quarta-feira, 30 de agosto de 2017

TUK - CONTOS DE ANDERSEN

  Este é o TUK. Não que se chame Tuck, mas quando ainda não sabia falar chamava-se a si mesmo por esse nome, porque não podia dizer Carlos. E é claro que, depois  que a gente sabe disso, acha mesmo que aquele nome servia para o que ele queria dizer.
   Pois bem, queriam que o menino cuidasse da irmãzinha, a pequena Gustava, menor ainda que ele, e ao mesmo tempo estudasse a lição - duas coisas que, por sinal, não combinam lá muito bem. E o pobre do Tuck estava sentado ali, com a irmãzinha ao colo, cantando para ela todas as canções que sabia, e enquanto cantava ia deitando olhares de esguelha para a geografia, aberta diante de seus olhos.
   É que no outro dia, de manhã, devia saber de cor os nomes de todas as cidades da Ilha de Seeland e tudo mais que pudesse saber a respeito delas.
   Quando a mãe voltou - porque ela havia saído- tomou nos braços a menina; e então Tuk foi imediatamente para junto da janela, e pôs-se a ler com tanto empenho que podia ter estragado a vista: ia ficando escuro, escuro, e a mãe não tinha dinheiro para comprar velas.
    - Olha, lá vai a velha lavadeira ali da travessa- disse a mãe, olhando pela janela. - Coitada! mal pode consigo, e tem de carregar lá do poço o balde cheio...Tuk, sê um bom menino: dá um pulo até lá e ajuda a velhinha sim?
   Tuk correu, e ajudou a velha.
   Mas quando voltou à sala já era noite. Não se enxergava mais para ler. E tinha de ir para a cama - um catre velho. Sim, ele se deitou, mas ficou a pensar na lição de geografia, na Ilha de Seeland e em tudo quanto o professor dissera dela. Sim, devia ler mais alguma coisa, e não era possível. Meteu o livro debaixo do travesseiro, porque ouvira dizer uma vez que isso dá bom resultado, quando a gente tem de aprender uma lição: mas ninguém deve fiar-se nisso...E, deitado, continuava a pensar.
   De repente pareceu-lhe que alguém lhe beijava os olhos e a boca. Dormia, sim, dormia, mas...não, não dormia. Pareceu-lhe que a velha lavadeira o olhava com seu olhar suave, e dizia-lhe:
   - Seria uma lástima se não soubesse tua lição amanhã. Tu me ajudaste, por isso te ajudarei também agora; e Deus sempre te há de ajudar!
   Nisto o livro mexeu-se debaixo do travesseiro, de Tuk. E ele viu uma galinha, que ia se aproximando devagarinho. Por fim ela cantou:
   Venho de Kioge!

    Co-co-ri-có!
   Vou te erguer pela cabeça,
   Para veres a vovó"! ( Na Dinamarca chama-se a essa brincadeira"ver galinhas de Kioge").

  E a galinha disse ao menino quantos habitantes havia naquela cidade, e falou na batalha que lá houvera quando os ingleses assaltaram a Dinamarca, em 1807, mas afinal foi uma escaramuça, em que nem valia a pena falar...
   - Catrapus!
   Caiu alguém. Quem seria? Ora, foi uma ave de madeira, foi o papagaio do Torneio de Tiro aos Pássaros, em Prastoe. E o papagaio afirmou que naquela cidade viviam tantos habitantes quantos pregos ele tinha no corpo. Era um papagaio muito orgulhoso, e continuou a falar:
    - Ora essa! Thorwaldsen morou bem pertinho de mim! E agora, pum! Aqui estou eu comodamente deitado no chão!
   Dizia isso porque perto da cidadezinha de Prastoe fica a propriedade de Nyseoe, onde o escultor Thorwaldsen residia quando estava na Dinamarca, e onde executou muitas de suas melhores esculturas.
   Agora, porém, já o menino não se achava mais na cama. Vira-se de repente no dorso de um cavalo!
  - Upa! Upa! A galope! A galope!

   Um cavaleiro esplendidamente vestido, ostentando um penacho brilhante, levava-o no cavalo à sua frente, e assim atravessaram a floresta, até a velha Cidade de Vordingborg, uma cidade grande e animada. No castelo do rei as altas torres tinham todas as janelas festivamente iluminadas; lá dentro, cantava-se e dançava-se. Sim, dançavam e cantavam: era o Rei Waldemar, eram as jovens damas da Corte, suntuosamente trajadas, porque naquele tempo a cidade tinha na verdade considerável importância. Mais tarde entrou em decadência. Mas nos tempos do Rei Waldemar, ela era cidade importante, isso era.
   Surgiu, porém, a madrugada, e ao nascer do sol, num instante desmoronou a cidade inteira e desabou o castelo real, torre por torre, até que por fim ficou apenas uma, que se ergue na colina solitária. A cidade era pequena e muito pobre, e as crianças da escola, com seus livrinhos debaixo do braço diziam que ela possuía dois mil habitantes.Mas isso não era verdade: ali não morava tanta gente assim.
   Agora estava Tuk de novo deitado na cama. Parecia-lhe que sonhava, no entanto não era mesmo como são os sonhos; alguém estava ali ao seu lado. E ouviu que o chamavam:
   - Tuk! Ó Tuk!
   Era um marinheiro baixinho; parecia um grumete.
   - Trago-te muitas lembranças de Corsor, aquela cidade Grande Belt, onde outrora, antes dos navios a vapor, os viajantes tinham de ficar à espera de vento favorável...A cidade vai prosperando, possui hoje diligências e vapores. Antigamente, achavam-na feia, mas hoje todos mudaram  de opinião. Ouve o que ela mesma diz. Tuk:
    " - Estou situada à beira- mar, tenho parques e estrada real. Sou o berço de um poeta engenhoso e divertido. Baggesen; e nem todo o mundo é poeta, não! Um dia quis equipar um navio que iria dar volta ao mundo; mas afinal não levei a cabo o projeto, embora não me faltassem os meio. Além disso tudo, ainda sou uma cidade cheia de perfume, pois, logo defronte ao porto, há rosas magníficas."
   O menino olhou para e aquele lado e viu manchas verdes e vermelhas, que lhe dançavam diante dos olhos. Depois que cessou essa confusão de cores, avistou de repente uma ladeira arborizada, que ia dar à baía, e acima dela erguia-se uma imponente igreja; era uma igreja antiga, com duas torres agudas e altas. Na ladeira havia uma fonte, jorrando água continuamente, e junto dela estava sentado um velho rei; pousava-lhe a coroa de ouro sobre a cabeleira branca. Era o Rei Hroar. A cidade é hoje chamada Roeskilde, do nome do rei, e na sua bela catedral estão os túmulos de muitos reis e rainhas da Dinamarca.
    E Tuk viu que pela ladeira que ia dar à velha igreja, iam andando, de mãos dadas, todos os reis e rainhas da Dinamarca, todos de coroa de ouro. Da igreja vinha o som do órgão; as fontes murmuravam, e Tuk via e ouvia tudo aquilo. E ouviu também quando o Rei Hroar disse:
   - Não te esqueças das cidades!
    Mas num instante tudo aquilo sumiu-se. Para onde foram todas aquelas belas coisas? Parecia que se tinha voltado a página de um livro...Agora aparecia uma camponesa velha; vinha de Soroe, a cidadezinha tranquila, situada entre lagos e bosques, e em cujo mercado cresce a grama. A velha trazia à cabeça um avental de linho cinzento, todo milhado: parecia que tinha andando na chuva. É, sem dúvida chovera.
   - E chovei mesmo - disse ela.
   A velha sabia contar muita coisa interessante; falava de Holberg, o maior comediógrafo da Dinamarca, que fundara uma academia naquela cidade; e de Waldemar e Absalon. Mas de repente começou a se encolher, esticando a cabeça, comos e fosse dar um pulo.
   - Coaxe! Como está úmido aqui! - disse ela. -Está úmido, úmido, úmido... e muito sossegado tudo em Soroe! Coaxe!
   A velha era agora uma rã! Mas de repente - Coaxe! - virou velha outra vez, e disse:
   - A gente deve vestir-se conforme o tempo que faz. Está úmido, muito úmido! E a minha cidade parece uma garrafa: a gente tem de entrar e sair pelo gargalo. Antigamente eu possuía os peixes mais raros e hoje em dia, tenho no fundo da garrafa rapazinhos sadios, de faces coradas, que estão se enchendo de sabedoria: o grego, o hebreu...Coaxe!
    Aquilo parecia coaxar, de rãs; era um ruído como o que fazemos quando andamos de botinhas por dentro de um pântano: sempre o mesmo, e tão monótono, tão fatigante, que o menino adormeceu. mas isso até lhe fez bem.
     Pois mesmo durante esse outro sono ele teve uma visão, ou coisa semelhante; sua irmãzinha Gustava, de olhos azuis e cabelo crespo, transformara-se subitamente em uma mocinha, alta e esbelta, que voava sem ter asas. E saíram ambos voando por sobre a Ilha De Seeland, com seus bosques verdes e lagos azuis.
   - Ouves o canto do galo. Tuk? Os galos esvoaçavam em Kioge. E tu vais ganhar um galinheiro, um galinheiro muito, muito grande! Não padecerás fome nem necessidade! Tua casa há de se erguer como o tronco do Rei Waldemar, toda ornada de estátuas de mármore, como aquelas da Cidade de Prastoe. Estás ouvindo? Teu nome, coberto de glória, percorrerá a terra inteira, como aquele navio que devia partir de Corsor, e de Roeskilde: " Não te esqueças das cidades!" disse o Rei Hroar. Farás um discurso cheio de inteligência, pequeno Tuk. E quando afinal desceres ao túmulo, dormirás tranquilamente...
   - ...como se estivesse em Soroe! - disse Tuk, acordando.
    Era uma manhã radiante, e o menino já não se lembrava do sonho. Isso não importa; agente não deve mesmo  saber o que está para acontecer.
   Saltou da cama e pegou no livro. Num instante ficou sabendo toda a lição.
   Mas de repente a velha lavadeira meteu a cabeça pela porta entreaberta e disse-lhe, com um gesto cheio de simpatia:
   - Muito obrigada, meu filho, pelo teu adjutório. Que Deus realize o teu belo sonho!
   A verdade é que o pequeno Tuk não sabia com que havia sonhado; mas Deus, ah! Deus Nosso Senhor o sabia!
Fim

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