segunda-feira, 25 de abril de 2016

O CORVO - CONTOS DE GRIMM

     Era uma vez uma rainha que tinha uma filha muito pequena, de colo, ainda. Certo dia a menina estava choramingando muito e a mãe não conseguia aquietá-la. perdeu, por isso, a paciência e, vendo uns corvos que voavam em torno do palácio, abriu a janela e assim ralhou com a menina:
     - Que bom que fosses um corvo e saísses voando! Ao menos eu teria descanso...
      Mal pronunciara essas palavras, a criança transformou-se em corvo e saiu voando pela janela. Foi dar num bosque escuro, onde permaneceu muito tempo, sem que seus pais soubessem nada a seu respeito.
       Certa ocasião um homem, que passava pelo bosque, ouviu o grasnido de um corvo. Aproximando-se mais, notou que a ave falava:
       - Sou uma princesa de nascimento. Fui enfeitiçada, mas tu poderias livrar-me do encanto.
        - Que devo fazer? -indagou ele.
        - Segue pelo bosque a dentro até encontrares uma casa onde vive uma velha. Ela te oferecerá comida e bebida. Não aceites coisa alguma, pois, por pouco que  comeres ou beberes, ficará mergulhado num sono de pedra e já não será possível libertar-me. No jardim, atrás da casa, há um montão de feno. Sobe nele e ali espera por mim. Em três dias, seguidos, virei, às duas da tarde, numa carruagem puxada, primeiro, por quatro cavalos brancos; depois por quatro zainos e, no terceiro dia, por quatro cavalos negros. Se, então, em vez de acordado, estiveres dormindo, não me poderás desencantar.
          O homem prometeu fazer tudo, mas o corvo suspirou e disse:
         - Ai! Bem sei que não me salvarás; sinto que vais aceitar alguma coisa da velha.
        O homem tornou a afirmar que em nada tocaria. Quando chegou à casa indicada, a velha saiu ao seu encontro.
        - Pobre homem! - falou- como pareces fatigado! Entra e descansa um pouco . Aqui terás comida e bebida.
        - Não, - respondeu-lhe o homem, - não tenho vontade de comer nem de beber.
        Mas a velha retrucou, insistindo:
        - Se não queres comer, então bebe, ao menos, um traguinho; um só não se leva em conta. E o forasteiro, cedendo à tentação, bebeu um gole, Pela tarde, às duas horas, saiu ao jardim e sentou-se no monte de feno, onde pretendia esperar a chegada do corvo. Enquanto ali estava , sentiu de repente, um cansaço, tão grande que se deitou para repousar um pouco, com o firme propósito de não dormir. entretanto, mal se estendera sobre o feno, seus olhos se fecharam e ele adormeceu profundamente. Nada neste mundo o faria despertar. Às duas horas em ponto apresentou-se o corvo, em sua carruagem puxada por quatro cavalos brancos. Mas durante a viagem, um pressentimento, já vinha murmurando:
     - Sou capaz  de apostar que ele está dormindo!
   Aproximou-se dele, mas não conseguiu acordá-lo. No terceiro dia, a velha perguntou:
     - Que é isso? Não comes nem bebes? Acaso queres morrer?
     Mas ele respondeu, com firmeza:
    - Não quero e não devo comer nem beber!
     Mesmo assim, ela colocou à sua frente um prato de comida e um copo de vinho. Quando o convidativo aroma de bebida lhe subiu às narinas, o homem não pode resistir à tentação e tomou um bom trago. À hora marcada, saiu para o jardim e, subindo no monte de feno, quis aguardar a vinda da princesa. Sentindo-se, porém, mais fatigado que na véspera, deitou-se e dormiu de novo como uma pedra. Às duas horas apareceu o corvo, com quatro cavalos negros. A carruagem era, também negra. Cheia de profunda tristeza, a ave exclamava:
      - Bem sei que ele está dormindo e não irá libertar-me!
      Quando chegou onde ele estava, encontrou-o, com efeito, profundamente adormecido e, embora o sacudisse e o chamasse, não houve meio de despertá-lo. Colocou a seu lado um pão, um pedaço de carne e uma garrafa de vinho. mas era uma carne e um vinho que, por mais que ele comesse e bebesse, nunca terminariam. Enfiou-lhe no dedo um anel de ouro que tirara de uma de suas garras e que tinha gravado o nome dela. Por último, escreveu-lhe um bilhete e explicando o que lhe havia dado e que  aquela comida e bebida nunca terminavam. E acrescentou: "Bem vejo que aqui não me podes desencantar. Mas se quiseres mesmo fazê-lo, vai ao castelo de ouro de Stromberg. Está em teu poder libertar-me, disso tenho certeza."
      E, tendo-lhe deixado tudo aquilo, subiu, novamente, à sua carruagem e tomou o rumo do castelo de ouro de Stromberg.
      Quando o homem despertou e percebeu que dormira, sentiu grande tristeza e lamentou-se:
      - Decerto ela passou por aqui e eu não pude salvá-la!
     Aí viu os objetos depositados junto a ele; leu o bilhete e ficou sabendo como havia sucedido tudo. levantou-se e quis ir ao castelo de ouro de Stromberg. O pior de tudo é que não tinha a menor ideia de onde ficava ele. Depois de ter percorrido muitas terras, chegou um dia a uma floresta escura. Era uma floresta tão escura e vasta que por ali andou durante duas semanas sem encontrar saída. fatigado, estendeu-se entre uns arbustos e adormeceu. Na manhã seguinte, prosseguiu andando e, à tardinha, quando se dispunha a acomodar-se, de novo, numa moita, para passar a noite, ouviu lamentos e gemidos que não o deixaram adormecer. Quando chegou a hora em que se costuma ascender as luzes, viu brilhar uma, à distância, e se dirigiu a ela. Assim, chegou a uma casa que lhe pareceu pequeníssima, pois diante dela estava parado um gigante enorme. Pensou o homem: "Se eu entrar ali e o gigante me enxergar, isso pode custar-me a vida!"Por fim, dominado o medo, aproximou-se. Quando o gigante o avistou, lhe disse:
              - Que bom que vieste! Faz muitas horas que não tenho o que comer. Vou engolir-te agora!
           - Não faças isso! - respondeu-lhe o homem. - Não gosto da ideia de ser engolido. mas, se o que queres é comer, tenho o bastante para fartar-te.
           - Sendo assim, - disse o gigante, - podes ficar tranquilo. Só quis te devorar na falta de coisa melhor.
       Sentaram-se os dois à mesa e o homem serviu o pão, vinho e carne que nunca terminavam.
       Quando acabaram a refeição, o homem perguntou-lhe:
       - Por acaso não me poderás dizer onde fica o castelo de ouro de Stromberg?
       - Vou olhar no mapa - respondeu o gigante. - Ali estão marcadas todas as cidades, aldeias e casas do mundo.
      Foi buscar o mapa que guardava na sala e começou a procurar o castelo. Mas o castelo não estava  no mapa.
     - Não faz mal, - disse  o gigante. - No armário, lá em cima, tenho mapas muito maiores, para procurar mais coisas.
     Foi inútil. O castelo também faltava nos  mapas mais minuciosos. O homem, então , quis seguir seu caminho, mas o gigante pediu que esperasse ainda mais uns dias, até chegar seu irmão que saíra em busca de alimento. Quando regressou, perguntaram-lhe pelo castelo de ouro de Stromberg.
    - Depois do almoço  respondeu o gigante - consultarei o mapa.
     Subiram, depois, ao quarto e se puseram a procurar no tal mapa. Não encontraram, porém, o castelo. O gigante desencavou, então, novos mapas e não pararam de examiná-los, até que, finalmente, deram com ele. Situava-se a milhares de milhas dali.
    - Como poderei chegar lá? - perguntou o homem, desolado.
    Respondeu-lhe um dos gigantes:
     - Disponho apenas de duas horas. poso levar-te às proximidades do castelo; depois preciso voltar para dar de comer ao meu filho.
     O gigante transportou-o até umas cem horas de distância do castelo e lhe disse:
    - O resto do caminho poderás fazer com tuas próprias pernas- e regressou à sua casa.
      O homem continuou andando dia e noite até, finalmente, chegou. O castelo de ouro se Stromberg ficava no alto de uma montanha. Mas o cristal era muito liso e ele escorregava sempre. vendo como eram inúteis as suas tentativas, entristeceu-se muito e suspirou:
    - Ficarei aqui embaixo e esperarei por ela!
    Construiu uma choupana, onde viveu durante um ano inteiro. Todos os dias assistia à passagem da princesa em sua carruagem, sem nunca poder chegar até onde estava.
     Certa vez, viu, dentro da choupana, três bandidos que lutavam.
    - Deus seja convosco! - gritou para eles.
     Os homens interromperam a luta, mas, como não viram ninguém, recomeçaram a brigar com maior fúria que antes. A coisa ficou mesmo preta e o homem tornou a gritar-lhes:
      - Deus seja convosco!
      Novamente suspenderam a briga, mas, como tampouco viram alguém, logo recomeçaram. pela terceira vez, o homem gritou:
     - Deus seja convosco! - e pensou: " Preciso ver que se trata."
     Dirigiu-se então a eles e indagou por que motivo estavam brigando. Um dos homens respondeu-lhe que encontraram um bastão que abria qualquer porta, com um só golpe. o outro disse ter achado uma capa que tornava invisível a quem pusesse nos ombros. O terceiro contou haver pegado um cavalo que andava por todos os lugares e era capaz de subir a montanha de cristal. Brigavam por não saberem se deviam guardar as três coisas em comum ou se deviam separar-se, cada qual levando uma delas. Disse, então, o homem:
     - Dinheiro não tenho, mas trocarei essas três coisas por outras que valem mais. Antes porém, quero fazer uma prova para verificar se falaram a verdade.
      Os homens deixaram-no montar o cavalo e puseram-lhe a capa nos ombro e o bastão na mão. De posse daquilo tudo, ele tornou-se invisível e começou, então , a dar uma boas surra nos três, gritando-lhes:
     - Bandidos! Aí tem o que merecem. estão satisfeitos?
      Em seguida subiu a montanha de cristal e, ao chegar à porta do castelo, encontrou-a fechada. Bateu nela com o bastão e imediatamente a porta se abriu. O homem subiu a escadaria e chegou a um salão onde estava a princesa, ainda em forma de corvo, com um copo de ouro, cheio de vinho, à sua frente. Mas a princesa encantada não podia vê-lo, pois ele tinha nos ombros a capa que o tornara invisível. Aproximando-se, ele tirou o anel que ela lhe pusera no dedo e o deixou cair no copo. A  joia, ao tocar no fundo, fez um lindo tinido e logo a princesa exclamou:
       - Este é o meu anel! E o homem que há de me salvar deve estar aqui!
       Procuraram-no por todo o palácio mas não encontraram. Saindo do castelo, montou o seu cavalo e tirou a capa. Quando as pessoas chegaram à porta e o avistaram, irromperam em exclamações de alegria. o homem apeou e abraçou a princesa, que afinal tomara a forma humana e que lhe deu um longo beijo, dizendo:
      - Agora sim, estou livre do feitiço. Amanhã celebraremos o nosso casamento! FIM
   

quarta-feira, 20 de abril de 2016

A ÁGUA DA VIDA - CONTOS DE GRIMM

Era uma vez um rei que um dia adoeceu e foi piorando tanto, tanto que ninguém mais acreditava que ele ainda pudesse salvar-se. Certa ocasião, os três filhos do rei, desesperados, saíram de junto do seu leito e foram chorar no jardim do palácio. Ali encontraram um velho que lhes perguntou o motivo de sua tristeza. os rapazes lhe explicaram que o pai estava muito enfermo e não tardaria a morrer, pois não havia remédio que o curasse.
      Disse-lhes o velho:
     - Pois eu sei de uma coisa que o salvará; É a água da vida. Quem bebe dela fica curado. Mas é muito difícil encontrá-la.
     Ouvindo isso, o mais velho dos príncipes exclamou:
    - Eu a encontrarei! - E, apresentando-se ao rei doente, pediu sua autorização para partir em busca da água da vida, único remédio capaz de curá-lo.
     - Não, - respondeu o rei. - É perigoso demais. Prefiro morrer.
     Mas o filho tanto insistiu que o rei afinal cedeu. O príncipe disse com os  seus botoes: " Se eu trouxer a água, passarei a ser o favorito de meu pai e herdarei o trono."
      Com esses pensamentos, iniciou ele a viagem e já tinha cavalgado por algum tempo, quando viu um  anão parado no meio da estrada.
      Aonde vais tão depressa? - perguntou-lhe o homenzinho.
     - Deixa de ser estúpido, - respondeu-lhe o príncipe com altivez,- isso não é da tua conta! - E seguiu o seu caminho.
      O  anãozinho enfureceu-se tanto com a resposta que lhe rogou uma praga. Pouco depois o rapaz entrou num desfiladeiro. À medida que o ia atravessando, mais as montanhas se estreitavam. E afinal o caminho ficou tão apertado que o jovem não pode avançar um passo mais. Também, era impossível dar volta ao cavalo. E ali ficou aprisionado!
     Durante algum tempo o velho rei esperou sua volta. O rapaz, porém, não aparecia. o segundo filho, então pediu:
     - Pai deixa-me partir em busca da água da vida! - E pensava: " Se meu irmão morreu, a coroa será minha."
     A princípio  o rei não quis deixá-lo partir, mas acabou concordando.
     O príncipe seguiu o mesmo caminho que seu irmão e encontrou, igualmente, o anãozinho. Este, também, o deteve, perguntando aonde ia com tanta pressa:
     - Não é da sua conta, pedacinho de gente! - respondeu-lhe o jovem e seguiu adiante sem olhar para trás. Mas o anão enfurecido, o amaldiçoou também, enviando-o, como o outro, ao desfiladeiro, de onde igualmente ele não encontrou saída. É o que acontece às pessoas orgulhosas!
      Como o segundo filho também não voltava, o terceiro ofereceu-se para ir buscar a água e o rei teve de ceder  ante sua insistência. Ao encontrar-se com o anão, e diante de sua pergunta para onde se dirigia com tanta pressa, ele se deteve e lhe respondeu com bons modos.
    - Procurou a água da vida, pois meu pai está gravemente enfermo.
     - E sabes onde encontrá-la?
      - Não, - respondeu o príncipe.
     - Já que te portaste com cortesia e não com insolência como teus irmãos, eu te direi como obter a água da vida. Ela jorra de uma fonte no pátio de um castelo encantado. Ali não poderás entrar sem que eu te de uma varinha de ferro e dois pedaços de pão. Com a vara baterás, por três vezes, na porta do castelo, que se abrirá em seguida. lá dentro, há dois leões ferozes que te receberão com a boca escancarada. Mas se lhes atirares o pão, logo ficarão calmos. Corre, então depressa, a buscar a água da vida antes que batam as doze badaladas da meia-noite, pois nesse momento a porta se fechará e, se não tiveres saído, ficarás preso.
    O príncipe agradeceu-lhe; tomou a varinha e os pedaços de pão e se pôs a caminho. Tudo sucedeu tal como o anão lhe anunciara. A porta abriu-se à terceira batida e, depois de ter apaziguado os leões, atirando-lhes o pão, entrou no castelo e chegou a uma sala muito grande e muito luxuosa. Ali estavam sentados como estátuas, príncipe enfeitiçados. Ele viu que dormiam e lhes tirou os anéis do dedo. Levou também uma espada e um pão que encontrou no palácio. Entrou, depois, noutra sala, ocupada por uma linda moça, que mostrou grande alegria ao vê-lo. Beijou-o, dizendo que ele a havia desencantado e que lhe daria todo o seu reino, se voltasse a buscá-la dentro de um ano, quando, então, celebrariam seu casamento com toda a pompa. Disse-lhe, também, onde estava a fonte da água da vida, avisando-o da necessidade de retirar-se antes da meia-noite. O príncipe continuou andando e chegou, finalmente, a uma sala onde havia uma cama bem larga e muito fofa, com magníficos lençóis. Sentindo-se cansado, pensou em repousar um pouco. Deitou-se e pegou no sono. Quando acordou, viu que faltava cinco minutos para as doze. Assustado, levantou-se de um salto, correu até a fonte, encheu um cantil com a água milagrosa e retirou-se a toda a pressa. No momento em que saía do castelo, soaram as doze badaladas e o portão de ferro fechou-se, tirando-lhe, ainda, um pedaço de calcanhar.
       Feliz por ter obtido a água da vida, retomou o caminho de casa, voltando a passar por onde estava o anão. Este, ao ver a espada e o pão, exclamou:
      - Nem imaginas as preciosidades que tens! A espada te servirá para vencer todos os exércitos; e esse pão não termina nunca.
      O príncipe, não querendo regressar sem os seus irmãos,indagou:
       - Querido anãozinho, não poderias dizer-me onde estão meus irmãos? Partiram  na minha frente em busca da água da vida e não voltaram mais.
       - Estão encerrados entre duas montanhas, - respondeu o anão. - Eu os enfeiticei por causa da insolência deles. O príncipe rogou por seus irmãos, tão insistentemente , que, por fim, o anão os libertou. Entretanto, achou que devia avisá-lo:
      - Cuidado! Eles tem mau coração.
        Quando seus irmãos apareceram, o jovem alegrou-se muito e lhes contou o que sucedera: encontrara a água da vida, da qual trazia um cantil cheio; desencantara uma bela princesa, que iria esperar por um ano por ele, para depois se casarem; e aí, então, receberia um reino muito grande. A seguir, os três partiram juntos e chegaram a um país devastado pela fome e pela guerra. O rei desse país já dera tudo por perdido, tão grande era a miséria. O príncipe lhe pediu uma audiência e deu-lhe o pão. E aquele pão,sempre comido e sempre inteiro, bastou para saciar a fome do povo. Depois, emprestou-lhe a espada, e, graças a ela, o rei derrotou o exército de seus inimigos, voltando o país a viver em paz e tranquilidade. O jovem recebeu de volta o pão e a espada e continuou a  andar em companhia dos irmãos. Durante a viagem encontraram, ainda, mais dois países dominado pela fome e pela guerra. também a eles o príncipe emprestou o seu pão e a sua espada. Assim conseguiu salvar três reinos.
      Depois, embarcaram em um navio  e se fizeram ao mar. Durante a travessia, os dois mais velhos falaram a sós.
      - Quem encontrou a água da vida foi o caçula. Em troca, nosso pai lhe dará o reino que nos pertence e nos veremos privados de nossa fortuna.
        Cheios de ódio e ardendo de vingança, combinaram um plano para fazer a desgraça do irmão. Aguardaram um momento em que ele dormia e trocaram a água da vida por água do mar, ficando para ambos a que era milagrosa. De volta a casa, o caçula levou ao rei enfermo um copo de sua água para que, bebendo-a, se curasse. Mal. porém, o velho provou a água do mar, ficou mais doente do que antes. E, enquanto se queixava e gemia, entraram os dois mais velhos e acusaram o irmão de haver querido envenená-lo. Deram-lhe, então, a verdadeira água da vida. Apenas o rei a tomou, sentiu que sua doença desaparecia e que estava tão rijo  disposto como nos melhores dias de sua mocidade.
       Os dois mais velhos foram então à procura do irmão menor e zombaram dele, dizendo:
     - Encontraste a água da vida? Sim! Mas tu só tiveste o trabalho e nós tivemos o prêmio. Por que não abriste o olho? Devias ter sido mais inteligente. Nós te tiramos a água no navio, enquanto dormia. Dentro de um ano, um de nós ficará, também, com a bela princesa. Mas cuidado: não nos denuncies. Nosso pai não acredita em ti e, se disseres uma só palavra, isso te custará a vida. Mas, se ficares de bico calado, nós te pouparemos.
     O velho rei ficara, assim, com rancor de seu terceiro filho, acreditando que ele havia querido atentar contra a sua vida. Mandou reunir a Corte e foi ditada a sentença pela qual o príncipe deveria ser morto secretamente. Quando, um dia, ele saiu à caça sem suspeitar nada de mal, um dos caçadores do rei foi obrigado a acompanhá-lo. Ao se embrenharem na floresta, sós os dois, o príncipe notou que o homem parecia muito triste, Perguntou-lhe, então:
      - Que estás sentindo, meu amigo?
      O outro respondeu:
      - Não posso dizer, mas como me custa!
      O príncipe insistiu:
      - Confessa tudo e eu te perdoarei.
     - Ah! - suspirou o caçador, - o rei ordenou que eu vos matasse com um tiro.
       Aí o jovem exclamou, assustado:
       - Meu bom caçador, deixa-me viver! Troca de roupa comigo, para que eu possa ocultar-me. Está combinado?
       - De todo o coração! - disse o outro. - Eu sinto que seria incapaz de vos dar um tiro.
        Trocaram as roupas e o caçador partiu, enquanto o príncipe ficava escondido na floresta.
     Passado algum tempo, chegaram à corte do velho  rei três  carruagens carregadas de ouro e pedras preciosas, destinadas ao filho mais moço. Eram enviadas pelos soberano, que, com a espada e o pão que ele lhes emprestara, haviam derrotado os inimigos e dado de comer a seus povos . Pensou, então, o velho rei: " E se meu filho estivesse inocente?" Dirigiu-se aos que os cercavam e disse:
     - Quem em dera que ainda vivesse! Lamento haver ordenado a sua morte!
     - Ele ainda vive! - exclamou o caçador. - Não tive coragem de executar vossa ordem.
      E contou ao rei como havia agido. o soberano sentiu um grande alívio no coração e deu ordem para apregoar em todo o reino que seu filho poderia voltar ao palácio, onde seria recebido com todo o carinho.
      A princesa, por sua vez, mandou fazer um caminho em frente ao seu palácio, todo de ouro, que fulgurava como um sol. Disse a seus guardas que, quem chegasse por ele, diretamente, seria o verdadeiro noivo; deviam deixá-lo passar. Aquele, porém, que viesse por um atalho, seria um impostor e deviam mandá-lo embora. Ao aproximar-se a data marcada para o casamento, o mais velho achou que devia o quanto antes ir ao palácio da princesa e apresentar-se como seu libertador. Casaria com ela e receberia o reino. Iniciou, pois, a jornada e, ao acercar-se do palácio, viu a bela estrada de ouro. pensou: " Seria uma pena cavalgar em cima dela" e, desviando-se , tomou um atalho. Mas, quando chegou em frente ao portão, disseram-lhe os guardas que ele não era o príncipe eleito e que deveria voltar.
      Pouco depois,  o segundo irmão partiu e, quando chegou à estrada de ouro e viu que o cavalo havia posto uma pata naquela lindeza, pensou: " Seria uma lástima se o animal quebrasse um só pedaço como os seus cascos"- e enveredou pelo atalho. No portão, os guardas lhe disseram que não era ele o eleito e que voltasse.
      Transcorrido um ano exato, o terceiro irmão se dispôs a abandonar o bosque e ir ao palácio da bem-amada, para esquecer sua desdita. Iniciou pois, a viagem, e ia tão absorto pelo caminho, pensando em sua noiva e como gostaria de já estar a seu lado, que nem sequer reparou na estrada de ouro. Seu cavalo andava bem ao centro dela e, quando chegou ao portão, lho abriram em seguida. A princesa o recebeu com grande alegria, dizendo que ele sim, é que era seu libertador e dono do reino e do seu coração. O casamento foi celebrado com grande aparato e em meio da alegria geral. A princesa, então, contou-lhe que seu pai havia enviado um mensageiro para comunicar-lhe o seu perdão. Depois, indo ao palácio do velho rei, o jovem contou como seus irmãos o haviam enganado e que, no entanto, jamais revelara isso a ninguém. o soberano quis castigá-los, mas os dois já haviam embarcado num navio que os levou para longe e nunca mais se soube notícias deles. FIM

Significado de desdita. O que é desditaDesdita significa falta de sorte; desventura; infelicidade;infortúnio; azar; má sorte; revés; fatalidade.


terça-feira, 19 de abril de 2016

O Camponês Pobre e a Filha Esperta - Contos de Grimm

Era uma vez um camponês tão pobre que nem terras possui, mas apenas uma choupana onde morava com sua filha única. Certo dia esta lhe disse:
    - Devemos pedir ao senhor nosso rei um pedaço de terra. O rei ficou então sabendo da miséria deles e lhes deu de presente um pedacinho de campo. Pai e filha logo começaram a lavrar sua  pequena propriedade, fazendo mil projetos para a futura safra. Quando já estava quase toda lavrada, encontraram na terra um almofariz de ouro puro.
     Escuta, - disse o lavrador à filha, - já que o senhor nosso rei foi tão bondoso dando-nos este campo, nosso dever é ofertar-lhe este almofariz.
     Mas a filha não concordou:
      - Pai, achamos o almofariz. Mas onde é que está o pilão? O rei vai perguntar por ele. E aí? O melhor é ficarmos calados.
      Mas o homem não quis ouvir o conselho e, apanhando o almofariz, o levou ao rei, contando que o haviam encontrado em seu terreno e perguntando-lhe se o aceitava como prova de sua gratidão. O rei tomou o almofariz e indagou do camponês se não havia encontrado alguma coisa mais.
    - Não - respondeu o bom homem.
     O rei, então, ordenou que trouxesse o pilão do almofariz. O camponês afirmou que não havia encontrado, mas isso de nada lhe adiantou; foi como se o vento houvesse levado suas palavras. jogaram-no a um cárcere, onde ficaria até confessar onde estava o pilão. Cada vez que os carcereiros lhe levavam pão e água - que era o alimento dos presos - ouviam o camponês murmurar:
     - Ah, se eu tivesse ouvido a minha filha! Ah, se eu tivesse ouvido a minha filha!
      Finalmente foram ao rei e lhe contaram o que o homem dizia e que se negava a comer e beber.
     O soberano ordenou que o trouxessem à sua presença e perguntou-lhe por que gritava continuamente: " Ah, se eu tivesse ouvido a minha filha!"
     -Que foi que ela te aconselhou?
    - Aconselhou-me que não vos trouxesse o almofariz, pois iríeis exigir, também, o pilão.
      - Já que tens uma filha tão esperta, eu quero conhecê-la.
      E a moça teve de ir falar com o rei. Este foi logo dizendo que, sendo ela assim tão inteligente lhe daria um enigma para adivinhar. Se o decifrasse, casaria com ela. A moça respondeu-lhe que aceitaria. E o rei continuou:
      - Apresenta-te a mim, nem vestida nem nua; nem a cavalo nem numa carruagem; nem no caminho nem fora dele. Se fores capaz disso, eu me casarei contigo.
       A jovem camponesa retirou-se e se despiu completamente,  não ficou vestida. depois apanhou uma rede de pesca, bem grande  e, metendo-se nela, cobriu-se bem, e assim não ficou nua. A seguir, alugou um burro, atou a rede à sua cauda e obrigou o animal a arrastá-la; e assim ela avançava  sem andar a cavalo nem numa carruagem. Além disso, o burro teve de andar pela beira da estrada e ela assim só tocava o solo com o dedo grande do pé e não ia nem pelo caminho e nem fora dele. Chegada ao palácio, o rei confessou que ela havia acertado tudo, satisfazendo todas as condições do enigma. Deu liberdade ao seu pai e, tomando-a por esposa, a fez dona de todas as propriedades reais.
      Passaram-se vários anos, e certo dia o rei foi a um grande desfile, num dia de festa nacional. Aconteceu, então, que alguns camponeses estacionaram seus carros em frente ao palácio, onde haviam vendido suas cargas  de lenha. Algumas das carroças eram puxadas por bois e outras por cavalos. Um dos camponeses tinham três éguas, das quais uma deu cria e, lá pelas tantas, o potrilho escapou, indo meter-se entre os bois que puxavam uma das carretas. Os camponeses, ao se reunirem, começaram a brigar e a gritar, dizendo o dono dos bois que o animalzinho só podia ser dele, enquanto o outro afirmava que o potrilho era filho de sua égua e, em consequência, lhe pertencia. A briga chegou aos ouvidos do rei, o qual sentenciou que o potro ficaria onde o haviam encontrado. Assim o proprietário dos bois passou a ser o dono, contra toda a razão. O outro camponês afastou-se, chorando a perda do seu cavalinho. Mas, como sabia que a rainha era compassiva e também tinha sangue de camponês, foi falar com ela e lhe pediu que o ajudasse a recuperar o seu potrilho.
     - Se prometes não descobrir-me, eu te ajudarei. Amanhã de manhã, quando o rei sair para revistar as tropas, para no meio da estrada onde ele passar, com uma rede de pesca, e finge que estás pescando. De vez em quando recolhe a rede e sacode-a como se estivesse cheia de peixes.
      Ensinou-lhe também o que deveria responder ao rei quando este lhe fizesse perguntas.
      E, assim, no dia seguinte, o nosso camponês ficou parado, "pescando", num lugar onde não havia água. Ao passar, o rei admirou-se muito daquilo e mandou um de seus acompanhantes para ver o que estava fazendo ali aquele louco,. O homem respondeu:
      - Estou pescando.
      O mensageiro indagou como poderia pescar num local onde não havia água e o camponês lhe respondeu:
     - Assim como dois bois são capazes de ter um potro, assim também eu posso pescar onde não há água.
      O enviado transmitiu a resposta ao rei e este fez vir o camponês à sua presença. Disse-lhe que aquela resposta não podia ser dele e mandou que confessasse logo quem era sua . Deitaram-no, então, sobre um monte de palhas e o surraram e judiaram tanto dele que o pobre acabou confessando ter sido a rainha quem lhe ensinara tudo. Ao chegar o rei ao palácio, chamou sua esposa e lhe disse:
    - Já que foste tão falsa comigo, não  quero mais saber de ti. Teu tempo de rainha passou. Volta para o lugar de onde vieste: para a tua choupana.
     No entanto, como não era tão mau como parecia, o rei disse a ela que poderia levar, como despedida, o melhor e o que mais desejasse.
     - Sim, querido esposo, - disse ela, - farei o que me ordenas.
     E beijou-o para despedir-se. Depois mandou que trouxessem em segredo, um pó para fazer dormir, que ela deitou no vinho com que ia brindar a sua partida.
     O rei bebeu um gole forte: ela, porém, apenas o provou. Pouco tempo depois, o marido mergulhou em sono profundo e ela, então, ordenou a um criado que envolvesse o rei num lençol de puro linho e que o levassem a uma carruagem que estava aguardando à porta do palácio. E assim o transportou para a sua pobre choupana. Ali o pôs em sua cama, onde ele dormiu muitas e muitas horas, até que afinal despertou e, olhando em redor, disse:
     - Meu Deus, onde é que estou?!
      Chamou os criados, mas ninguém apareceu. Passado algum tempo, sua mulher aproximou-se dele e lhe falou:
     - Meu querido senhor, mandaste que levasse o melhor e o que mais desejasse do palácio; e como para mim o melhor e o que mais quero és tu, trouxe-te comigo.
      Os olhos do rei se encheram de lágrimas e ele murmurou:
     - Minha querida, deves ser minha e eu devo ser teu para todo o sempre!
     E tornou a conduzi-la ao palácio onde, com toda a certeza, ainda vivem até hoje. FIM

Resultado de imagem para almofariz de ouroAlmofariz de ouro.
 

quarta-feira, 13 de abril de 2016

O REI DA MONTANHA DE OURO - CONTOS DE GRIMM

     Um comerciante possuía dois filhos, um menino e uma menina, ainda tão pequeninos que não sabiam andar. Certo dia dois navios, que lhe pertenciam, se fizeram ao mar com preciosa carga. Continham toda a sua fortuna. E ele imaginava ganhar muito dinheiro nos negócios, quando chegou a notícia de que os barcos haviam naufragado. Com isso, em vez de  tornar-se um homem riquíssimo como pensava, ele ficou muito pobre, sem outros bens a não ser um campo nos arredores  da cidade.
      Um dia, para esquecer um pouco sua desgraça, foi dar um passeio até esse campo. E, enquanto andava de um lado para outro, viu se súbito surgir à sua frete um homenzinho negro. O homenzinho perguntou-lhe a razão de sua tristeza e por que andava tão preocupado. Respondeu-lhe o comerciante:
     - Se ao menos pudesses me ajudar, eu te contaria tudo.
     - Quem sabe! - exclamou o homenzinho negro. - talvez eu te ajude...
    O negociante, então, contou como perdera toda a sua fortuna no mar e que só lhe restava aquele campo.
      - Não te aflijas, - disse-lhe o anãozinho. - Se me prometeres que, dentro de doze anos, me trarás aqui o primeiro que toque na tua perna quando voltares para casa, eu te garanto que terás todo o dinheiro que desejares.
    "Que outra coisa poderá ser senão o meu cachorro?" - pensou o comerciante, não se lembrando um só momento de seu filhinho. E, aceitando a condição do homenzinho negro, assinou e selou o pacto.
     Quando entrou em casa, seu filhinho, radiante de vê-lo, foi-se apoiando pelas cadeiras até chegar a ele e agarrou-se nas suas pernas. O pai assustou-se, pois se lembrou então, da promessa e se deu conta da espécie de comprometimento que assumira. Como, porém, não encontrasse dinheiro em lugar alguma a casa, convenceu-se de que tudo fora uma brincadeira do homenzinho negro. Um mês depois, subindo ao sótão em busca de uns ferros velhos para vender, eis que ali encontra, em vez dos mesmos, um montão de dinheiro. o homem recuperou o bom humor, começou a fazer compras e tornou-se um negociante mais abastado que antes.
    Enquanto isso o menino ia crescendo e se revelando inteligente e esperto. À medida que passava os anos, aumentava a aflição do pai, a ponto de refletir-se em seu rosto abatido. certa vez o rapazinho perguntou-lhe a causa de tamanha tristeza, mas o pai não lhe quis dizer. Como o menino continuasse insistindo, ele afinal confessou que, em sua ignorância, o havia prometido a um homenzinho negro em troca de grande quantidade de dinheiro e para isso firmara e selara um contrato; passados doze anos, o prazo estaria vencido e teria de entregá-lo. respondeu-lhe o menino:
     - Não te afinjas por isso, meu pai. tudo se arranjará. O homenzinho negro não tem poder sobre mim.
      O filho foi ao padre e pediu que o abençoasse e, chegando a hora fatal, pai e filho encaminharam-se juntos para o campo. Ali o menino, traçando um círculo no chão, parou no centro com o pai. Pouco depois apresentou-se o homenzinho e disse ao velho:
    - Trouxeste o que me havias prometido?
     O homem não deu resposta, mas o filho respondeu em seu lugar, perguntando:
       - Que procuras aqui?
     - Tenho um assunto a tratar com teu pai e não contigo, - replicou o anão.
    O jovem, porém, disse-lhe:
   - Enganaste e seduziste a meu pai; dá-me o contrato.
   Discutiram ainda durante  longo tempo, mas , finalmente, combinaram que o filho, já que não mais pertencia ao pai e sim ao diabo, entrasse num barco que estava ancorado à beira do rio. O pai deveria soltar a embarcação e depois empurrá-lo com o pé para o meio da corrente e assim o menino ficaria entregue às águas e ao destino. Despediu-se este do pai e entrou no barco, que o velho foi obrigado a impelir para o meio do rio. O barco virou, ficando com a quilha para cima e o tombadilho na água. o pai, acreditando que o filho se afogara, regressou, triste, para casa e chorou sua perda durante muitos anos.
   O barco, todavia, não fora ao fundo, mas havia continuado a flutuar, suavemente, com o menino agarrado a ele, até que enfim parou num lugar desconhecido, à margem do rio. O rapazinho desembarcou e, vendo um lindo palácio à sua frente, dirigiu-se para lá sem vacilar. Quando entrou, viu que só podia ser um castelo encantado. Percorreu todas as salas, mas estavam desertas, exceto a última, onde havia uma serpente enrodilhada. A serpente, por sua vez, era uma donzela que estava sob a ação daquele horrendo encantamento e que, ao vê-lo, exclamou como gente:
  - Chegaste, enfim, para libertar-me! Estou à tua espera há doze anos! - Este reino encantado e só tu podes quebrar o feitiço.
   - Que devo fazer? - indagou ele.
   - Esta noite virão aqui doze homens negros, que trazem corrente ao pescoço; perguntarão o motivo de tua presença neste palácio, mas deves ficar calado e, sem dizer uma palavra, deixar  que façam contigo o que quiserem. Irão torturar-te, baterão em ti e te darão lançaços ; aguenta tudo sem falar, pois à meia-noite eles serão obrigados a retirar-se. Na segunda noite, outros doze irão aparecer e, na terceira, vinte e quatro; estes te cortarão a cabeça. Mas à meia-noite em ponto seu poder estará findo e, se até lá houveres resistido sem pronunciar uma só palavra, estarei desencantada. Trarei então um vidro com água da vida que passarei no teu corpo e tornarás a viver tão jovem e são como antes de te degolarem.
    - Eu hei de libertar-te com imenso prazer! - afirmou ele.
     E tudo aconteceu tal como ela havia anunciado. Os homens negros não conseguiram arrancar-lhe uma só palavra e na terceira noite a serpente se transformou numa bela princesa que , de posse da água da vida, o aspergiu com ela e o ressuscitou. Em seguida atirou-se-lhe aos braços, beijando-o, e por todo o palácio reinou a alegria a animação de sempre,
     Casaram-se e durante muito tempo viveram felizes. E a rainha deu à luz um belo menino. Oito anos já haviam transcorrido, quando o jovem lembrando-se de seu pai, sentiu desejos de ir visitá-lo. A rainha não queira deixá-lo partir.
      - Sei que isso será minha desgraça. - alegava.
      Mas ele não lhe deu tréguas até conseguir a sua permissão. Ao despedir-se, ela entregou-lhe um anel mágico:
      - Põe ente anel no dedo; basta que lhe dês uma volta e conseguirás o que quiseres; promete-me apenas que não o utilizarás para fazer com que eu vá a casa de teu pai.
      E assim prometeu e, pondo o anel no dedo, desejou encontrar-se no lugar onde residia seu pai. No mesmo instante se viu transportado para la´. Mas, quando ia atravessar a porta da cidade, as sentinelas o detiveram pois estranharam vê-lo em trajes tão ricos e magníficos, Subiu, então, ao alto de uma montanha onde um pastor guardava seu rebanho. trocou suas roupas com as dele e, naqueles andrajos, pode entrar na cidade sem ser detido. Apresentou-se na casa de seu pai e deu-se a conhecer. O homem, porém, não acreditou, dizendo que na verdade tivera um filho, mas que este morrera há muitos anos. No entanto, como via que ele era um pobre pastor, iria dar-lhe um prato de comida. O rapaz, então, disse a seus pais:
   - É verdade que sou seu filho. Não vos lembrais de algum sinal em meu corpo pelo qual podereis me reconhecer?
    - Sim, - respondeu-lhe a mãe. - Nosso filho tinha um sinal em forma de morango embaixo do braço direito.
     Ele abriu a camisa e, quando os pais viram o sinal no lugar indicado, não tiveram mais dúvidas. O rapaz contou-lhes que se tornara o Rei da Montanha de Ouro, que sua esposa era uma princesa e que tinham um filhinho muito lindo de sete anos. Quando ouviu isso, o pai exclamou:
   - Lá isso é que não! Onde já se viu um rei vestido de pastor?!
    Vendo que o tomavam por um mentiroso, o jovem sem lembrar-se de sua promessa, deu volta ao anel, para que a esposa e o filho aparecessem.
    No mesmo instante os dois se apresentaram ,mas a rainha chorava e se lamentava, acusando-o de haver quebrado sua palavra e ter feito a sua desgraça.
     - Não tive má intenção e fiz isso sem refletir,- desculpou-se o rei. Ela fingiu aceitar as suas escusas, mas já estava tramando algo contra ele.
      O rapaz levou a  esposa para fora da cidade e lhe mostrou o rio em que havia sido lançado o barco que levara à grande aventura. Depois de algum tempo, ele lhe disse:
      - Estou cansado; senta-te que vou dormir um pouco.
       Apoiou a cabeça nos joelhos da esposa e ela o ficou acariciando até ele adormecer. Quando viu que  o marido dormia o sono solto, tirou-lhe o anel. depois, desvencilhou-se dele cuidadosamente para não despertá-lo. Em seguida, tomou o filhinho nos braços e, girando o anel, desejou ser transportada de volta a seu reino. Ao despertar, o rei viu-se completamente abandonado. Sua esposa e filho haviam desaparecido, assim como o anel de seu dedo, restando apenas um sapato dela, que ali ficara como lembrança.
    "Não posso voltar à casa de meus pais" - pensou; - "diriam que sou feiticeiro; não há outro remédio senão por-me a caminho e andar, andar, até que chegue a meu distante reino."
     Partiu, pois, e ao cabo de algum tempo encontrou uma montanha onde havia três gigantes a discutir violentamente como repartirem a herança de seu pai. Quando viram o rei passar, chamaram-no e, dizendo que os homens pequenos eram de grande inteligência, pediram que ele mesmo lhes fizesse a difícil partilha. A herança compunha-se de uma espada que, se alguém a brandisse e gritasse: " Degola todo mundo menos eu! ", ela, antes que o diabo esfregasse um olho, fazia rolar todas as cabeças; em segundo lugar, de uma túnica que tornava invisível a quem a vestisse; e, por último, de um par de botas que levavam, num instante, a quem as calçasse, ao lugar desejado. Disse o rei:
     - Dêe-me os três objetos, pois quero examiná-los para ver se ainda estão em bom estado.
     Deram-lhe a túnica e, mal a vestiu, transformou-se em uma mosca que naturalmente ninguém podia suspeitar que fosse ele. Depois recuperando sua forma humana, disse:
     - A túnica está boa; deem-me, agora, a espada.
      Mas aí os gigantes se opuseram:
     - Não, essa não entregaremos. Se disseres "degola todo mundo menos eu", ficaremos todos sem cabeça e só tu com vida.
      Em todo caso, resolveram afinal entregá-la, com a condição de que a experimentasse numa árvore. Ele assim fez  e a espada cortou o tronco como se fosse uma palha. Quis, então, examinar as botas, mas os gigantes se opuseram de novo:
      - Não, não as entregaremos. Se, depois de as teres calçado, te der na cabeça transportar-te para cima da montanha, ficaremos aqui sem nada.
     - Não, - prometeu o rei. - Não farei isso!
      E lhe entregaram as botas. Ficou, assim, com as três coisas. Mas, como ele só pensasse na esposa e no filho, não pode deixar de dizer consigo mesmo: "Ah, se eu estivesse na montanha de ouro!" e, imediatamente, desapareceu da vista dos três gigantes, que ficaram sem coisa nenhuma, os coitados!
     Quando chegou às imediações do palácio, ele notou que havia lá dentro grande algazarra, de mistura com sons de violinos e flautas. E lhe disseram que a rainha ia casar-se de novo, porque o primeiro marido desaparecera. Encolerizado, exclamou:
      - Foi ela que me abandonou enquanto eu dormia!
       Vestiu a túnica e penetrou no palácio sem ser visto. Quando entrou no salão, viu uma mesa grande servida com iguarias esplêndidas . Os convidados comiam e bebiam entre gracejos e risos. A rainha, sentada no lugar de honra,estava magnificamente trajada, com a coroa na cabeça. O rei colocou-se atrás de sua esposa sem que ninguém o visse. E, quando punham no prato dela um pedaço de carne, ele o tirava dali e comia. Quando lhe enchiam o copo de vinho, ele o apanhava também e bebia. Assim, apesar de estarem sempre a servi-la,  a pobre rainha ficava sem nadam pois pratos e copos desapareciam no mesmo instante. Aflita envergonhada, retirou-se para seus aposentos e começou a chorar amargamente. O rei, porém, a seguiu até lá. Desesperada, a rainha lamentou-se:
      - Será que o demônio nunca mais me abandona? Ou não terá chegado ainda o meu salvador?
       Nesse instante, o marido deu-lhe um tapa que ela aterrorizada, não podia saber de quem provinha, ao mesmo tempo que a voz dele lhe dizia:
     - Por acaso ainda não veio o teu salvador? Ele está aqui, falsa criatura. Eu merecia ser tratado assim?
      E, fazendo-se visível, encaminhou-se até o salão das festas, gritando:
      - Não haverá casamento. o rei legitimo regressou!
      Mas os reis, príncipes e conselheiros, ali reunidos, começaram a escarnecê-lo e rir-se dele. O jovem, no entanto, sem mais rodeios, perguntou:
     - Irão retirar-se, ou não?
      Vendo que um grupo se aprestava a investir contra ele para atracá-lo, desembainhou a espada e disse:
    - Degola todo mundo menos eu!
     E todas as cabeças rolaram por terra. E ele voltou ser o Rei da Montanha de ouro.
FIM

segunda-feira, 11 de abril de 2016

O JOVEM MOLEIRO E A GATINHA - CONTOS DE GRIMM

   Vivia num moinho um velho moleiro que não tinha mulher nem filhos. Tinha apenas três rapazes a seu serviço. Depois de haverem trabalhado muitos anos com ele, disse-lhes um dia o patrão:
    - Estou velho e quero descansar. Saiam a correr mundo e, aquele que me trouxer o melhor cavalo, eu darei o moinho, com a condição de cuidar de mim até a hora de minha morte.
     O mais novo dos rapazes, que era aprendiz, chamava-se João e os outros dois o tinham por bobo. E não queriam por nada deste mundo que ele chegasse as ser dono do moinho. Partiram os três juntos e, ao saírem da aldeia, os dois disseram a João o bobo:
   - É melhor que fiques por aqui mesmo.Em toda a tua vida não terás esperteza para arranjar um cavalo.
   Mas João insistiu em ir com eles e, ao anoitecer, chegaram a uma caverna, onde se abrigaram para dormir. Os dois outros esperaram que Joãozinho adormecesse e depois foram embora, abandonando-o à sua sorte. Em sua opinião, tinham sido muito espertos, mas, deixa estar, que ainda não acabou a história!
   Ao despontar do sol, João despertou e viu que se encontrava sozinho na caverna profunda. Olhou
em redor e exclamou:
     - Meu Deus! Que será de mim?
      Levantou-se, foi até a entrada da caverna e, saindo dali, entrou na floresta. pensava consigo mesmo: " Como irei encontrar um cavalo se estou aqui perdido e abandonado?" Enquanto caminhava mergulhando em negros pensamentos, veio ao seu encontro uma gatinha malhada, que  lhe disse em tom amigo:
   - Para onde vais João?
   - Oh! não adianta dizer-te. Não poderás me ajudar.
   - Sei muito bem o que procuras, - respondeu-lhe a gatinha. - Queres encontrar um belo cavalo. Vem comigo. Se me servires durante sete anos, eu te darei um tão lindo como nunca viste em tua vida.
    - " Que bicho engraçado!" -pensou João. - " Em todo caso, eu vou ver se é mesmo verdade o que está dizendo."
     A gata o conduziu a um pequeno palácio encantado, onde todos os criados eram gatinhos. Saltavam alegres da vida pelas escadas, subindo e descendo os degraus com grande agilidade. À noite, quando se sentaram à mesa, três deles se encarregaram da música: um tocava violão, outro tocava violino e o terceiro tocava trombeta, soprando com toda a força que podia. Depois do jantar, arrastaram a mesa do salão e a gatinha disse:
    - Vem João, vamos dançar!
     - Não, - respondeu ele, - não sei dançar com gata; nunca fiz isso na minha vida.
    - Então, levem-no para a cama, - ordenou a gata aos gatinhos.
      Um deles o acompanhou com uma vela até o seu quarto; outro lhe tirou o sapatos e um terceiro as meias e, finalmente, apagaram a luz. Na manhã seguinte, apresentaram-se de novo. Ajudaram-no a vestir-se, calçando as meias e atando-lhe os sapatos. Um dos gatinhos lavou-lhe o rosto e outro o secou com o rabo.
   - É bem macio! - exclamou João.
    Mas, apesar de tantas amabilidades, foi obrigado mesmo a trabalhar para a gata, cortando lenha o dia inteiro. Para isso, deram-lhe um machado de prata, uma cunha e uma serra também de prata. O tempo foi passando e ele sempre cortando lenha naquela casa em que não lhe faltava boa comida e bebida. Contudo, além da gatinha malhada e de seus servidores, que eram bichos, ele não via nenhuma criatura humana. Um dia lhe disse a patroa:
     -  Vai ao campo para ceifar e depois secar o feno.
      Entregou-lhe uma foice de prata e uma pedra de afiar, de ouro, recomendando-lhe que devolvesse tudo bem direitinho. João saiu  e fez o que lha haviam ordenado. Terminado o trabalho, voltou para casa com a foice, a pedra de afiar e o feno e perguntou à gata se não ia dar-lhe a recompensa.
      - Ainda não, - disse-lhe ela,- quero que antes faças outra coisa. Aí tens tábuas de prata, um machado, um esquadro e outros apetrechos, tudo de prata. Com isso vais construir,primeiro, uma casa  para mim.
     - João fez a casinha e depois lembrou à sua patroa que ainda não recebera o cavalo prometido, sem dar conta dos sete anos que havia passado. A gata perguntou-lhe, então, se queria ver os cavalos que possuía. João respondeu que sim. Ela abriu uma cancela e, diante dos olhos dele, apareceram doze belos cavalos, limpos e lustrosos, que lhe fizeram pular o coração de alegria. A gatinha, porém, depois de lhe haver dado de comer e beber, disse-lhe:
     - Volta para tua casa, João. Não te dou agora o cavalo, mas , dentro de três dias, eu mesmo o levarei para ti.
       E lhe indicou o caminho de volta para o moinho.
      Durante todo aquele tempo, não lhe tinham dado nenhuma roupa nova. João continuava usando seus velhos trapos que, no decorrer dos sete anos,tinham ficado curtos e apertados demais para ele. Ao chegar em casa, encontrou seus dois antigos companheiros, que também tinham voltado, trazendo os seus cavalos, embora um dos animais fosse cego e o outro, coxo.
     - Onde está teu cavalo, João? - indagaram.
     - Chegará dentro de três dias.
     Os dois puseram-se a rir, dizendo:
     - Coitado do João! De onde irá tirar um cavalo? Grande coisa deve ter arranjado!
     João entrou na sala, mas o moleiro não permitiu que ele se sentasse à mesa, porque estava muito sujo e roto. Que vergonha se alguém o visse naquele estado! Deram-lhe um prato de comida e disseram-lhe que fosse comer lá fora. À hora de dormir, os outros dois não lhe quiseram dar uma cama e João foi obrigado a acomodar-se no galinheiro, sobre um pouco de palha dura, que o espetava todo.
    Na manhã em que se completaram os três dias, chegou uma carruagem puxada por seis cavalos reluzentes que eram um gosto para os olhos. Um criado trazia a cabresto outro cavalo, que era destinado ao pobre aprendiz de moleiro. Uma belíssima princesa apeou da carruagem e entrou no moinho. Não era outra senão a gatinha a quem João servira durante sete anos. Ela perguntou ao moleiro onde estava o aprendiz.
   - Não o podemos ter aqui dentro; está sujo demais ficou no galinheiro.
     Aí a princesa mandou que fossem logo buscá-lo, e o jovem se apresenta com suas vestes que mal davam para lhe cobrir o corpo. O criado, então, tirou roupas magníficas que trazia na carruagem e depois de o haver lavado e vestido, eis que o nosso pobre João ficou tão elegante e belo que nenhum príncipe deste mundo poderia comparar-se a ele. A princesa quis ver os cavalos que haviam trazido os outros dois e que eram, um cego, e o outro, coxo. Ordenou  a seu criado que trouxesse o sétimo, o que não vinha puxando a carruagem . o vê-lo, o moleiro que confessou que jamais havia entrado no moinho um animal como aquele.
    - Este é o cavalo de João, - disse a princesa.
     - Pois o moinho  lhe pertence! - afirmou o moleiro.
       Mas a princesa lhe respondeu que poderia ficar com o cavalo e com o moinho também. Fez seu fiel João entrar na carruagem e partiu com ele. Primeiro foram à casinha que ele havia construído com as preciosas ferramentas e que  se transformara num palácio majestoso, onde tudo era de ouro e prata. Ali casou com ele e João tornou-se rico, tão rico que nunca mais lhe faltou coisa alguma. Ninguém diga, pois, que um bobo não pode vencer na vida.
FIM

Roto =; mal vestido, maltrapilho

domingo, 3 de abril de 2016

O QUE MEU MARIDO FAZ ESTÁ BEM-FEITO - CONTOS DE ANDERSEN

  Vou contar-te agora uma história que ouvi quando era menino e da qual nunca me esqueci. E cada vez gosto mais dela e a acho mais bonita, pois  que com as histórias se dá o mesmo que com as pessoas; há algumas que vão ficando mais bonitas ao passo que envelhecem- o que já é uma consolação.
   Já estiveste no campo e viste por lá mais de uma casa velha, bem velha, uma casinha de camponês; tem o teto de palha, coberto de ervas e de musgo, e bem na cumeeira está o inevitável ninho da cegonha. As paredes estão fora de prumo; há apenas duas ou três janelinhas baixas, e isso mesmo só uma é que se pode abrir. O forno fica saliente pelo lado de fora. Por cima da cerca um sabugueiro estende os galhos e cobre um pequeno lago, ou antes, um banhado, onde alguns marrecos tomam banho. Um cão preso na corrente, ladra a quantos passam.
   Numa dessas moradas rústicas morava um casal de velhos. Não tinham eles quase nada no mundo ,e, contudo, possuíam uma coisa que lhes era desnecessária: um cavalo, que pastava a erva da beira da estrada. Quando o campônio ia à cidade montava-o, e muitas vezes os vizinhos lhe pediam o animal emprestado, em troca de algum pequeno serviço. Parecia-lhe, pois, que seria melhor desfazer-se daquele bem supérfluo, vendendo-o ou trocando-o por coisa de mais utilidade. O que devia fazer?
   - Ora, isso ninguém melhor do que tu poderá saber-disse-lhe a mulher. - Hoje é dia de feira na cidade. Vai lá e leva o cavalo, pois com certeza hás de trazer alguma coisa em troca: dinheiro ou o que for- o que escolheres será o que mais convém. Vai, pois, à feira!
   Arranjou-lhe ao pescoço um belo lenço, deu-lhe a laçada - coisa que ela fazia melhor que ele - alisou-lhe o chapéu com a palma da mão, beijou-o, e o velho montou então no cavalo, que ia ser vendido ou trocado.
     - Sim - dizia ela consigo - o velho entende de negócios e há de sair-se bem.
     O sol era causticante; não se via uma nuvem no céu. Na estrada poeirenta era enorme o movimento de pessoas que se dirigiam à cidade; uns iam a pé, outros a cavalo, outros ainda de carro. E não se via uma sombra para abrigar os viajantes. Todos sentiam muito calor e não se avistava  hospedaria alguma.
    Entre os transeuntes ia um homem que levava uma vaca para o mercado. Era tão bonita quanto o pode ser uma vaca. E o camponês pensou lá consigo:
   - Que leite bom há de ser o daquela vaca! Ora aí está uma boa troca - esta vaca soberba pelo meu cavalo!
    E, dirigindo-se ao homem da vaca, chamou-o:
    - Olá! Homem da vaca! Escuta! Quero fazer-te uma proposta: sabes que um cavalo vale mais que uma vaca, não é? Mesmo assim eu fecharia o negócio, pois a vaca me presta mais serviço do que o cavalo. Queres trocá-la comigo?
    - Certamente! - foi dizendo logo o homem.
     E fizeram a troca.
     É claro que o velho podia voltar imediatamente, pois estava ultimado o negócio que o levara à cidade. Mas alegrara-se com a ideia de ver aquela feira e resolveu ir até la´; e foi, levando a sua vaca. Iam ambos, ele a vaca, a passos rápidos, e não tardou que o homem alcançasse outro, que levava uma ovelha  - uma ovelha como  não se veem muitas, com um pelo longo e espesso, de boa lã.
     - Um animal daqueles é que era bom para nós! - disse consigo o velho camponês. -  Não é o capim para ela pastar o que há de faltar, e no inverno pode ficar dentro de casa. Será até uma distração para a minha velha. É isso; uma ovelha nos convém muito mais que uma vaca...Olá amigo! Queres fazer uma troca?
       Ora, o outro não se fez de rogado. Tratou de levar a vaca e deixar a ovelha. O velho continuou seu caminho, agora com a ovelha.
    De repente desemboca de um atalho outro camponês, que trazia debaixo do braço um pato vivo, gordo, um pato como se veem poucos! E o campônio ficou admirado!
     - Que peso carregas - disse ele ao outro. - É um animal extraordinário! Que gordura! Que plumagem!
      E pensou  de si consigo:
     - Se fosso nosso, aposto que minha boa velhinha acharia meio de engordá-lo ainda mais...Comeria tudo quanto fosso resto...E de que tamanho não ficaria então? E minha mulher me tem dito tantas vezes: "Que bom se tivéssemos um pato! Faria bela figura entre os marrecos!" Pois talvez haja meio de ter ela um pato- e um pato que vale por dois! Vamos ver...
     E foi falar como homem do pato:
     - Olá, camarada! Queres fazer uma troca comigo? Ficas com a minha ovelha e me dás o teu pato. Estava então muito perto da cidade. A multidão aumentava sempre - homens e animais enchiam a estrada. Havia gente que andava até por dentro dos valos, ao longo das cercas. Na barreira, então, o povo acotovelava-se.
      O guarda- barreira tinha uma galinha, e, para que não escapasse - pois estava assustada de ver tanta gente - amarrou-a com um cordão. A galinha, trepada à cerca, sacudia a cauda( haviam-lhe aparado as penas para que não voasse) piscava os olhos, com certa malícia, dizendo incessantemente.
    - Có-ró-có-có! Có-ró-có-có!...
     Pensaria nalguma coisa aquela galinha? Não o sei eu; mas o certo é que o camponês, mal avistou, pôs-se a rir; dizendo consigo:
     - Que galinha bonita! Sim, é a galinha mais bonita que já vi na minha vida! É mais bonita mesmo que a chocadeira do pastor!E que ar alegre ela tem! Não, a gente não pode olhá-la sem desatar a rir... Palavra que a queria para mim! Uma galinha é o animal mais fácil de manter... Elas acham sempre, em toda a parte, o que mariscar; não é preciso que a gente ande cuidando delas. Se eu pudesse levá-la em troca deste pato, acho que sairia ganhando...
       E, mostrando o pato ao recebedor, foi dizendo:
      - Vamos fazer uma troca?
      - Mas, certamente - respondeu o homem, sem hesitar.
      E ficou com o pato e o velho levou a galinha. Mas agora, com tanto caminha andando e tanto negócio feito, o camponês sentia-se cansado e com sede. Não deixaria de beber alguma coisa se encontrasse uma estalagem. E avistando logo uma, para lá se dirigiu. Ia saindo naquele momento um rapaz com um saco às costas.
    - Que levas aí? - perguntou o homem.
     - Um saco de maças chochas para os porcos.
       - Como! Maças chochas para os porcos? Mas que desperdício! Pois minha mulher gosta muito de maças. E que contente não ficaria ela se pudesse ter todas essas! No ano passado a nossa macieira velha, perto do estábulo, deu uma única fruta: nós a colocamos sobre a cômoda e ali ficou ela até apodrecer. E minha mulher dizia: "Isto sempre prova que a gente tem fartura, não é?"Imaginem se apanhassem um saco cheio delas! Que bom se eu pudesse dar à minha velha, essa alegria!
     - Pois sim, quem sabe? Que me daria por este saco? - perguntou o rapaz.
     - O que eu te daria? ... Mas esta galinha. Não é suficiente?
      Fez, pois , a troca e entrou na hospedaria. Foi deixar o saco encostado à chaminé e sentou-se para tomar alguma coisa.
      A estufa estava muito quente, mas ele não se deu conta disso. A sala estava repleta de negociantes de gado, trapaceiros, e havia ali  também dois viajantes ingleses. Ora, os ingleses eram tão ricos que traziam a bolsa recheada de moedas de ouro. E gostavam muito de apostas, como vamos ver.
       De repente ouviu-se um chiado, que vinha do lado da chaminé:
       Chisss! Chisss! Chiiiissss!
       Que seria  aquilo? Ora! Não era mais que o saco de maças: estavam assando.
     - Mas que é aquilo? -  Indagou um dos ingleses.
      - São as minhas maçãs - respondeu o campônio.
    E contou toda a historia aos ingleses: desde o cavalo até o saco de maçãs.
    - Pois espera! Porque  tua mulher não se conformará com isso! - disseram eles. - Vais levar uma boa sova, bom homem, quando chegares à tua casa.
    - Eu? Estão enganados! Ela me dará beijos, isso sim! E dirá: " O que meu marido faz está bem -feito."
     - Aposto que não!...Olha, bom velho, apostamos o que tu quiseres - cem libras ou um tonel cheio de ouro.  
     -  Um alqueire chega -disse o camponês. - Não tenho senão meu alqueire de maças e a nós mesmos, eu e minha mulher, de contrapeso. Acho que vale a pena. Que dizem os senhores?
    - Combinado! - disseram os ingleses imediatamente.
     E ficou ajustada a aposta. Veio o carro da pousada. Subiram os ingleses e o camponês.
     Não tardou muito que chegassem à casinha rústica.
    - Boa noite, mulher!
    - Boa noite, meu velho!
    - Fiz o negócio: troquei o cavalo.
     - Ah! Eu sabia: tu tens muito tino.
     E a velha deu-lhe um beijo, sem se preocupar mais com os estrangeiros do que com o saco  que o velho trazia.
    - Troquei o cavalo por uma vaca- explicou ele.
     - Louvado seja Deus! Que rico leite vamos tomar!  E a manteiga e o queijo! Foi uma troca muito acertada!
    - Pois sim, mas depois troquei a vaca por uma ovelha.
     - Muito melhor! Nosso pasto não dá mais que para uma ovelha, mesmo; não nos faltará leite, todo o jeito, e eu gosto tanto de queijo de ovelha... Além disso teremos a lã; poderei tecer meias e jaquetas bem quentinhas . E isso não nos daria a vaca, com o seu pelo! Como tu pensas em tudo!
     - Sim, mas...é que toquei a ovelha por um pato.
     - Pois olha, foi ótimo! Comeremos pato assado  este ano, pelo Natal. Meu querido velhinho, tu acertas sempre com o que  me causa mais alegria! Que bem fizeste! Daqui até o Natal o pato tem muito para engordar.
     - Não acabei, querida: não tenho mais o pato, porque o troquei por uma galinha.
     - Uma galinha! Mas isso tem muito valor! A galinha põe ovos, choca-os, e sai uma ninhada de pintos. Os pintinhos crescerão depressa e em pouco tempo teremos aqui um galinheiro cheio. Um galinheiro! Era esse o sonho de minha vida!
      - Sim, querida velhinha, mas acabei por trocá-la por um saco de maças chochas...
      - Que dizes? Isso é verdade, meu velho? Então tenho de te dar um beijo, meu rico marido! Porque vou te contar o que me aconteceu hoje: mal saíste de manhã, pus-me a pensar que petisco havia de fazer para a tua ceia. lembrei-me de fazer uma omeleta de cebolinho. Fui então ali em frente, à casa do mestre-escola e pedi alguns emprestados à sua mulher. Ora, sabes bem como é mesquinha, com aqueles seu ar todo adocicado...E ela me respondeu: " Emprestar! Mas se nós não temos nada na horta- nem cebolinho, nem sequer uma maça chocha... Estou na verdade desolada, vizinha, de não a poder servir!" E vim para casa sem cebolinho. E amanhã irei oferecer-lhe maças chochas, pois que ela não as possui... Poderei oferecer-lhe um saco cheio, se ela quiser. Mas que boa resposta! Como uma mulher vai ficar vexada! Já estou achando graça por antecipação!
      E, passando os braços pelo pescoço do marido, deu-lhe beijos tão estalados como os dá uma ama no rosto de uma criança.
     - Sim, senhor! - disseram então os ingleses.- Está aí uma coisa que dá gosto ver! Tudo aconteceu de melhor para pior e nem por um instante se lhes alterou o bom humor! Acham sempre o lado bom em tudo...Isso vale como uma verdeira lição.
     Deram pois ao camponês, tão bem recebido pela mulher, depois de negócios tão extravagantes, as cem libras de peso em ouro, e o velho viu-se mais rico do que se tivesse vendido dez cavalos, e por preço trinta vezes maior do que valia o velho animal.
FIM