sábado, 3 de junho de 2017

A VELHA LOUSA SEPULCRAL - CONTOS DE ANDERSEN

   Uma noite estava reunida toda a família, em casa de um homem que tinha casa própria e quintal. Era em uma cidadezinha provinciana, e naquela estação do ano em que as noites se vão tornando mais longas. O tempo era ainda suave e quente.
   Sobre a mesa ardia a lâmpada. Longas cortinas enfunavam-se no vão das janelas, onde se viam vasos de flores. Lá fora, o luar era maravilhoso. Mas ninguém falava nessas coisas. O assunto era uma pedra velha, e muito grande, que estava no pátio, junto da porta da cozinha. As criadas alinhavam nela as panelas de cobre polido, para que secassem ao sol. As crianças gostavam de brincar em roda dela, apesar de ser, afinal de contas, uma velha lousa sepulcral( pedra que cobre a sepultura).
    - Pois é - dizia o dono da casa - acho que a pedra provém do velho cemitério do convento. Venderam o púlpito, as lousas e outras coisas mais. Meu pai comprou as lousas, que foram britadas para calçamento, mas aquela pedra ficou, e desde então está ali no pátio.
  - Mas vê-se bem que é uma lousa sepulcral - disse o filho mais velho, metendo-se na conversa. - Ainda se vê a ampulheta e um pedacinho do corpo de um anjo. Mas a inscrição que há mais abaixo está quase completamente apagada. Só se pode ler ainda o nome de Preben e um S maiúsculo logo adiante; e um pouco mais abaixo o nome da Maria. O mais está indecifrável; isso mesmo só se torna legível quado chove ou quando lavamos a pedra.
   - Santo Deus! Mas então é a lousa de Prebem Schwane e de sua mulher!
   A declaração vinha de um homem idoso - tão idoso que poderia ser avô de quantos ali estavam. E ele continuou:
   - Eles foram os dois últimos enterrados no antigo cemitério do convento. Era um casal velho e venerável, lembro-me deles, do meu tempo de criança. Todo mundo os conhecia, e todos gostavam deles. Eram os mais antigos habitantes da cidade. O povo dizia que possuíam um barril cheio de ouro; mas eles vestiam com simplicidade, fazendas grosseiras, sempre de alvura brilhante. Era um belo casal de velhos: Preben e Marta. Costumavam sentar-se lá em cima, no patamar de alta escada de pedra da sua casa, abrigada pela velha tília da vasta copa. Cumprimentavam as pessoas com um gesto amável, que logo as punha à vontade.  E eram muito bons para os pobres, socorrendo-os com roupas e alimentos, e praticavam a caridade com muito senso e verdadeiro espírito cristão. A velha morreu primeiro. lembro-me ainda do dia de sua morte, com todos os pormenores. Era eu então um gurizinho, e acompanhara meu pai à casa do velho Preben. Chegamos lá justamente no instante em que ela acabava de adormecer para sempre. O velho, profundamente comovido, chorava como uma criança. A defunta estava no quarto pegado à sala onde nos achávamos sentados. O velho conversava com meu pai e com alguns vizinhos que tinham ido visitá-los. Pôs-se a lamentar-se, pensando na vida solitária que ia ter dali em diante. Lembrou-se de quanto ela fora fiel, e bondosa; recordou os anos numerosos que tinham vivido juntos, andando pela vida; descreveu o seu primeiro encontro, quando se conheceram, e como o amor nascera nos seus corações. Como disse, era eu criança, e ficava quieto, a ouvir o que os outros diziam, mas as palavras do velho arrebataram-me ao vê-lo animar-se aos poucos, suas faces coraram, quando falou nos dias do noivado, na antiga beleza da esposa, nos inúmeros rodeios inocentes que ele fizera para vê-la. Depois contou das bodas, com os olhos brilhantes. Revivia aqueles tempos felizes...E ali, no quartinho ao lado, ela jazia morta, uma velha! E ele era um velho, falando do tempo da esperança...Sim! Assim são as coisas! ...Naquele dia eu era uma criança, hoje sou velho, velho como Preben Achwane... O tempo passa e tudo muda. Lembro-me perfeitamente do dia do enterro; o velho Preben seguia junto do caixão. Poucos anos antes, o casal mandara fazer a lousa sepulcral, com a inscrição e os nomes; só ficara em branco o lugar da data da morte. À noite, transportaram a pedra para o cemitério, e puseram-na sobre a sepultura. Um ano depois foi ela removida, e o velho Preben também desceu para junto da esposa...Não tinham deixado nem sombra das riquezas que o povo lhes atribuía. O que se encontrou tocou para uns parentes afastados, pessoas de cuja existência até então ninguém soubera. A velha casa de taipa, com seu banco no patamar da alta escada, à sombra da tília, foi demolida por ordem das autoridades: era antiga demais e já tão decrépita, que não devia ficar de pé. Mais tarde, quando a igreja do convento teve o mesmo destino, e o cemitério foi fechado, a lousa sepulcral, foi exposta à venda. E verifica-se agora que a lousa não foi britada, e empregada no calçamento, como muitas outras, mas acha-se ali no pátio, servindo de mesa auxiliar para as criadas, e de lugar de brinquedo para as crianças...Sobre o jazigo do velho Preben e de sua mulher passa agora a rua calçada. Ninguém mais se lembra deles...
   E o velho que contara tudo isso sacudiu melancolicamente a cabeça, concluindo:
   - Esquecido, tudo ficará esquecido...
   Depois falaram de outras coisas. Mas a menor das crianças, um menino de olhos sérios e grandes, subiu a uma cadeira por trás das cortinas, para olhar lá para o pátio. O luar derramava seu claro brilho sobre a velha pedra - aquela velha pedra, que até ali lhe parecera vazia e nua, mas que agora lhe aparecia como uma folha de um livro de crônicas. Tudo quanto ouvira do velho Preben e de de sua esposa, estava encerrado naquela pedra.
  O menino olhou para ela, olhou depois para a lua clara e límpida; olhou a pureza do ar, e pareceu-lhe que o rosto de Deus resplandecia  acima da Terra.
   - Esquecido...tudo ficará esquecido!
   Ressoaram essas palavras pela sala. Mas, no mesmo  instante, um anjo invisível beijou a fronte de menino, dizendo-lhe baixinho:
   - Guarda o grão de semente que te foi confiado, para que amadureça e frutifique. Cuida bem dele! É por teu intermédio, meu filho, que a inscrição apagada, a  lousa corroída pelo tempo será apresentada às gerações por vir. O velho casal tornará a caminhar de braço dado, risonho, pelas ruas antigas; descansará de novo, com as faces sadias e coradas, no alto banco, à sombra da tília, acenando para ricos e pobre, O grão de semente desta hora crescerá através dos anos, e chegará a ser poesia em flor. o bom e o belo não ficarão esquecidos: continuarão vivos na canção, vivos na lenda!

Continua

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