quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O CERRO DOS ELFOS - CONTOS DE ANDERSEN

 Passeavam alguns lagartos, inquietos e preocupados, pelas fendas de uma árvore centenária, e enquanto andavam, iam conversando. Entendiam-se perfeitamente, pois que todos falavam a língua lagarteira.
   - Que barulho, que rebuliço lá dentro do Cerro dos Elfos! - dizia um. - Não pude pregar olho a noite inteira, com aquela algazarra! Era o mesmo que se eu tivesse dor de dentes!
   - Alguma coisa se passa lá, não resta dúvida- disse outro lagarto. - Há qualquer novidades no ar! Até a madrugada o cerro esteve erguido sobre quatro estacas vermelhas, para ficar bem arejado, e o corvo e as bruxinhas novas tem estado a aprender danças e mais danças, com sapateados estranhos...Algo há!...
    - É verdade - interveio terceiro lagarto. - Uma minhoca que conheço vinha saindo debaixo da terra; ela não para de contar! Coitada! Não pode ver nada, pois que é cega, mas ouvindo todo aquele rebuliço se pôs a escuta, e ficou sabendo muita coisa. No cerro encantado esperam uma visita importante; mas a minhoca não quis dizer quem é- talvez nem ela mesma o saiba...Todos os fogos-fátuos tiveram ordem de organizar a dança das tochas; e toda a prataria, e todo o ouro que rola prata e ouro, lá dentro do cerro! - foram areados, e postos a secar ao luar.
   - Quem poderá ser essa gente? - perguntavam os lagartos uns aos outros - Que estarão preparando lá dentro? Que barulho! E como tudo treme...
    Naquele instante abriu-se o Cerro dos Elfos, e apareceu a bruxa velha, a mãe dos elfos; não tinha costas, como uma máscara, e coxeava, mas vinha trajada convenientemente. Era a aia do rei dos Elfos, e aparentada de longe com a família real. Trazia na fronte, um coração de âmbar. Pôs-se a nadar e - oh! céus! - Quem diria que podia correr assim! Não parou senão quando chegou à casa da Ave de Mau Agouro, no pantanal.
   - Estás convidado para ir esta noite ao Cerro dos Elfos - disse ela. - E queres encarregar-te dos demais convites? Como não tens de cuidar do arranjo da casa, terás tempo de sobra, e deves ajudar-nos de alguma forma. Esperamos uma visita importante - alguns gnomos nossos amigos, que têm comunicações a nos fazer - e el-rei quer oferece-lhes uma festa.
   - E a quem devo convidar?
  - Ao baile pode ir todo o mundo, até criaturas humanas, desde que falem dormindo, ou tenham qualquer outro costume que as assemelhe à nossa gente. Mas no banquete só tomarão parte pessoas escolhidas e distintas: não admitimos gentinha! Tive até de teimar com o rei, pois na minha opinião não devíamos convidar os fantasmas. O tritão e as filhas devem ser convidados em primeiro lugar. visto que não devem gostar de ficar em terra seca, terão á disposição uma pedra úmida para sentar, ou talvez alguma coisa melhor; creio que assim não recusarão o convite desta vez. Devemos convidar os velhos anões rabudos da montanha; o duende do arroio, o diabinho doméstico; e não devemos esquecer o elfo preto, o porco do cemitério, o cavalo morto e os anões da igreja. É certo que estes últimos pertencem ao clero, que não é da nossa hierarquia; mas isso é por força do ofício, e eles vem a ser quase nossos parentes. Além disso, visitam-nos seguidamente.
   -Cró, cró- disse o corvo noturno, que lá se foi voando, a fazer os convites.
   Já as bruxinhas dançavam no cume do cerro; flutuavam ao redor delas seus longos véus de nevoeiro e luar, formando um quadro lindíssimo, para quem aprecia estes espetáculos. No centro do cerro ficava o vasto salão, esplendidamente adornado. O soalho fora lavado com raios de luar, e as paredes envernizadas com graxa de feiticeira, de sorte que brilhavam à luz como se fossem pétalas de tulipas. Na cozinha, estavam assando e preparando vários pratos: rãs assadas, peles de serpente, salada de sementes de chapéu de cobra; focinhos úmidos de camundongos e cicuta. Havia ainda cerveja, vinda diretamente da cervejaria da Mulher do Brejo, e vinho feito do salitre resplandecente das sepulturas. Isso quanto às comidas de sal; viriam depois, é claro os doces: pregos enferrujados e vidros de janelas de igreja.
   A coroa de ouro do velho rei dos elfos fora polida com pó de lápis de pedra; e era o lápis do monitor da classe, coisa muito difícil de obter, mesmo para o rei dos elfos. Puseram cortinas novas no quarto do rei, fixando-as com baba de lesma. Era na verdade um grande rebuliço no cerro!
   - Agora só o que falta é queimar crina e pelo de porco, para defumar, estará pronta a minha tarefa- disse a feiticeira velha, a que era aia do rei.
  - Papai querido - perguntou então a filha mais moça do rei - pode me dizer agora quem são esses hóspedes tão importantes?
  - Pois sim - respondeu  rei - não vejo inconveniente em que o saibas agora. Duas de minhas filhas devem estar prontas para casar, pois que duas infalivelmente casarão. O velho trasgo da Noruega, que mora nas vetustas montanhas do Dovre, e é dono de muitos castelos inexpugnáveis*, assentes no rochedo, além de uma mina de ouro, que vale ainda mais que os castelos, vem vindo para cá com seus dois filhos, que andam em busca de esposas.  O velho trasgo é um norueguês leal e honrado como os que mais o sejam, homem alegre e cheio de nobreza. Conheço-o há muitos anos, desde os bons tempos em que bebíamos juntos, Aqui veio ele buscar também sua esposa, que hoje está morta; era filha do rei da margueira de Mon. Casou bem. Anseio por tornar a ver o velho elfo norueguês! Dizem que os filhos são tanto grosseiros, mal-educados: jovem insolentes, mesmo. Talvez seja isso apenas acusação injusta; e com a idade se tornarão melhores. Verei talvez a minha família ensinar-lhes as boas maneiras.
   - E quando vem? - indagou outra.
   -Isso depende do vento e do tempo. Viajam muito devagar, e com muita economia. Virão por água, e esperarão uma oportunidade de viajar em algum navio. Eu queria que viessem pela Suécia, mas o velho não gosta desse caminho. É que ele não acompanha a marcha do tempo, não faz progresso, e isso é o que me aborrece.
   Naquele instante dois fogos-fátuos vinham chegando; como um saltava mais depressa, entrou primeiro. E ambos gritavam:
   - Vem aí! ...Vem aí!...
   - Deem-me minha coroa, e deixem-me aparecer ao luar - disse o rei.
  As filhas ergueram os mantos de luar e inclinaram-se até o chão. Ali estava o velho trasgo do Dovre, cingido de sua coroa de granizos endurecidos e pinhas lustrosas. Abrigava-se em uma pele de urso, e calçada botas altas, também de pele. Mas os filhos tinham o peito descoberto, porque eram rapazes vigorosos e não temiam o frio.
 - Isto é um cerro? - perguntou o mais jovem. - Lá na Noruega chamamos a isto uma toca!
   - Rapaz - disse o velho- onde tens então o miolo? Não tens olhos para ver que uma toca entra no chão e um cerro se ergue acima dele?
  A única coisa que lhes causou admiração, segundo disseram, foi o fato de compreenderem a língua daquela terra, sem nenhuma dificuldade.
   - Deixem-se de fumaças, rapazes! - disse o velho trasgo. - Quem os ouve poderá tomá-los por filhotes de urso, e mal-educados.
  Entraram no cerro, onde se achavam já reunidos os convidados do rei, e com tamanha pontualidade, que pareciam ter sido trazidos pelo mesmo golpe de vento. Tudo fora preparado conforme a condição de cada convidado: os habitantes do mar sentaram-se à mesa em tinas cheias d'água,  e diziam que se sentiam como se estivessem em casa, isto é, como o peixe na água. Portavam-se todos corretamente à mesa, exceto os trasguinhos noruegueses, que puseram os pés sobre a mesa, achando que tudo lhes era permitido.
    -Tirem os pés de cima da mesa! - ordenou o trasgo velho.
   Obedeceram, porém não imediatamente. Começaram então fazer cócegas nas damas que lhes ficavam aos lados, com as pinhas que tinham trazido nos bolsos; tiraram as botas, para ficar mais à vontade, e pediram que elas as segurassem. Mas o pai, o trasgo velho, era diferente: contava histórias muito lindas dos penhascos imponentes da Noruega, e das cascatas que se despenham, brancas de espuma, com rumor de trovão e vozes de órgão. Falava do salmão, que sobe aos saltos, rio acima, quando o espírito das águas toca na sua harpa de ouro; falou também nas claras noites de inverno, em que as campainhas do trenó repicam alegremente, e os moços patinam com tochas acesas sobre o gelo liso, tão transparente que eles veem os peixes que nadam sob os seus pés. E contava tão bem contado, que era como se todos estivessem vendo e ouvindo, o que ele descrevia. Era o mesmo que se as serrarias estivessem zunindo, e do salão. E de repente - zás! Eis que o trasgo velho dá na aia do rei um sonoro beijo! E eles não eram parentes, nem de longe!
     Seguiu-se o baile das filhas do rei: primeiro uma dança comum; em seguida, começaram a dança do sapateado, de muito belo efeito. Mas depois veio a mais difícil, chamada "dança fora da dança". Executaram então o que se chama pas de caractére. Valha-nos Deus! Que maneira de estirar as pernas! Não sabia mais a gente onde elas começavam, nem onde acabavam; nem também se sabia mais o que era braço, nem o que era perna, de tanto que se retorciam! Pareciam fitas de madeira, que se enrolam e desenrolam, ao voar da plaina do marceneiro. Rodavam tão ligeiras como piorras, e tanto giraram que o cavalo morto começou a se sentir mal, e teve de sair da mesa.
   - Cáspite! - exclamou o elfo grisalho. - São pernas vivas, não há dúvida! Esta é a verdadeira dança escocesa serrana. Mas que mais sabem elas fazer, além de girar como um torvelinho?
   - Já vais vê-lo - disse o rei- chamando a filha mais nova.
   Era delicada e brilhante como um raio de luar, e a mais graciosa de todas. Metia na boca uma varinha de madeira branca e sumi-se por encanto. Era um dom especial.
   Declarou logo o velho duende que não gostaria nada de casar com uma moça que tivesse semelhante faculdade, e achava que também nenhum de seus filhos a quereria.
   A segunda podia caminhar ao lado de si própria, como se fosse uma sombra - coisa que os elfos não possuem, como se sabe, nem a tiveram jamais, e nem a terão em tempo algum.
   O talento da terceira era muito diverso daqueles. Aprendera alguma coisa na cervejaria da Mulher do Brejo e sabia a arte misteriosa de  rechear toros de álamo com vaga-lumes.
    - Será uma boa dona de casa - disse o velho trasgo.
   E brindou-a com um cumprimento dos olhos, por que não queria beber muito.
   Veio então a quarta. Trazia uma magnífica harpa de ouro; mal vibrou nela a primeira nota, todos ergueram a perna esquerda - porque os elfos são canhotos dos pés. E quando ela tocava a segunda corda, todos eram obrigados a fazer tudo quanto ela queria.
  - Esta é perigosa! - disse o velho trasgo.
    Mas os filhos, fartos já daquilo tudo, saíram a tomar ar.
   - E a outra, o que é sabe? - continuou ele a indagar.
   - Eu aprendi a amar os noruegueses, respondeu ela própria; e não me casarei, a não ser para ir morar na Noruega.
   Mas a filha nova do rei cochichou no ouvido do velho:
  - Ela diz isso porque ouviu cantar uma canção norueguesa que dizia que quando o mundo se submergir, os rochedos da Noruega se manterão firmes, e permanecerão, como monumentos; por isso ela quer ir para lá, porque tem muito medo da morte.
   - Ah! Então é assim? - disse o velho trasgo. - Mas que faz a sétima?
   - Antes da sétima vem a sexta - disse o pai, que sabia contar.
    Contudo, a sexta não se apresentou logo. Afinal, disse:
  - Eu, só o que sei dizer a verdade a todo o mundo. E como ninguém se importa comigo, já tenho muito trabalho para aprontar  minha mortalha.
   Apareceu enfim a sétima, e última das irmãs; e sabem qual era a sua habilidade? Pois sabia contar histórias; uma infinidade delas; e sempre tinham uma história nova para contar.
  - Conta-me tantas histórias quantos são os dedos da minha mão - disse o velho:
   A bruxinha segurou-lhe o pulso, e o trago riu, riu tanto, que se torcia todo. Quando ela chegou ao dedo anular, em que brilhava uma anel de ouro - como se já soubesse que ia haver casamento - o velho disse-lhe:
   - Segura bem, que a mão é tua: caso contigo, eu mesmo.
   Observou a moça que ainda não tinha contado as histórias do dedo mindinho e do seu vizinho; mas o velho respondeu:
   - Ficam para o inverno. Hás de nos contar então todas as histórias que sabes a respeito do pinheiro, e do vidoeiro, e do gelo que estala e se racha, e dos presentes das ninfas dos bosques. Sim, contar-nos-às muitos casos, porque lá não há ninguém que saiba contá-los. E nunca ouvi contar como tu! Nós nos sentaremos no salão de pedra, onde queimam toros de pinheiro da Noruega, e beberemos o hidromel nos copos de chifre e ouro, que pertenceram aos antigos reis da Noruega; o Espírito das Águas deu-me um par deles de presente. E, quando a sereia for nos visitar, ela cantará para nós todas as canções das pastorinhas montanhesas. Verás como será divertido! Verás o salmão saltar na cachoeira, batendo a cauda contra as pedras do reino...Acredita...a vida é muito agradável na nossa velha e querida Noruega! Mas...onde estão os rapazes?
   Sim! Onde estavam os seus filhos - aqueles diabretes?
  Ora, andavam fazendo correrias pelo cerro, e apagando os fogos-fátuos que tinham vindo com tão boa vontade organizar a marcha das tochas.
   - Mas que vadiação é esta, marotos? Eu já escolhi uma mãe para vocês; agora cada um pode escolher uma das tias.
  Mas os moços declararam que era muito melhor fazer discursos e beber em boa camaradagem, porque não tinham inclinação para o casamento. Fizeram, pois, discursos, e beberam, tocando os copos uns nos outros; e depois viraram-nos de fundo para o ar, para mostrar que estavam vazios. tiraram então os casacos e deitaram-se na mesa para dormir, porque procediam como se estivessem em casa, e não queriam saber de cerimônias. Mas o velho trasgo dançou com a jovem noiva,, e trocou os sapatos com ela - costume mais delicado do que trocar anéis.
  De repente a velha bruxa solteirona, que tomava conta da casa, gritou:
  - O galo está cantando! Vamos fechar as janelas, senão o sol nos estragará a cútis!
  E o cerro fechou-se por si.
  Os lagartos passeavam abaixo e acima, pelas fendas da velha árvore, e dizia um:
  - Como é simpático o velho trasgo norueguês, não acham?
   Ao que retrucou logo a minhoca:
  - Gostei muito dos filhos!
   Mas a pobre da minhoca é cega, coitada!
FIM




O que é inexpugnáveis: Diz-se das coisas que não podem ser alcançadas, conquistadas; que são difíceis de acessar; invencíveis.

Queridos leitores, todas essas histórias dos Andersen são extensas, então vou continuar postando aos poucos.( pausa para buscar filho na escola)

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