segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O PRÍNCIPE DISFARÇADO - CONTOS DE ANDERSEN

Era uma vez um príncipe não muito rico, dono de um reino não muito grande. Não era, contudo, o reino tão pequeno que ele não pudesse pensar em casar bem; e, de fato, andava com essa ideia na cabeça.
   Em semelhantes condições, era preciso ser um tanto audacioso para ir dizer à filha do imperador. " Queres casar comigo?" Mas o príncipe atreveu-se a fazer o pedido, porque a fama do seu nome era grande; e mais de cem princesas teriam logo respondido: " Sim, Sim! Obrigada!"
   Mas...e ela respondeu sim? É o que vamos ver.
   No túmulo do pai do príncipe crescia uma roseira; era  uma linda roseira, que só florescia de cinco em cinco anos, e além disso, só dava uma rosa. Mas que rosa, aquela! Tinha um aroma tão suave que, só de aspirá-lo, a gente esquecia imediatamente tristezas e cuidados. E o príncipe tinha também um rouxinol que cantava, como se na sua garganta vivessem todas as melodias que há na terra, e as que ainda estão por haver. Considerou ele, pois, que o rouxinol e a rosa eram os melhores presentes que podia oferecer à princesa, e enviou-lhos, dentro de dois belos cofres de prata.
   O imperador recebeu os mensageiros no grande salão, onde a princesa brincava de "visitas" com as suas damas - pois nada mais sabiam fazer Quando ela viu os cofres de prata, bateu palmas de contente, exclamando:
   - Tomara que seja um lindo gatinho!
    Mas era apenas uma rosa recendente.
   - Que linda! - Comentaram todas as damas da Corte. - Que bem-feita! Como é bela!
   - É mais que bela- disse o imperador. - É encantadora!
    Mas, quando a princesa a tocou, quase rebentou em pranto. E bradou:
   - Ora, papai! Não é artificial! É uma rosa natural!...
    - Ora ! - repetiu toda a Corte. - É uma rosa natural!...
   - Vamos ver o que há na outra arca - disse o imperador.
   E eis  que do outro cofre sai o rouxinol. Cantou tão admiravelmente, que de momento ninguém achou nada que dizer contra ele.
   E só se ouvia de todos os lados:
   - Superbe! Charmant!
   Porque todas as damas de honor queriam falar francês, e cada qual estropiava mais aquela língua.
   - Este passarinho me vem lembrar a caixa de música de nossa imperatriz, que Deus haja! - disse um velho cortesão. - Sim! É o mesmo timbre, a mesma suavidade! - É isso mesmo! - confirmou o imperador, chorando como uma criança.
   - Mas este parece um passarinho de verdade! - disse a princesa.
   - Sim, é um passinho de verdade - disseram os mensageiros.
   - Então, deixem-no sair! - exclamou ela. - Que se vá embora!
   E declarou que não receberia a visita do príncipe: não queira vê-lo, de modo algum!
    Mas o príncipe nem por isso desanimou. Tisnou o rosto enterrou o chápeu na cabeça e apresentou-e no palácio.
    - Bom dia, Majestade! Não poderiam dar-me algum emprego no palácio?
    - Sim, emprego há - disse o imperador - mas são tantos os pretendentes...Vamos ver; preciso de quem trate dos meu porcos, que são muitos.
   Foi pois o príncipe nomeado porqueiro imperial. Deram-lhe um miserável quartilho ao lado do chiqueiro, e ali teria ele de viver. Trabalhou o dia inteiro, e ao escurecer, tinha feito uma linda panelinha, toda rodeada de campainhas. Quando a água fervia, as campainhas tocavam uma ária antiga.

     Oh! Agostinho querido,
      Tudo está perdido!
      Tudo está perdido!

   Mas o maior encanto daquela obra de arte consistia em que, pondo um dedo no vapor que saía da marmita, se sentia logo o cheiro de tudo quanto se cozinhava em cada fogão da cidade. Ora aquilo sim, era coisa muito diferente da rosa" Se era!
  Andava a princesa a passear com todas as suas damas de honor; ouvindo aquela melodia parou, encantada, porque também sabia tocar "Agostinho querido", e era até a única coisa que tocava ao piano, e isso mesmo com uma só dedo.
   - Mas isto é o que eu sei tocar! É a minha ária! Este porqueiro deve ser então muito bem-educado! Escutem, meninas! Entrem no seu quarto e perguntem-lhe quanto quer por aquele instrumento.
Uma das moças teve de entrar ali; mas a verdade é que antes tratou de calçar tamancos.
   - Quanto queres por essa panela? - perguntou a moça.
    - Dez beijinhos da princesa - respondeu o porqueiro.
   - Deus nos acuda! - exclamou a dama de honor.
  - Pois não a cederei por menos.
  - Que disse ele? - indagou a princesa.
   - Eu nem posso repetir-lhe: é ofensivo!
   - Pois dize-me ao ouvido.
  Assim fez a dama de honor. Ao ouvi-la, a princesa bradou, afastando-se:
   - Que sujeito descarado!
   Mal tinha dado alguns passos quando ouviu as campainhas a tinir, numa  melodia linda:
       
 Oh! Agostinho querido,
 Tudo esta perdido!
 Tudo está perdido!

- Escutem! - disse ela. - Ofereçam-lhe dez beijos de minhas damas de honor.
   - Não, obrigada! Dez beijos da princesa, ou fico com a panela.
  - Que aborrecimento! - disse a princesa. - Pois bem: vocês me rodeiam, de modo que ninguém me veja.
   E as moças fizeram uma roda e ergueram as saías para cercar a princesa; o porcariço recebeu os dez beijos e a panela passou para as mãos da princesa
   Grande regozijo no castelo! A panelinha fervia dia e noite, sem parar; e sabia-se o que se cozinhava em todas as cozinhas da cidade. Não havia um só fogão que elas não esmerilhassem, desde o do sapateiro até o do conselheiro. As moças dançavam em roda do caldeirãozinho, e batiam palmas de contentes.
   - Sabemos agora quem come boas sopas e panquecas, e quem janta massas e costelas! Que divertido!
   - Divertidíssimo! - exclamou a dama do guarda-roupa.
     - É mesmo! - disse a princesa. - Mas cuidado com a língua, porque eu sou a filha do imperador! Não o contem a ninguém!
  - Deus nos livre! - disseram todas.
   O porqueiro - isto é, o príncipe, ainda que ninguém suspeitasse que não era porcariço de verdade - cada dia inventava alguma coisa; e fabricou uma matraca que ao girara tocava todas as valsas, polcas e mazurcas conhecidas desde que o mundo é mundo.
    -  Mas isto é superbe! - disse a princesa, quando e ouviu aquilo. - Nunca ouvi nada tão bonito! Escutem! Entrem e perguntem-lhe quanto vale esse instrumento. Mas - nada de beijos!
   - Quer cem beijos da princesa - disse a dama de honor.
   - Sem dúvida está louco! - exclamou a princesa, afastando-se dali.
  Mas deteve-se logo, reconsiderando, e disse:
   - É nosso dever proteger a arte! E sou a filha do imperador! Digam-lhe que lhe darei dez, como da outra vez, e que receberá os restantes das minhas damas de honor.
   - Mas nós é que não estamos por isso! - declararam elas.
  - Não sejam tolas! Pois se eu posso beijá-lo, vocês também podem ora essa! Não se esqueçam de que eu lhes pago e as alojo e sustento!
   E as jovens não tiveram remédio senão se submeter.
   - Um cento de beijos da princesa! Senão, cada um que fique com o que é seu.
   - Façam roda! - exclamou ela.
   E todas as damas de honor formaram um círculo, enquanto ele a beijava.
   - Mas que significa aquilo! Uma roda de moças ao pé do chiqueiro? - perguntou o imperador, que ia chegando à janela.
   Esfregou os olhos e pôs os óculos.
  - Mas...são as damas de honor! Que brincadeira será aquela? Tenha de ir ver o que é aquilo!
   E puxou para cima os talões dos sapatos, que sempre andavam dobrados, feitos chinelas, e...que corrida!
   Chegou ao pátio e adiantou-se sem fazer ruído. As damas de honor estavam tão tão atarefadas, contando os beijos, para que não fossem de mais nem de menos, que não deram tino da chegada do imperador. Pôs-se ele na ponta dos pés, viu quem era que beijava, e brandou:
  - Mas que é isto?
   E deu-lhes uma chinelada na cabeça no momento justo em que o porqueiro recebia o beijo número oitenta e seis.
  - Fora daqui! - gritou o imperador, enfurecido.
    E foram ambos expulsos do reino - princesa e guarda-porcos. E ela chorava e ele resmungava, enquanto a chuva torrencial os encharcava.
   - Como sou infeliz! - choramingava a princesa.- Antes tivesse querido casar com aquele príncipe, tão belo! Agora não passo de uma criatura miserável...
   O porqueiro escondeu-se atrás de uma árvore, lavou a fuligem do rosto, despiu os farrapos, e apareceu-lhe nos seus trajes de Corte. Tão belo e tão distinto era então, que a princesa lhe fez insensivelmente uma reverência.
   - Venho aqui para te dizer que te desprezo - disse ele. - Não quiseste o príncipe honesto, nem soubeste dar apreço à rosa e ao rouxinol; no entanto, por amor de uma bagatela, beijaste o porqueiro. Tens a recompensa que mereces!
   Voltou então para o seu pequeno reino e fechou a porta à princesa, que podia agora cantar com  acento de sinceridade:
     Oh! Agostinho querido,
     Tudo está perdido!
   Tudo está perdido!
FIM

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