domingo, 3 de abril de 2016

O QUE MEU MARIDO FAZ ESTÁ BEM-FEITO - CONTOS DE ANDERSEN

  Vou contar-te agora uma história que ouvi quando era menino e da qual nunca me esqueci. E cada vez gosto mais dela e a acho mais bonita, pois  que com as histórias se dá o mesmo que com as pessoas; há algumas que vão ficando mais bonitas ao passo que envelhecem- o que já é uma consolação.
   Já estiveste no campo e viste por lá mais de uma casa velha, bem velha, uma casinha de camponês; tem o teto de palha, coberto de ervas e de musgo, e bem na cumeeira está o inevitável ninho da cegonha. As paredes estão fora de prumo; há apenas duas ou três janelinhas baixas, e isso mesmo só uma é que se pode abrir. O forno fica saliente pelo lado de fora. Por cima da cerca um sabugueiro estende os galhos e cobre um pequeno lago, ou antes, um banhado, onde alguns marrecos tomam banho. Um cão preso na corrente, ladra a quantos passam.
   Numa dessas moradas rústicas morava um casal de velhos. Não tinham eles quase nada no mundo ,e, contudo, possuíam uma coisa que lhes era desnecessária: um cavalo, que pastava a erva da beira da estrada. Quando o campônio ia à cidade montava-o, e muitas vezes os vizinhos lhe pediam o animal emprestado, em troca de algum pequeno serviço. Parecia-lhe, pois, que seria melhor desfazer-se daquele bem supérfluo, vendendo-o ou trocando-o por coisa de mais utilidade. O que devia fazer?
   - Ora, isso ninguém melhor do que tu poderá saber-disse-lhe a mulher. - Hoje é dia de feira na cidade. Vai lá e leva o cavalo, pois com certeza hás de trazer alguma coisa em troca: dinheiro ou o que for- o que escolheres será o que mais convém. Vai, pois, à feira!
   Arranjou-lhe ao pescoço um belo lenço, deu-lhe a laçada - coisa que ela fazia melhor que ele - alisou-lhe o chapéu com a palma da mão, beijou-o, e o velho montou então no cavalo, que ia ser vendido ou trocado.
     - Sim - dizia ela consigo - o velho entende de negócios e há de sair-se bem.
     O sol era causticante; não se via uma nuvem no céu. Na estrada poeirenta era enorme o movimento de pessoas que se dirigiam à cidade; uns iam a pé, outros a cavalo, outros ainda de carro. E não se via uma sombra para abrigar os viajantes. Todos sentiam muito calor e não se avistava  hospedaria alguma.
    Entre os transeuntes ia um homem que levava uma vaca para o mercado. Era tão bonita quanto o pode ser uma vaca. E o camponês pensou lá consigo:
   - Que leite bom há de ser o daquela vaca! Ora aí está uma boa troca - esta vaca soberba pelo meu cavalo!
    E, dirigindo-se ao homem da vaca, chamou-o:
    - Olá! Homem da vaca! Escuta! Quero fazer-te uma proposta: sabes que um cavalo vale mais que uma vaca, não é? Mesmo assim eu fecharia o negócio, pois a vaca me presta mais serviço do que o cavalo. Queres trocá-la comigo?
    - Certamente! - foi dizendo logo o homem.
     E fizeram a troca.
     É claro que o velho podia voltar imediatamente, pois estava ultimado o negócio que o levara à cidade. Mas alegrara-se com a ideia de ver aquela feira e resolveu ir até la´; e foi, levando a sua vaca. Iam ambos, ele a vaca, a passos rápidos, e não tardou que o homem alcançasse outro, que levava uma ovelha  - uma ovelha como  não se veem muitas, com um pelo longo e espesso, de boa lã.
     - Um animal daqueles é que era bom para nós! - disse consigo o velho camponês. -  Não é o capim para ela pastar o que há de faltar, e no inverno pode ficar dentro de casa. Será até uma distração para a minha velha. É isso; uma ovelha nos convém muito mais que uma vaca...Olá amigo! Queres fazer uma troca?
       Ora, o outro não se fez de rogado. Tratou de levar a vaca e deixar a ovelha. O velho continuou seu caminho, agora com a ovelha.
    De repente desemboca de um atalho outro camponês, que trazia debaixo do braço um pato vivo, gordo, um pato como se veem poucos! E o campônio ficou admirado!
     - Que peso carregas - disse ele ao outro. - É um animal extraordinário! Que gordura! Que plumagem!
      E pensou  de si consigo:
     - Se fosso nosso, aposto que minha boa velhinha acharia meio de engordá-lo ainda mais...Comeria tudo quanto fosso resto...E de que tamanho não ficaria então? E minha mulher me tem dito tantas vezes: "Que bom se tivéssemos um pato! Faria bela figura entre os marrecos!" Pois talvez haja meio de ter ela um pato- e um pato que vale por dois! Vamos ver...
     E foi falar como homem do pato:
     - Olá, camarada! Queres fazer uma troca comigo? Ficas com a minha ovelha e me dás o teu pato. Estava então muito perto da cidade. A multidão aumentava sempre - homens e animais enchiam a estrada. Havia gente que andava até por dentro dos valos, ao longo das cercas. Na barreira, então, o povo acotovelava-se.
      O guarda- barreira tinha uma galinha, e, para que não escapasse - pois estava assustada de ver tanta gente - amarrou-a com um cordão. A galinha, trepada à cerca, sacudia a cauda( haviam-lhe aparado as penas para que não voasse) piscava os olhos, com certa malícia, dizendo incessantemente.
    - Có-ró-có-có! Có-ró-có-có!...
     Pensaria nalguma coisa aquela galinha? Não o sei eu; mas o certo é que o camponês, mal avistou, pôs-se a rir; dizendo consigo:
     - Que galinha bonita! Sim, é a galinha mais bonita que já vi na minha vida! É mais bonita mesmo que a chocadeira do pastor!E que ar alegre ela tem! Não, a gente não pode olhá-la sem desatar a rir... Palavra que a queria para mim! Uma galinha é o animal mais fácil de manter... Elas acham sempre, em toda a parte, o que mariscar; não é preciso que a gente ande cuidando delas. Se eu pudesse levá-la em troca deste pato, acho que sairia ganhando...
       E, mostrando o pato ao recebedor, foi dizendo:
      - Vamos fazer uma troca?
      - Mas, certamente - respondeu o homem, sem hesitar.
      E ficou com o pato e o velho levou a galinha. Mas agora, com tanto caminha andando e tanto negócio feito, o camponês sentia-se cansado e com sede. Não deixaria de beber alguma coisa se encontrasse uma estalagem. E avistando logo uma, para lá se dirigiu. Ia saindo naquele momento um rapaz com um saco às costas.
    - Que levas aí? - perguntou o homem.
     - Um saco de maças chochas para os porcos.
       - Como! Maças chochas para os porcos? Mas que desperdício! Pois minha mulher gosta muito de maças. E que contente não ficaria ela se pudesse ter todas essas! No ano passado a nossa macieira velha, perto do estábulo, deu uma única fruta: nós a colocamos sobre a cômoda e ali ficou ela até apodrecer. E minha mulher dizia: "Isto sempre prova que a gente tem fartura, não é?"Imaginem se apanhassem um saco cheio delas! Que bom se eu pudesse dar à minha velha, essa alegria!
     - Pois sim, quem sabe? Que me daria por este saco? - perguntou o rapaz.
     - O que eu te daria? ... Mas esta galinha. Não é suficiente?
      Fez, pois , a troca e entrou na hospedaria. Foi deixar o saco encostado à chaminé e sentou-se para tomar alguma coisa.
      A estufa estava muito quente, mas ele não se deu conta disso. A sala estava repleta de negociantes de gado, trapaceiros, e havia ali  também dois viajantes ingleses. Ora, os ingleses eram tão ricos que traziam a bolsa recheada de moedas de ouro. E gostavam muito de apostas, como vamos ver.
       De repente ouviu-se um chiado, que vinha do lado da chaminé:
       Chisss! Chisss! Chiiiissss!
       Que seria  aquilo? Ora! Não era mais que o saco de maças: estavam assando.
     - Mas que é aquilo? -  Indagou um dos ingleses.
      - São as minhas maçãs - respondeu o campônio.
    E contou toda a historia aos ingleses: desde o cavalo até o saco de maçãs.
    - Pois espera! Porque  tua mulher não se conformará com isso! - disseram eles. - Vais levar uma boa sova, bom homem, quando chegares à tua casa.
    - Eu? Estão enganados! Ela me dará beijos, isso sim! E dirá: " O que meu marido faz está bem -feito."
     - Aposto que não!...Olha, bom velho, apostamos o que tu quiseres - cem libras ou um tonel cheio de ouro.  
     -  Um alqueire chega -disse o camponês. - Não tenho senão meu alqueire de maças e a nós mesmos, eu e minha mulher, de contrapeso. Acho que vale a pena. Que dizem os senhores?
    - Combinado! - disseram os ingleses imediatamente.
     E ficou ajustada a aposta. Veio o carro da pousada. Subiram os ingleses e o camponês.
     Não tardou muito que chegassem à casinha rústica.
    - Boa noite, mulher!
    - Boa noite, meu velho!
    - Fiz o negócio: troquei o cavalo.
     - Ah! Eu sabia: tu tens muito tino.
     E a velha deu-lhe um beijo, sem se preocupar mais com os estrangeiros do que com o saco  que o velho trazia.
    - Troquei o cavalo por uma vaca- explicou ele.
     - Louvado seja Deus! Que rico leite vamos tomar!  E a manteiga e o queijo! Foi uma troca muito acertada!
    - Pois sim, mas depois troquei a vaca por uma ovelha.
     - Muito melhor! Nosso pasto não dá mais que para uma ovelha, mesmo; não nos faltará leite, todo o jeito, e eu gosto tanto de queijo de ovelha... Além disso teremos a lã; poderei tecer meias e jaquetas bem quentinhas . E isso não nos daria a vaca, com o seu pelo! Como tu pensas em tudo!
     - Sim, mas...é que toquei a ovelha por um pato.
     - Pois olha, foi ótimo! Comeremos pato assado  este ano, pelo Natal. Meu querido velhinho, tu acertas sempre com o que  me causa mais alegria! Que bem fizeste! Daqui até o Natal o pato tem muito para engordar.
     - Não acabei, querida: não tenho mais o pato, porque o troquei por uma galinha.
     - Uma galinha! Mas isso tem muito valor! A galinha põe ovos, choca-os, e sai uma ninhada de pintos. Os pintinhos crescerão depressa e em pouco tempo teremos aqui um galinheiro cheio. Um galinheiro! Era esse o sonho de minha vida!
      - Sim, querida velhinha, mas acabei por trocá-la por um saco de maças chochas...
      - Que dizes? Isso é verdade, meu velho? Então tenho de te dar um beijo, meu rico marido! Porque vou te contar o que me aconteceu hoje: mal saíste de manhã, pus-me a pensar que petisco havia de fazer para a tua ceia. lembrei-me de fazer uma omeleta de cebolinho. Fui então ali em frente, à casa do mestre-escola e pedi alguns emprestados à sua mulher. Ora, sabes bem como é mesquinha, com aqueles seu ar todo adocicado...E ela me respondeu: " Emprestar! Mas se nós não temos nada na horta- nem cebolinho, nem sequer uma maça chocha... Estou na verdade desolada, vizinha, de não a poder servir!" E vim para casa sem cebolinho. E amanhã irei oferecer-lhe maças chochas, pois que ela não as possui... Poderei oferecer-lhe um saco cheio, se ela quiser. Mas que boa resposta! Como uma mulher vai ficar vexada! Já estou achando graça por antecipação!
      E, passando os braços pelo pescoço do marido, deu-lhe beijos tão estalados como os dá uma ama no rosto de uma criança.
     - Sim, senhor! - disseram então os ingleses.- Está aí uma coisa que dá gosto ver! Tudo aconteceu de melhor para pior e nem por um instante se lhes alterou o bom humor! Acham sempre o lado bom em tudo...Isso vale como uma verdeira lição.
     Deram pois ao camponês, tão bem recebido pela mulher, depois de negócios tão extravagantes, as cem libras de peso em ouro, e o velho viu-se mais rico do que se tivesse vendido dez cavalos, e por preço trinta vezes maior do que valia o velho animal.
FIM



3 comentários:

  1. Como me sinto agraciado agora, a muitos anos, com apenas 13 para 13 anos, meus pais me deram este livrinho de história. E jamais esqueci, hoje contudo trabalho com a formação de casais e me senti inspirado a contar-lhes essa história. Arrisquei na internete, coloquei a frase " o que meu marido fizer estar bem feito" e vuala!!!! Achei. muito agradecido a iniciativa. Além da nostalgia boa. Pois a todos que contava esta história ninguém as conhecia. Fico feliz de abrir os comentários desta publicação espero conseguir outras estórias como a do "menino de ouro e o menino de prata"

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  2. AGRADEÇO MUITO A CONSIDERAÇÃO E A EMOÇÃO,,COMENTÁRIOS ASSIM ME INCENTIVAM MAIS A CONTINUAR A DIVULGAR OS CONTOS. QUE LEGAL TEU TRABALHO. UM ABRAÇO..

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