falar, a moça era tão bela e graciosa que o rei se enamorou e pouco depois  casou com ela.
    Quase um ano depois, a rainha deu à luz um filho . Na primeira noite em ficou sozinha no leito com o menino, apareceu-lhe a Virgem Maria e lhe disse:
   - Queres dizer a verdade e confessar que abriste a porta proibida? Se assim fizeres, abrirei a tua boca e te devolverei a fala; mas se persistires em pecado, negando a tua falta, levarei comigo o teu filhinho.
   Nesse momento foi restituída a fala à rainha. Ela, porém, ainda obstinada, respondeu:
    - Não, não abri a porta proibida.
     Maria, então, tomou nos braços o recém-nascido e com ele desapareceu. Na manhã seguinte, quando não encontraram a criança, o povo começou a murmurar que a rainha matara seu próprio  filho. Ela ouvia tudo, mas nada podia dizer em sua defesa. o rei, no entanto, não acreditou nisso, porque a amava muito.
    Passou-se outro ano e a rainha deu à luz outro filho. E, novamente, a Virgem lhe apareceu durante a noite, falando-lhe:
    - Se confessares ter aberto a porta proibida, devolver-te-ei o teu filho e tua voz; mas se permaneceres em pecado e continuares negando, levarei comigo também esse menino.
    E, mas uma vez, a rainha respondeu:
    - Não, não abri a porta proibida.
    A Virgem, então, tirou-lhe o filho dos braços, levando-o consigo para o Céu. Pela manhã, como também a outra criança tivesse desaparecido, o povo começou a reclamar em voz alta e os conselheiros do rei exigiram que a rainha fosse julgada. Mas o rei a amava tanto que, sob ameça de morte, lhes proibiu que falassem no caso.
   No ano seguinte, a rainha deu à luz uma bela menina e pela terceira vez a Virgem Maria apareceu e lhe disse:
   - Segue-me.
   Tomando-a pela mão, foi com ela até o Céu, onde lhe mostrou seus dois filhos mais velhos que ali estavam rindo e brincando com a bola do mundo. Vendo que a rainha ficou cheia de alegria ao vê-los tão felizes, a Virgem perguntou:
    - Teu coração ainda continua insensível? Se confessares ter aberto a porta proibida, eu te devolverei teus filhos.
    Mas, pela terceira vez, a rainha respondeu:
   - Não, não abri a porta proibida.
   A Virgem, então, fê-la descer novamente à terra. tomando-lhe também a menina recém-nascida.
   Na manhã seguinte, quando o fato se tornou público,  o povo todo gritava em alta vozes:
   - A rainha come carne humana, tem de ser condenada à morte!
    Aí, então, o rei não pode mais conter seus conselheiros. Iniciou-se o julgamento e, impossibilitada de se defender porque não podia falar, a rainha foi condenada à morte na fogueira. Empilharam um monte de lenha e, quando as labaredas começaram a arder em torno dela, derreteu-se o duro gelo do orgulho e seu coração foi tocado pelo arrependimento. E ela pensou:
    - Se antes de morrer eu pudesse confessar que abri aquela porta!
   No mesmo instante recuperou a voz e, então, gritou alto:
   - Sim, Nossa Senhora, eu abri a porta proibida!
   E aquele mesmo instante começou a cair do céu uma chuva forte que apagou a fogueira. Uma luz surgiu sobre a sua cabeça e a Virgem Maria apareceu, tendo a seu lado os dois meninos e, nos braços a menina recém-nascida. Dirigindo-se a ela, disse-lhe suavemente:
    - Quem se arrepende dos seus pecados e os confessa, é perdoada.
   Restitui-lhe as três crianças, devolveu-lhe a capacidade de falar e lhe deu felicidade para o resto de sua vida. 
FIM

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