sábado, 15 de outubro de 2016

O JARDIM DO PARAÍSO - CONTOS DE ANDERSEN

  Era uma vez um princepezinho. Ninguém tinha tantos livros, nem tão lindos, como ele; tudo o que já aconteceu neste mundo estava escrito naqueles livros: e o menino via tudo representado em figuras muito lindas. Achava naqueles livros informações sobre todas as terras, sobre todos os povos; contudo não encontrava neles uma só palavra a respeito do jardim do Paraíso - e era isso o que mais lhe interessava.
   Quando era menor, mas já estava em idade de aprender a ler, dissera-lhe a avó que as flores do Jardim do Paraíso eram bolinhos delicados, cujos pistilos estavam cheios de vinho. Em uma flor estava escrita a história; em outra, a geografia, em outra a tabuada, de sorte que bastava comer o bolinho e já se ficava sabendo a lição. E quanto mais a gente comia, mais ficava sabendo de geografia, de história e de tabuada.
   Naquele tempo ele acreditava naquilo tudo; mas ao crescer, e ao passo que ia aprendendo e lendo tanta coisa, foi compreendendo que o esplendor do jardim do Paraíso devia ser de uma espécie muito diferente. e dizia consigo.
   - Por que foi Eva colher o fruto da árvore da Ciência? Por que comeu Adão o fruto proibido? Se fosse comigo não teria acontecido nada disso! Nunca teria o pecado entrado no mundo!
   Dizia isso então, e ainda o repetia aos dezessete anos. O Jardim do Paraíso enchi-lhe todos os pensamentos.
   Um dia andava passeando no mato. Ia completamente só - o que era o seu maior prazer. Já estava escurecendo, e grandes nuvens se acumulavam no céu. E começou a chover; chovia como se o céu fosse um imenso rio a derramar água sobre a terra; e ficou tão escuro como no fundo do poço mais profundo. Ele escorregava na grama úmida e caía sobre as pedras nuas que juncavam no chão rochoso. Tudo escorria água, e o pobre príncipe não tinha um fio seco na roupa. Teve de trepar sobre enormes blocos de pedra, cobertos de espesso musgo, que filtrava água. Já estava quase desmaiando, quando ouviu um ruído estranho e viu diante de si uma enorme caverna iluminada. No meio ardia uma fogueira, tão grande que dava para assar um veado - o que de fato estavam fazendo ali. Era um esplêndido veado, enfiado com chifres e tudo, num espeto, que ia virando vagarosamente entre dois troncos de pinheiro atorados. Uma velha, tão alta e tão vigorosa que mais parecia um homem disfarçado, estava sentada ao pé do fogo, onde lançava lenha de vez em quando.
    - Entra! - disse ela. - Senta-te perto do fogo, para secar essa roupa.
   - Como venta aqui dentro! - disse o príncipe, sentando-se no chão.
   - Pior será quando meus filhos voltarem! Porque esta é a caverna dos ventos ; meus filhos são os quatro ventos do mundo. Entendes o que te digo?
    - Onde estão teus filhos? - perguntou o príncipe.
   - Não é fácil responder a uma pergunta feita com tamanha estupidez! Meus filhos fazem o que entendem. Neste momento estão jogando o volante com as nuvens, lá no salão do rei - disse ela, apontando para o céu.
   - Ah! Sim? Acho que falas com muita aspereza - respondeu o príncipe. - Não és tão cortês como as mulheres com quem estou habituado a tratar!
   - Pois eu digo que é porque elas não tem em que se ocupar! Eu tenho de ser assim áspera se quiser governar os meus filhos. E posso fazê-lo, apesar de serem eles muito teimosos! Estás vendo aqueles quatro sacos pendurados na parede? Pois meus filhos tem tanto medo deles como tu tinhas da vara que estava atrás do espelho. Posso dobrar os rapazes, é o que te digo, e então eles entram no saco; não perdemos tempo com cerimônias. E não podem sair para pregar suas peças senão quando bem me parecer. Mas aí vem um deles...
    Era o Vento-norte, que entrava com um sopro gelado, espalhando flocos de neve e alastrando o chão de granizos enormes. A roupa era de pele de urso, e o chapéu, que lhe cobria até as orelhas, de pele de foca. Pendiam-lhe da barba longos flocos de neve, e da gola da jaqueta caíam a cada passo grandes granizos.
   - Não vás já para perto do fogo!- disse o príncipe. - Podes apanhar frieiras...
   - Frieiras - disse o Vento-norte, dando uma risada. - Frieiras! Mas é o frio a coisa de que mais gosto no mundo! Que espécie de criaturinha frágil és tu? E como entraste na caverna dos ventos?
   - Ele é meu hóspede - disse a velha - e se não estás contente com esta explicação, podes ir para o saco! Já sabes agora qual é a minha opinião!
  Estas palavras produziram efeito, porque o Vento-norte tratou de contar de onde vinha, e por onde tinha andado durante o último mês.
   - Venho dos mares árticos. Estive na Ilha do Urso com os russos, caçadores de morsas. Sentei-me ao leme e dormi enquanto navegavam para sair do cabo Norte; de vez em quando acordava, e via as procelárias que voavam ao redor de minhas pernas. São aves esquisitas: dão um golpe brusco de asas e depois ficam com elas estendidas e imóveis, mas mesmo assim vão voando a grande velocidade.
   - Não sejas tão prolixo! - disse a mãe dos ventos - Então foste a Ilha do Urso?
    - Aquilo lá é esplêndido! A gente acha ali um pavimento para dançar, chato como uma panqueca, neve meio derretida e musgo; há ossos de baleia e de urso polar por toda a parte: parecem pernas e braços de gigantes, cobertos de bolor esverdeado. A gente tem a impressão de que o sol nunca os aqueceu! Dei um pequeno sopro no nevoeiro, para observar a cabana. Não era mais que uma casa construída de destroços de naufrágio e coberta de couro de baleia, com o carnaz(Parte da pele dos animais que fica oposta ao pelo ou à cútis.) para fora; era todo vermelho e verde. Um urso polar vivo estava sentado no teto, rosnando. Fui até a praia, procurar ninhos de pássaros: soprei então dentro de milhares de gargantas, e eles aprenderam a fechar a boca! Lá mais abaixo as morsas rolavam como gusanos(Verme encontrado nas plantas de agave),  monstruosos, com cabeça de porco e dentes de um metro de comprimento!
   - És um bom contador de histórias, meu rapaz! - disse a mãe.- Sinto água na boca, só de te ouvir!
   - E, foi então uma caçada!...Os arpões mergulhavam no peito das morsas e o sangue esguichava, que nem fonte, no gelo. lembrei-me então do meu desporto...Soprei e fiz meus navios - os blocos de gelo, altos como montanhas -apertar os botes. zzzz...como os homens assobiavam, e como gritavam! Mas eu assobiava mais alto. Viram-se obrigados a atirar fora as morsas mortas, cestas, cordas - tudo foi parar no meio do gelo! Sacudi flocos de neve em cima deles, e empurrei-os para o sul, para irem provar a água salgada...Aquele nunca mais voltarão à Ilha do Urso!
      - Pois fizeste muito mal! só o mal! - disse a mãe dos ventos.
  - O bem que fiz, os outros que te contem. Mas ali vem meu irmão do oeste! Gosto mais dele do que dos outros; cheira a mar. e traz consigo sempre uma esplêndida brisa glacial!   - É o suave Zéfiro, não é? - perguntou o príncipe.
   - Sim, é o Zéfiro - disse a velha - mas que seja tão suave, isso não! Era dantes um menino delicado, mas isso foi há muito tempo...
  Parecia um velho selvagem dos matos, e tinha na cabeça um chápeu acolchoado, certamente para se defender de golpes. Empunhava um cacete de mogno, cortado sem dúvida nas florestas da América. Não podia ser outra coisa.
    - De onde vens? - indagou a mãe.
  - Da solidão das florestas! Daquelas florestas onde as trepadeiras espinhentas se emaranham nas árvores, formando um muro; onde a cobra-d'água vive na relva úmida; e onde a criatura humana não parece ser desejada!
  - E que fizeste por lá?
  - Olhei dentro do rio profundo, e vi-o despenhar-se dos rochedos, desfeito em pó, e voltar a atirar-se para as nuvens, para formar o arco-íris. Vi o búfalo  selvagem nadando no rio, mas a corrente arrastou-o para longe. Flutuou com o bando de patos bravos, que voavam para o céu quando chegavam às cataratas; mas o búfalo teve de descer por ela abaixo. Gostei de ver aquilo, e soprei uma tempestade, de sorte que as árvores mais velhas se despedaçavam em estilhaços!
  - E nada mais fizeste?
   - Também andei dando saltos mortais nas savanas, dei palmadas no cavalo selvagem e sacudi os coqueiros. Sim, tenho muitas histórias para narrar! Mas a gente não deve contar tudo o que sabe..Não é, velha dama?
   Beijou a mãe, e com tanta força que ela quase caiu para trás. Era na verdade um rapaz selvagem!
   Apareceu naquele momento o Vento-sul. Vestia a capa flutuante e o turbante do beduíno. Ao entrar disse, metendo mais lenha no fogo:
  - Que frio horrível! Bem que se vê que o Vento-norte chegou primeiro!
   - Pois aqui está tão quente, que dá para assar um urso polar- disse o Vento-norte.
  - Tu já és mesmo um urso polar!
  - Queres ir para o saco? - perguntou a velha. - Senta-te naquela pedra e conta-nos onde andaste.
  - Na África mãe! Andei caçando o leão com os hotentotes* na Cafraria*! Que verde a grama daquelas planícies! É da cor da oliva. Os gnus andavam dançando em roda, e as avestruzes correram carreiras comigo - mas sou ainda o mais veloz. Fui ao deserto de areias amarelas. Parece o fundo do mar. Encontrei uma caravana! Estavam matando o último camelo, para tirar água para beber, mas não arranjaram muita, não. E era o sol abrasando, lá em cima, e a areia queimando, cá embaixo! Não se viam limites naquele deserto sem fim. Então cavei a areia fina e escorregadia e levantei-a em enormes redemoinhos - e que dança! Era coisa digna de se ver o abatimento dos dromedários, e o mercador a arrancar o cafetã da cabeça! Prosternou-se diante de mim como se eu fosse seu deus Alá. Agora lá estão soterrados, e há uma pirâmide de areia em cima deles todos; quando eu soprar por lá outra vez, o sol há de branquear os seus ossos, e então os viajantes hão de ver que houve gente por ali antes deles: a não ser assim dificilmente o acreditariam naquele deserto!
    - Então tua andaste fazendo o mal! - disse a mãe. - Entra para o saco!
   E antes que ele soubesse bem onde estava, ela segurara o Vento-sul pela cintura e metera-o no saco; ele ainda rolou pelo chão, mas a velha sentou-se em cima e tudo ficou quieto.
   -Teu filhos são rapazes muitos vivos - disse o príncipe.
  - Sim, assim é ; mas eu sei dominá-los! Aqui está o quarto.
   Era o Vento-leste, e vinha vestido de chinês.
  - Olá! Vens daquele quarteirão? Pensei que estavas no Jardim do paraíso.
  - Somente amanhã irei para esse lado- disse o Vento-leste. - Faz amanhã cem anos que lá estive pela última vez. Venho agora da China, onde dancei ao redor da torre de porcelana, até fazer todas as campainhas tinirem outra vez! Nas ruas os funcionários eram açoitados; estouravam-lhes nas costas as canas de bambu, posto que fossem gente de alta categoria, do primeiro ao nono grau. Gritavam: "Dou-te graças, meu paternal benfeitor!" Mas essas palavras não lhe vinham do coração. E eu ia tangendo as campainhas, e cantando, "Tsing, Tsang, Tsu"!
   - Mas tu é louco! - disse a velha dama. - É muito bom que vás amanhã ao Jardim do Paraíso, que sempre influi na tua educação. Trata de beber bastante na fonte da sabedoria, e traze-me uma garrafinha cheia.
   - Eu trarei - disse o Vento-leste. - Mas por que meteste meu irmão Sul no saco? Ele que saia, porque tem de me falar sobre a Fênix. A princesa do Jardim do paraíso sempre quer noticias dela, quando lhe faço minha visita, de cem em cem anos. Abre o saco, mãe, e serás a mãe mais querida, e te darei dois bolsos de chá, tão fresco e tão verde como na hora em que o colhi, lá onde nasceu!
   - Pois bem; em honra do chá, e também porque és o meu rapaz predileto, vou abrir o saco.
    Assim o fez, e o Vento-sul saiu, arrastando-se; mas vinha muito desapontado, porque o príncipe estrangeiro vira a sua humilhação.
  - Aqui tens uma folha de palmeira para o princesa - disse ele. - Deu-ma a Fênix em pessoa, a única que existe no mundo. Com o bico ela rabiscou na palma toda a história dos seus cem anos de vida. A princesa pode ler, e verá como a Fênix prendeu fogo ao ninho, e sentou-se sobre ele, e morreu queimada, como uma viúva hindu. E como estalavam os galhos secos! E que fumaça subia no ar! E era um cheiro...Mas afinal tudo ardeu em chamas, e a velha Fênix ficou reduzida a cinzas: mas seu ovo ali ficou, rubro no meio do fogo; rebentou com grande estouro, e o filhote voou. Agora reina sobre todas as aves, e é a única Fênix no mundo inteiro. Ele deu uma bicada nesta palma: é um cumprimento para a princesa.
     - Vamos agora comer alguma coisa- disse a mãe dos ventos.
   Sentara-se todos, para comer o veado assado; o príncipe sentou-se ao lado do Vento-leste, e logo ficaram bons amigos.
  - Peço-te que me expliques - disse ele ao Vento-leste - quem é essa princesa de quem falavas; e também onde fica o Jardim do Paraíso.
   - Queres ir lá! - perguntou o vento-leste. - Pois então voa amanhã comigo. Devo dizer-te, contudo, que nenhum homem lá esteve ainda, desde o tempo de Adão e Eva. Lêste o que deles dizem tuas histórias da Bíblia, não?
   - Lá, sim!
   - Quando eles forma expulsos, o Jardim do Paraíso caiu na terra; mas conservou o calor do sol, o ar suave, e todo o seu esplendor. É lá que mora a Rainha das Fadas; é lá também que fica a Ilha da Felicidade, onde não entra jamais a morte, onde a vida é um eterno deleite. Amanhã montarás nas minhas costas e eu te levarei até lá; creio que posso fazê-lo! Mas agora não fales mais, que quero dormir.
   E foram descansar. Quando o príncipe acordou no dia seguinte, não ficou surpreendido de se ver acima das nuvens. Estava sentado nas costas do Vento-leste, que o segurava com muito cuidado ; iam tão alto que campos e matos, riso e lagos pareciam apenas um grande mapa colorido.
  - Bom-dia- disse o vento-leste. - Podes dormir mais um pouco, porque não há muito o que ver naquele país sem relevo que está lá embaixo - a não ser que queiras contar as igrejas. Parecem manchinhas de giz no tapete verde.
   Ele chamava"tapete verde" aos campo e pradarias.
  - Foi muita grosseria minha sair sem me despedir de tua mãe e de teus irmãos. - disse o príncipe.
   - Ora, isso se desculpa, porque estavas adormecido.
   Voavam agora ainda mais depressa. Podia-se observar o seu voo pelo cicio das árvores, quando passavam por cima dos bosques; e sempre que sobrevoavam um lago, ou o mar, as vagas levantavam-se, e grandes navios mergulhavam fundo nas águas, como cisnes nadando.
   Ao lusco-fusco era interessante olhar para as grandes cidades, com todas as luzes tremeluzindo aqui e ali; pareciam as faíscas de um papel queimado, que se espalham no ar, como as crianças quando saem da escola. O príncipe bateu palmas, mas o Vento-leste disse-lhe que era melhor que se segurasse bem, senão poderia cair e ficar espetado nalgum campanário.
   A águia da grande floresta era rápida no voo; mas o Vento-leste era ainda mais rápido. O cossaco*, montado no seu cavalo, corria veloz pelas planícies; mas a corrida do príncipe era ainda mais veloz.
    - Agora já podes ver a cordilheira do himalaia. São as montanhas mais altas da Ásia - disse o vento-leste- não tardaremos em chegar ao Jardim do Paraíso.
   Desviaram-se mais para o sul, e o ar recendia já as especiarias e flores. Os figos e as romãs eram silvestres, e das vinhas, também  silvestres, pendiam cachos vermelhos e arroxeados. Desceram ali e estenderam-se na grama macia, onde as flores inclinavam a cabecinha para o lado do vento, com quem diz: " Sê bem-vindo!"
   - Já estamos no Jardim do paraíso? - perguntou o príncipe.
  - Não, não! Mas breve chegaremos. Vês aquela muralha de rochedos, e a grande caverna, de onde pende a vinha como uma enorme cortina? Temos da atravessá-la! Abriga-te bem na capa; aqui o sol queima, mas daqui a dois passos sentirás frio de enregelar. A  ave que paira além da caverna tem uma asa aqui no calor do verão e a outra lá no frio do inverno.
   - Então este é o caminho do Jardim do paraíso! - disse o príncipe.
    Entraram na caverna. Como era frio lá dentro! Mas isso não durou muito. O vento-leste abriu as asas elas brilharam como uma chama ardente. Mas que caverna aquela! Enormes blocos de pedra, manando água, pendiam sobre a cabeça dos viajantes, e tinham as mais variadas formas ; ora eram tão estreitos e tão baixos que eles tinham de arrastar-se, andando de gatinhas; ora alargavam-se, erguendo tão altos que aprecia já o ar livre. Dir-se-ia uma capela funerária, onde se viam os tubos mudos de órgãos petrificados.
  - Parece que vamos viajando pela estrada da Morte, para ir ao Jardim do Paraíso!
   O vento-leste não respondeu uma palavra a esta observação do príncipe; apenas apontou para a frente, onde se via brilhar uma bela luz azul. Os blocos de pedra acima deles forma ficando mais pálidos e mais pálidos, e afinal tornaram-se transparentes como uma nuvem branca ao luar. O  ar, deliciosamente suave, era fresco como no alto das montanhas, e perfumado com a brisa que sopra entre as roseiras do vale.
   Corria ali um rio, tão claro como o próprio ar, e os peixes que nele nadavam pareciam de ouro e de prata. Caracolavam dentro d'água enguias purpurinas, que apresentavam reflexos azulados a cada salto; e as grandes folhas dos nenúfares tingiam-se de todas as cores do arco-íris, enquanto a flor era como uma ardente chama cor de laranja, que se alimentava da água como o óleo conserva uma lâmpada constantemente acesa. Uma firme ponte de mármore, esculpida com tanta perícia e delicadeza que parecia feita de renda e contas de vidro, dava acesso por sobre as águas à Ilha da Felicidade, onde florescia o Jardim do Paraíso.
   Tomando nos braços o príncipe, levou-o o Vento-leste por cima dela. As flores e folhas cantavam todos os lindos cânticos de sua infância, mas cantavam-nos mais admiravelmente do que qualquer voz humana poderia cantá-los.
   E aquelas árvores? Eram palmeiras ou plantas d'água gigantescas? O príncipe nunca vira árvores tão belas nem tão viçosas. Das árvores pendiam festões de trepadeiras extraordinárias, daquelas que só se veem pintadas a ouro e a cores lindas, nas margens de velhos missais, ou entrelaçadas nas letras iniciais. Era a combinação mais admirável de passarinhos, flores e arabescos.
    Ali perto pousava na relva um bando de pavões, todos com a brilhante cauda aberta em leque. Sim...o príncipe assim o julgou; mas quando tocou nas aves verificou que não eram pavões, mas plantas. Eram grandes folhas de bardana, brilhantes como a cauda do pavão. Leões e tigres andavam, como ágeis gatos, pelas sebes verdes, que recendiam a flor de oliveira; e leão e tigre eram mansos. A pomba do mato, cintilante como a mais linda pérola, batia com as asas na juba do leão; e a antílope, de ordinário tão tímida, ali estava parada, acenando com a cabeça, como se também quisesse tomar parte no brinquedo.
   Nesse momento apareceu a Fada do Jardim, que se adiantou para cumprimentá-los; sua roupagem brilhava como o sol, e irradiava do seu rosto aquele fulgor da mãe feliz, que se regozija com a volta do filho. Era jovem, e lindíssima, e cercava-a um bando de meninas amáveis, cada uma com uma estrela brilhante no cabelo.
   Quando o Vento-leste lhe entregou a folha com a inscrição da Fênix, seus olhos fulgiram de alegria. Tomou o príncipe pela mão e levou-o para o seu palácio, cujas paredes eram da cor da pétala da tulipa, quando refulge à luz  do sol. O teto era uma imensa flor fulgurante, e quanto mais a gente olhava para ela, mais profundo parecia o cálice. O príncipe foi até a janela, e, olhando pela vidraça, viu a Árvore da Ciência, com a serpente,e Adão e Eva ali perto.
  - Então eles não foram expulsos? - perguntou.
   E a Fada explicou-lhe que o tempo gravara uma pintura em cada vidro; mas essas pinturas não  eram pinturas comuns, como as que conhecemos: eram cenas vivas; as folhas das árvores moviam-se; as pessoas iam e vinham, como as imagens refletidas em um espelho.
   Olhou ele então por outro vidro e viu o sonho de Jacob, com a escada subindo direita para o céu, e anjos de asas imensas, que subiam e desciam por ela.
  Tudo o que já aconteceu neste mundo vivia e movia-se naqueles vidros das janelas; somente o Tempo podia imprimir figuras tão maravilhosas.
  Sorrindo, levou-o a Fada para uma sala grande e alta, cujas paredes eram como pinturas transparentes, que representavam rostos, cada qual mais belo. Eram milhões: os bem-aventurados,     que cantavam e sorriam: e todos os seus cânticos fundiam-se em uma melodia perfeita. Os que estavam mais acima eram tão miudinhos que pareciam menores que o menor botãozinho de rosa: não eram mais que um pontinho em um desenho. No meio da sala erguia-se uma grande árvore, de galhos pendentes; maças dourada, grandes e pequenas, apareciam entre a folhagem, como laranjas. Era a árvore da Ciência,cujo fruto Adão e Eva tinham comido. De cada folha pendia uma gota de sereno, vermelha e rutilante - parecia que a árvore estava chorando lágrima de sangue.
   - Vamos agora entrar no bote - disse a linda Fada do Jardim. - As águas agitadas trazem frescura. O bote arfa, mas não se move do lugar: todos os países do mundo passarão diante de nossos olhos.
   Curiosa visão, na verdade era aquela da costa em movimento! Ali vinham os Alpes altíssimos vestidos de neve, com suas nuvens e seus pinheiros sombrios. A trompa ecoava melancólica e o pastor cantarolava suavemente pelos vales. Bananeiras curvavam as largas folhas por cima do bote; cisnes negros nadavam na água, e na praia apareciam as flores e os animas mais estranhos. Era a Nova Holanda, a quinta parte do mundo, que ia deslizando, sobre u fundo de montanhas azuis.
   Ouviram cânticos de padres, e viram danças de selvagens, ao som de tambores e flautas feitas de ossos. As pirâmides do Egito alcançavam as nuvens. Viram coluna derrocadas; e logo depois navegavam diante deles as Esfinges meio enterradas na areia. Vinha depois a Aurora Boreal, iluminando os vulcões extintos do polo - eram fogos de artifício que ninguém poderia imitar!
   Sentia-se o príncipe muito feliz; e ainda viu cem vezes mais coisas do que as que aí ficam descritas. Por fim indagou:
  -Posso ficar aqui para sempre?
   - Isso depende de ti - respondeu a fada. - Se não te deixares tentar, como Adão, e não fizeres o que é proibido, poderás ficar aqui para sempre.
  -Não tocarei nas maças da Árvore da Ciência - disse ele. - Há aqui milhares de frutas, tão soberbas como aquelas...
   - Sonda o teu coração; e se não és bastante forte, volta com o Vento-leste, que te trouxe. Ele vai sair agora, e não tornará senão daqui a cem anos; esse tempo, neste lugar , passa voando, como se fossem apenas cem horas. Mas é ainda assim tempo bastante longo para tentação e pecado. Todas as tardes, à hora do crepúsculo, eu terei de dizer-te: " Vem comigo! " e te chamarei com um aceno - mas tu deves ficar para trás. Não me acompanhes, porque a cada passo que deres teus desejos irão aumentando. Entrarás no salão, onde está a árvore da Ciência; eu durmo à sombra de seus ramos fragrantes. Terás de te curvar  sobre  o meu rosto; eu te sorrirei, mas se me beijares os lábios, o Paraíso imediatamente submergirá nas profundezas da terra, e estará perdido para ti. Ventos cortantes, vindos das regiões selvagens, soprarão em roda de ti; chuva, gelada gotejará sobre a tua cabeça. Terás de suportar tristezas e aflições.
  - Quero ficar aqui! - disse o príncipe.
   E o vento-leste beijou-o na fronte, dizendo-lhe:
  - Se forte, e nos encontraremos outra vez aqui mesmo, daqui a cem anos. Adeus! Adeus!
   E distendeu as largas asas, que brilhavam como papoulas no tempo da ceifa, ou como a Aurora Boreal no frio inverno.
   - Adeus! Adeus! - sussurrava a voz do Vento-leste, entre as flores e as árvores.
   Cegonhas e pelicanos voavam na linha, como fitas ondulantes, levando-o para o extremo do jardim.
   Agora vamos começar nossas danças, informou a Fada; e no fim, quando eu dançar contigo, à hora em que o sol se põe, tu me verás acenar-te e chamar-te: "Vem comigo!" Mas fica onde estás: não me atendas! Terei de repetir isto todas as noites, nestes cem anos. Cada vez que resistires, tu te tornarás mais forte, e afinal acabarás por nem pensar mais em me seguir. Será hoje a primeira vez. E agora estás avisado!
   E a Fada levou-o para um grande salão todo feito de lírios brancos e transparentes, cujos estames amarelos formavam dentro de cada um uma pequenina harpa dourada, que produzia sons de flauta e de instrumentos de corda. Moças amáveis, esbeltas e flexíveis, vestidas de gaze flutuante, que revelava os membros delicados, resplandeciam na dança, e cantavam de alegria da alegria de viver - declarando que nunca morreriam, e que o jardim do paraíso floresceria para sempre.
   O sol desceu para o poente e o céu ficou todo banhado de uma luz que dava aos lírios o matiz das mais lindas rosas; e o príncipe bebeu o vinho espumoso que as donzelas lhe ofereceram. Sentia uma alegria tão grande como jamais conhecera; viu o fundo do salão que se abria, e ali apareceu a Árvore da Ciência tão cheia de esplendor que o cegava. De lá vinha um canto suave e delicado, como a voz de sua mãe, e parecia dizer-lhe: " Meu filho, meu filho bem-amado!"
   Então a Fada acenou-lhe, chamando com voz persuasiva:
   - Vem! Vem comigo!
   Era tão terna a voz que ele a seguiu, esquecendo a promessa feita, esquecendo tudo já na primeira noite em que ela lhe sorria e o chamava.
    A fragrância do ar que o cercava era cada vez mais intensa, as harpas soavam mais suavemente do que nunca, e parecia que no salão onde estava a árvore, milhões de rostos sorridentes lhe acenavam e cantavam:
   - Devemos saber tudo. O homem é o senhor da terra!
    Já não eram mais lágrimas de sangue que gotejavam da árvore; pareciam-lhe agora brilhantes estrelas vermelhas.
   - Vem! Vem! - chamavam ainda a voz trêmula.
   E a cada passo sentia o príncipe mais ardentes as faces, e o sangue correr com mais rapidez.
  - Tenho de ir -dizia ele - não é pecado, devo ir vê-la dormindo. Nada se perderá se eu não a beijar, e eu não a beijarei. tenho força de vontade!
   A Fada deixou cair suas vestes cintilantes, afastou os ramos, e um momento depois estava oculta dentro da folhagem.
  - Ainda não pequei! - disse o príncipe. - Nem hei de pecar!
   Afastou então os galhos. Lá estava ela, já adormecida, e tão bela como somente a Fada do jardim do Paraíso pode ser. Sorria em sonhos; ele se curvou e viu as lágrimas que lhe tremiam nos cílios.




   - É por mim que choras? - murmurou ele. - Não chores, linda menina. Só agora compreendo a bem-aventurança do Paraíso: ela vibra no meu sangue e nos meus pensamentos. Sinto a força dos anjos e da vida eterna em meu corpo mortal! Se eu tivesse de viver na noite eterna, um momento como este me recompensaria!
    E ele enxugou com um beijo as lágrimas dos seus olhos; e beijou-a na boca.
   Ouviu-se então um som de trovão, mais estrondoso, mais espantoso do que tudo quanto ele jamais ouvira, e tudo o que o cercava desmoronou. A linda Fada, o Paraíso florido, tudo caiu e cada vez ia descendo mais. O príncipe viu que tudo se afundava na escuridão da noite; e brilhava agora lá longe, como uma estrelinha, pequenina e cintilante. Fechou os olhos, e ficou longo tempo como morto.
  Fria chuva caía-lhe no rosto, e um vento cortante soprava-lhe ao redor da cabeça. Afinal, voltou-lhe a memória.
   - Que fiz eu! - suspirou ele.- Pequei como Adão, pequei tão gravemente que o Paraíso caiu na terra!
   Abriu então os olhos ainda pode ver a estrela, a longínqua estrela que cintilava como o Paraíso; era a estrela da manhã, que brilhava no céu. levantou-se e viu que estava no mato, perto da caverna dos ventos; e a mãe dos ventos estava sentada ao seu lado. Parecia muito zangada, e ergueu a mão, dizendo:
   - Então, já primeiro dia! Mas eu logo vi! Sim! Se fosses meu filho, irias para o saco!
   - Ele não demora muito a ir para lá - disse a Morte.
   Era uma velha forte, com uma foice na mão e grandes asas negras. E ela continuou:
   - Ele será deitado em um caixão. Não agora; eu apenas o assinalo e deixo-o ainda por algum tempo andar pela terra para expiar seu pecado e ficar melhor. Virei algum dia. E quando ele menos me esperar, voltarei; deito-o então em um caixão negro, ponho-o à cabeça e voo para a estrela. Lá também floresce o jardim do Paraíso, e se ele for bom e piedoso entrará no jardim; mas se ainda tiver  pensamentos perversos e o coração cheio de pecado, caíra cada vez mais baixo, dentror do seu caixão, mais abaixo ainda do que o Paraíso caiu; e eu irei apenas uma vez em mila nos, para ver se ele vai afundando mais, ou e se ergue para a estrela, a cintilante estrela que está brilhando lá em cima!
FIM

*Hotentotes;
Esses dois grupos são os san, também conhecidos por bosquímanos ou boximanes e que são caçadores-coletores, e os khoikhoi, que são pastores e que foram chamados hotentotes pelos colonizadores europeus.

*Cafraria:
região do Sudeste da África, habitada por povos não muçulmanos de raça negra. 

Cosaco:*

refere-se a grupos de formações sociais e militares, inicialmente, de origem turca .

   (Oi amiguinhos queridos esta história também é longa , então para não demorar as postagens vou postando o que consigo digitar, que delícia estes contos, eu amo muito tudo isso)

Nenhum comentário:

Postar um comentário