I - OS CACOS DO ESPELHO
Pois bem: comecemos a história pelo princípio; e quando chegarmos ao fim, teremos certamente adquirido alguma experiência, pois entre os personagens há um sujeito maldoso, o mais maldoso de todos: o próprio diabo.
Estava ele um dia muito contente; acabava de falsificar um espelho, dando-lhe uma propriedade especial: tudo quanto era belo e bom que nele se refletisse, reduzia-se a tal ponto, que ficava quase em nada, ao passo que todas as coisas feias e más aumentavam, aumentavam, e pareciam assim piores do que na verdade eram. As mais belas paisagens, refletidas no tal espelho, dir-se-iam espinafres fervidos; e as pessoas mais formosas, as de melhor coração, tornavam-se em monstros; ficavam de cabeça para baixo, quase sem corpo, de tão amesquinhados; o rosto aparecia no espelho tão contorcido e contrafeito, que não passava de uma careta horrível, irreconhecível. Se havia nele a mais leve mancha de sarda, logo as manchas se espalhavam por todo o rosto, cobrindo o nariz e as faces.
- Como isto é divertido! - dizia o demônio, contemplando a sua obra.
Quando um pensamento piedoso ou sábio atravessava o espírito de um homem, o espelho se enrugava todo, e tremia. E o diabo, encantado, ria cada vez mais da sua engenhosa invenção. Os diabretes que iam à sua escola - porque ele era professor de diabolismo- saíram a espalhar que surgira um grande, um incalculável progresso: daquele dia em diante era enfim possível ver com exatidão o que eram o mundo e a humanidade. Percorreram o universo carregando o famoso espelho, e dentro de pouco tempo não restava um país, um só homem, que não se houvesse refletido nele, em termos de caricatura.
Depois, mais arrojados ainda, quiseram levá-lo ao céu, para se divertirem à custa dos próprios anjos; mas, quanto mais subiam no voo, mais o espelho se contorcia e mais tremia - porque se refletiam nele agora objetos divinos. E os diabretes mal podiam segurá-lo, de tanto que se sacudia. Continuaram, contudo, a voar, sempre para o alto, sempre para cima, cada vez mais perto dos anjos e de Deus. Mas de repente o espelho tremeu de tal maneira que escapou das mãos dos diabretes; precipitou-se para a terra, despedaçando-se em milhares de milhões de caquinhos.
Acontece, porém, que veio assim a causar mais males do que antes, pois as partículas eram pequeninas como grãos de areia e espalharam-se pelo mundo inteiro, impelidas pelo vento. Muitas pessoas receberam nos olhos aquela poeira funesta; e quando entrava um grãozinho daqueles num olho, lá se incrustava, e a vítima do espelho fatal via agora tudo disforme, tudo feio, tudo às avessas. Já não distinguia senão os defeitos de todas as coisas , as taras de todas as criaturas, porque cada farelinho conservava a mesma propriedade do espelho inteiro. Mas houve anida casos piores: o fragmento descia até o coração de algumas pessoa, convertendo-o imediatamente em um bloco de gelo, de tão frio e insensível.
Além dessas partículas, ficaram também na terra alguns pedaços mais consideráveis, que podiam servir até para vidraças; era um horror então, avistar um amigo através daquelas lentes! Outros, menores, foram aproveitados para vidros de óculos, que os perversos punham diante dos olhos para ver - segundo diziam- claro, e discernir com justiça rigorosa. E quando tinham aqueles óculos sobre o nariz, riam e chacoteavam, tal e qual como o diabo quando olhava pelo seu espelho; as feiuras que descobriam por toda a parte os lisonjeavam e eram muito agradáveis ao seu espírito maldoso.
O espelho era gigantesco; e o vento continuava a semear a poeira dele pelos ares.
Vejamos o que aconteceu.
II - AS DUAS CRIANÇAS
Na grande cidade há tantas casas, tantas famílias, tanta gente, que nem todos os edifícios podem ter o seu jardim, ainda que pequenino; a maior parte da população tem de se contentar com algumas flores plantadas em vasos. Entretanto, duas crianças pobres acharam meio de possuir um jardim maior que um vaso de barro- era quase um jardim mesmo. Seus pais moravam em uma ruela estreita, em dois sótãos fronteiros. Os telhados das duas casas iam descendo até se unirem em um cano ou goteira, que servia a ambos os telhados. Como em cada casa havia uma janela, para ir de uma casa à outra era fácil; bastava atravessar o canal.
Diante de cada janela havia uma grande caixa de madeira cheia de terra, onde foram plantados alguns legumes para a comida; mas também floresciam nos caixotes duas belas rosas, que davam rosas magníficas. Tiveram ambos os pais a ideia de por os caixotes por sobre o canal, em frente das janelas, e ficou um arranjo muito lindo; parecia um muro de flores. As ervilhas debruçavam-se sobre a beira das caixas, as roseiras uniam suas flores, como um arco de triunfo. E as duas crianças sentavam-se nos seus tamboretes, à sombra da latada de rosas; e ali, protegidas pelas caixas, podiam brincar sem perigo naquele canteiro aéreo!
Não eram irmãos, mas estimavam-se como se fossem.
Mas quando vinha o inverno, acabavam essas diversões. Cobriam-se as vidraças de geada, e as crianças aqueciam então uma moeda de cobre na estufa e aplicavam-na ao vidro, formando um olhete bem redondinho; por ali espiavam então cada lado um olho risonho e brilhante. O menino chamava-se Kay; a menina chamava-se Gerda.
No verão era só dar um pequeno salto e estavam juntos, mas no inverno tinham de descer uma comprida escada, depois subir outra escada comprida, para se reunirem.
E agora era inverno. Lá fora a neve revoluteava em milhares de flocos.
-É o enxame de abelhas brancas - disse a avó.
-E elas também tem rainha? - perguntou o menino, que sabia que as abelhas de verdade tem rainha.
- Sim, sim - respondeu a avó. - Lá anda ela voando, no ponto onde o enxame é mais denso. È a maior de todas, e nunca para um instante; está sempre esvoaçando. ora toca na terra ora sobe de repente, ocultando-se entre as nuvens negras. Nas noites de inverno é que ela atravessa as ruas ds cidade e espia pelas janelas; e então as vidraças ficam coalhadas de geada; e veem-se essas formas estranhas, que parecem flores fantásticas.
- É mesmo! Já vimos isso muitas vezes! - disseram as duas crianças ao mesmo tempo.
E sabiam que era bem verdade o que a avó contava.
- A rainha da Neve pode entrar aqui? - perguntou a meninazinha.
- Ela que venha! - disse Kay. - Meto-a na estufa e ela se derrete logo.
Mas avó alisou-lhe os cabelos e começou a contar outra história.
Naquela noite, quando o pequeno Kay já estava a meio despido para dormir. pôs uma cadeira ao pé da janela e espiou pelo buraquinho redondo, feito com a moeda aquecida. Lá fora caíam flocos de neve, lentamente, e o maior veio pousar mesmo na beira de um dos caixotes de flores. O floco foi crescendo, crescendo, e acabou por formar uma menina maior que Gerda, toda vestida de gaze branca e de filó bordado de flocos estrelados. Era bela e graciosa, mas toda de gelo. E ainda assim, tinha vida; os olhos brilhavam como estrelas em um céu de inverno, e estavam em um movimento contínuo. Voltou-se para a janela e fez um sinal com a mão. O menino, assustado, desceu da cadeira, e pareceu-lhe que naquele instante um grande pássaro passou voando, e raspou o vidro da janela com a asa.
No dia seguinte caiu ainda uma bela geada. Depois veio outra vez a primavera; brilhou o sol, as plantas brotaram, as andorinhas fizeram seu ninho; abriram-se as janelas e as crianças voltaram ao seu jardim suspenso lá no telhado.
Que rosas soberbas desabrocharam naquele verão! Como era lindo o jardinzinho! A menina sabia um cântico que falava de rosas; sempre que o cantava, lembrava-se das do seu jardim . Ela cantou o hino, ensinou-o ao
menino, e ambos uniram dali a pouco as vozes para cantar:
"Lá no vale coberto de rosas,
O Menino Jesus nós veremos!
As crianças beijaram as flores, como se fosse um adeus, olhavam para o claro sol, e quase desejavam que ele apressasse a carreira, para ir ver mais depressa o Menino Jesus. Contudo, que belos dias passavam ali, brincando à sombra da roseiras cobertas de flores!
Um dia achavam-se no jardim, entretidos a ver as figuras de um livro, em que havia pássaros, borboletas, e animais de toda a espécie; no instante justo em que soavam cinco horas na torre da catedral, o menino gritou:
- Aí! Entrou-me alguma coisa no olho! Ai, ai, ai! Uma coisa me picou no coração!
A menina segurou-lhe o rosto com as duas mãozinhas e examinou os olhos, que piscava; não, ela não viu nada nada neles.
- Acho que já saiu - disse ele.
Mas qual! não tinha saído. Era um fragmento daquele espelho embruxado, aquele espelho - lembraste? - que convertia tudo o que era grande e bom que neles se refletisse em coisa mesquinha e desprezível, enquanto aumentava tudo o que era mau e perverso, fazendo assim ressaltar os defeitos das coisa e das criaturas em prejuízo das boas qualidades. Coitadinho do Kay! Entrara-lhe no olho uma daquelas partículas; o átomo funesto penetrou-lhe até o coração, que ia endurecer e virar em um bloco de gelo! Kay não sentia dor alguma, mas aquele grãozinho infernal estava lá dentro.
Vendo que a menina, que se comovera muito com o seu grito, estava chorando, disse-lhe ele:
- Mas por que choras assim? Não chores mais! Ficas horrorosa quando choras! Pois não foi nada, afinal: não sinto mais dor nenhuma.
Olhou em redor e disse ainda:
- Esta rosa está toda comida de vermes! E esta outra, que feia! Afinal, todas elas são flores comuns e sem graça , como esta caixa pesada!
Deu um pontapé desdenhoso na caixa e arrancou violentamente da haste as duas rosas que não lhe agradavam.
- Oh! Kay! Que é isso? - gritou a menina, como se ele tivesse cometido um sacrilégio.
Vendo-a assim tão aflita, Kay apanhou ainda mais outra rosa, e depois se sumiu pela janela do seu sótão, deixando a companheirinha de brinquedos, tão gentil, sem lhe dizer adeus. Que se lhe há de fazer? Era o efeito do vidro mágico.
No dia seguinte tornaram a pegar no livro de estampas, mas Kay só via nele agora macacos horríveis, animais ridículos e mal proporcionados, monstros grotescos. E quando a vó contava suas histórias, estragava tudo com uma mas...ou senão se postava por detrás dela, punha os seus óculos, e fazia caretas. Chegava ao ponto de arremedar a avó, de imitar-lhe a fala, fazendo rir todo o mundo à custa da venerável velhinha. desenvolvera-se de repente aquele gosto por macaquear as pessoas que via, de lhes reproduzir os ridículos de maneira cômica. Todos riam, dizendo:
- Este rapazinho é esperto! Ele tem espírito!
Começou a maltratar a pobre Gerda, que lhe era tão devota. Mas tudo isso provinha daquele fatal grão de vidro que entrara no coração.
Seus brinquedos eram também agora muito diferentes dos antigos - eram brinquedos refletidos, brinquedos de cálculo. Um dia de inverno, em que caía neve, apareceu ele com uma lente que lhe tinham dado; estendeu para fora da janela a ponta da jaqueta azul e deixou cair nela alguns flocos de neve.
- Vem ver isto, Gerda- disse ele.
Vistos através da lente os flocos pareciam muito maiores; formavam hexágono, octógonos e outras figura geométricas.
- Olha - insistiu ele. - Vê como isto é arranjado com arte e regularidade; não é muito mais interessante que as flores? Todos os lados da estrela são iguaizinhos tudo é simétrico. É pena que se derretam tão depressa! Senão, não haveria nada mais belo que um floco de neve!
No dia seguinte apareceu de luvas de pele e com o trenó às costas. E gritou para Gerda, como se estivesse muito contente de a deixar sozinha:
- Tenho licença de ir à praça grande, brincar com os outros meninos!
Lá na praça, os rapazes mais ousados amarravam seus trenós às carroças dos camponeses, que assim os levavam de rastos até certa distância. Era uma maneira excelente de viajar. Quando a brincadeira estava mais animada aparaceu um grande trenó, todo pintado de branco. Nele vinha sentada uma única pessoa, toda envolta em uma abrigo de peles de arminho; trazia na cabeça um gorro, também branco. O veículo deu duas voltas pela praça, e Kay conseguiu amarrar à traseira o seu trenó, dando assim um rápido passeio.
O trenó grande apressou a corrida; ia mais depressa, ia mais depressa, cada vez mais depressa. Afinal saiu da praça, enfiando pela rua principal. A pessoa que ia sentada voltou a cabeça e fez um sinal amistoso a Kay, como se o conhecesse, cada vez que o menino queria desligar o seu trenó, o dono do outro olhava para ele, fazendo- lhe sempre um sinal amável, e Kay, subjugado, deixava-se arrastar. Acabaram saindo das portas da cidade. Começava a cair neve em grande quantidade. O pobre rapazinho já não via nada diante de si; e corriam sempre, cada vez mais depressa.
Amedrontando, o menino conseguiu afinal desatar o fio que prendia o seu trenó ao outro; mas isso de nada serviu: seu pequeno veículo parecia preso ao grande trenó, que corria como o vento. Kay pôs-se a gritar por socorro, mas ninguém o ouvia; a neve caía sempre, e cada vez mais espessa; o trenó voava, em uma carreira vertiginosa; de vez em quando dava um salto, como se fosse correndo por cima de cercas e valados - mas nem havia tempo de verificar o que era aquilo. O menino, apavorado, tentou rezar; queria dizer o Padre-Nosso mas as palavras não lhe acudiam: só se lembrava da tabuada de multiplicação; e o pobre Kay sentiu-se profundamente infeliz.
FFFFFFFFFFFFFF
Os flocos caíam sempre, cada vez maiores; por fim pareciam galinhas brancas, de penas eriçadas. De repente o trenó parou. A pessoa que o conduzia levantou-se : aquelas espessas peles que a abrigavam toda eram de neve, neve de uma brancura deslumbrante. parecia uma grande dama: era a Rainha Da Neve!
Fizemos uma viagem excelente - disse ela. - Mas ainda assim, estás ficando gelado, Kay. Vem cá; abriga-te debaixo da minha pele de urso!
Pegou no menino, sentou-o a seu lado e cobriu-o com o seu manto. Mas...Kay diria antes que estava metido em uma massa de neve.
- Ainda tens frio? - perguntou ela. E deu-lhe um beijo na fonte.
Brrr... Aquele beijo era mais frio que o próprio gelo, e penetrou-lhe até o coração, já meio enregelado. O menino pensou que ia morrer. Mas aquilo foi só um instante, Recobrou-se logo, e não tornou a sentir frio.
- Meu trenó! Não esqueças o meu trenó!
Foi a primeira coisa de que se lembrou, quando tornou a si. Atrelaram ao carrinho uma daquelas galinhas brancas, que esvoaçavam no ar, e ela seguiu sem dificuldade o trenó grande, que continuou a corrida.
A Rainha da Neve deu-lhe outro beijo, e o menino esqueceu-se completamente da pequena Gerda, da avó e de toda a família.
- Agora não te beijarei mais - disse ela- porque se eu te desse outro beijo, morrerias.
Kay olhou bem para o rosto da deslumbrante soberana. Como era bela! Não se podia imaginar rosto mais graciosos, mais sedutor. Já não lhe parecia de gelo, como da primeira vez que a vira, à janela do sótão, chamando-o. Já não lhe inspirava nenhum temor. Contou-lhe que sabia calcular, até sobre frações, e também sabia o número de habitantes e de léguas quadradas do país. A rainha escutava-o sorrindo, e Kay pensou consigo que talvez aqueles conhecimentos, de que se achava tão orgulhoso, fossem ainda insuficientes.
Olhou o vasto espaço e viu-se arrebatado com ela para as nuvens sombras. A tempestade zunia, sibilava: era uma melodia selvagem como a dos antigos cantos de combate. Passaram voando por cima dos bosques, dos lagos , do mar e dos continentes. Lá embaixo uivavam os lobos , bramiam os ventos, rolavam blocos de neve. Acima de suas cabeças voavam os corvos, soltando grasnidos discordantes; e mais acima ainda brilhava a lua, numa claridade esplêndida. Kay admirava as belezas da longa noite de inverno. E quando despontou o dia adormeceu aos pés da Rainha da Neve.
III - JARDIM ENCANTADO
Que fora feito da pequena Gerda, quando viu que seu companheiro não voltava? Que fim teria levado Kay? Ninguém sabia; ninguém o tinha visto passar. Apenas um menino contou que o vira amarrar o trenó a um outro, um trenó muito grande, que saíra da cidade. Depois disto ninguém mais o enxergara. Muitas lágrima correram então, por sua causa; e a pequena Gerda foi quem mais chorou.
- Ele morreu- dizia ela. - Com certeza afogou-se naquele arroio que passa perto da escola.
E punha-se de novo a chorar. E que dias compridos e tristes foram os daquele inverno!
Enfim voltou a primavera, trazendo de novo o sol e a alegria; mas Gerda não achava consolo.
- Kay morreu; foi-se embora para sempre - dizia ela todos os dias.
- Não, não o creio- respondia o raio de sol.
- Ele morreu: não tornarei a vê-lo! - queixou-se Gerda às andorinhas.
- Não, nós não o cremos- responderam elas.
Afinal a menina acabou por se convencer disso também.
- Vou calçar meus sapatos vermelhos, aquele novinhos, que Kay nunca viu, e irei até o arroio: quero perguntar se ele sabe o que é feito de Kay.
Era muito cedo ainda. Ela beijou a avó, que ainda dormia, calçou os sapatinhos vermelhos e lá se foi sozinha; passou pela porta da cidade e chegou à beira do rio.
- É verdade que me tomaste meu companheiro de brinquedos? Pois eu te darei meus lindos sapatos de marroquim vermelho, em troca dele.
Pareceu-lhe que as ondas lhe respondiam com um movimento estranho. pegou então nos lindos sapatinhos- a coisa que mais apreciava! - e atirou-os à água. Não tinha muita força, a pequenina Gerda; os sapatos caíram muito perto da margem e as ondas pequeninas os repeliram para a terra. Ela bem devia ver que o rio não queria ficar com aquele presente, porque não tinha o pequeno Kay para lhe dar em troca. Mas a menina calculou que não atirara os sapatos bastante longe da margem. Vendo um bote entre os juncos, entrou nele e, da ponta da embarcação tornou a lançar os sapatinhos à água.
O barquinho não estava amarrado, e com o movimento que ela lhe imprimiu afastou-se da margem, ficando à mercê das ondas. Gerda quis dar volta, mas quando chegou à outra ponta já o bote flutuava muito longe da terra para que pudesse saltar.
E o barquinho começou a descer o rio. Gerda, cheia de pavor, pôs-se a chorar. Ninguém a ouviu, a não ser os pardais; mas eles não podiam levá-la para terra. Acompanharam-na voando, e, como se quisessem consolá-la, iam cantando:
- Sim, estamos aqui! Sim, estamos aqui!
O barco ia seguindo o curso da água. Gerda não chorava mais; mantinha-se agora tranquila. Estava descalça- só conservara as meias - e os sapatinhos vermelhos iam flutuando também, mas com alguma distância: não podiam alcançar o bote, que ia mais depressa.
Era encantadora a vista das margens: velhas árvores, lindas flores, relva macia, onde pastavam cordeirinhos: mas nem uma só criatura humana.
- Quem sabe se o rio não me vai levar para onde está Kay? - pensou a menina.
Esta ideia dissipou-lhe o desgosto. Levantou-se e ficou muito tempo a olhar a bela paisagem verdejante. Chegou afinal diante de um grande pomar de cerejeiras; via-se por detrás das árvores uma casinha estranha coberta de palha, e com janelas de vidros vermelhos, amarelos e azuis. À entrada estavam dois soldados de pau, que apresentavam armas às pessoas que passavam no rio. Supondo que eram vivos, Gerda pediu-lhe socorro, mas é claro que não lhe deram resposta. Entretanto o bote ia aproximando-se da terra, e a menina gritou com quanta força tinha. Saiu então da casinha uma velha muito velha, que se apoiava a uma muleta e trazia à cabeça um grande chapéu de palha, ornado de flores belíssimas.
- Coitadinha! - exclamou a anciã. - Que te aconteceu, menina, que andas assim sozinha neste rio tão grande e tão rápido? Foi a corrente que te arrastou pelo mundo tão vasto?
E a boa velha entrou na água; com a muleta puxou o bote e tirou a menina. E quando Gerda se viu de novo sobre a terra firme, sentiu-se muito alegre, apesar do medo que lhe infundia a estranha velha.
- Agora- disse a mulher - conta-me quem és e de onde vens.
E Gerda narrou. Escutava-a a velha, sacudindo a cabeça e resmungando de vez em quando:
Terminada a narração perguntou a menina se ela não tinha visto Kay. Não : ele não tinha passado ainda pelo rio, mas sem dúvida não tardaria muito em vir. Recomendou à menina que não se entristecesse, que comesse cerejas e olhasse para as flores.
- Estas são muito lindas- disse ela- do que todas as que vem nos livros de figuras; além disso, ensinei a cada uma das flores uma história, que elas agora sabem contar.
Tomou a criança pela mão, levou-a para a casinha e fechou a porta. As janelas ficavam muito altas, e os vidros, como já disse, eram azuis, amarelos e encarnados, de sorte que a luz do dia, passando por eles, coloria todos os objetos de uma mescla de cores fantásticas. Sobre a mesa estava uma cesta cheia de cerejas magníficas, e Gerda comeu quantas quis, conforme lhe permitira a velha.
Enquanto comia as frutas, ia a velha lhe penteando o cabelo com um pente de ouro, e, formando lindos cachos, que cercavam como uma auréola o rostinho gentil da criança, fresco como um botão de rosa.
- Há tanto que eu desejava- disse a velha- ter comigo uma meninazinha amável como tu! Verás como vamos ser felizes agora!
Enquanto ela ia penteando os cabelos de Gerda, ia a menina esquecendo aos poucos o seu amigo de infância; porque aquela velha era uma feiticeira. Não era, contudo, malvada: apenas fazia mágicas para se distrair; e agora, como gostara da menina, queria retê-la ao pé de si.
Por isso mesmo foi logo ao jardim e estendeu a muleta por cima de todas as roseiras; e todas elas, até as que estavam cheias de vigor e cobertas de rosas belíssimas, sumiram-se imediatamente debaixo da terra, sem deixar sinal algum de que ali havia ainda há pouco tanta flor. É que a feiticeira temia que, vendo as rosas, Gerda se lembrasse das do seu sótão; lembrar-se-ia então de Kay, o seu amigo, e fugiria para procurá-lo.
Depois levou a criança ao jardim. Era um jardim esplêndido! E que perfume delicioso! Vicejavam ali flores das quatro estações do ano, e todas eram lindas. Nenhum livro de estampas, certamente, podia comparar-se com aquele esplendor! Gerda pulava de alegria; e brincou entre os canteiro até o sol se sumir atrás das cerejeiras. A velha levou-a então para dentro ; deitou-a em uma linda caminha, cujos travesseiros eram de seda rosa, bordados de violetas. E a menina adormeceu e teve sonhos tão lindos, como só uma rainha pode sonhar no dia do casamento.
No dia seguinte voltou ao jardim, para brincar entre as flores, aos brandos raios de sol. E assim se passaram dias e dias. Conhecia já todas as flores, apesar de haver tantas naquele jardim; parecia-lhe, contudo, que faltava uma - mas qual delas, não sabia dizer. Ora um dia, examinando o grande chapéu da velha, que era cercado de uma grinalda de flores, viu que a mais bela de todas era uma rosa. Esquecera-se a velha de tirá-la do chapéu, quando sumira as roseira debaixo da terra. É quase sempre assim: a gente nem sempre pensa em tudo.
- Que linda! - exclamou Gerda. - Não haverá rosas neste jardim?
E pôs-se a examinar minunciosamente canteiro por canteiro: nada! Não havia uma única rosa. Atirou-se de bruços ao chão, chorando, muito aflita. As lágrimas que derramava caíram exatamente no lugar onde estava uma das roseiras que a velha tinha sepultado, e quando a terra ficou bem regada de lágrimas, surgiu de repente a roseira, tão lindamente florida como no momento em que fora soterrada.
A alegria de Gerda não teve limites: beijou as flores, uma por uma, e depois lhe vieram à memória as que tinha deixado em casa, diante da janela do sótão- e então lembrou-se também de Kay, o seu amigo de infância.
- Meu Deus! - exclamou ela. - Quanto tempo perdi aqui! Eu, que sai de casa para procurar o meu companheiro de brinquedos...
Voltou-se para as rosas e perguntou:
- Saberão vocês onde está ele? Estará mesmo morto?
- Não; morto ele não está - disseram as rosas. -
Nós estivemos debaixo da terra; e lá que se encontram todos o que morrem, e ele lá não está.
- Obrigada! Muito obrigada!
E Gerda falou então com as outras flores; curvava-se sobre seus cálices, tomava-os entre as mãozinhas minúsculas, e perguntava:
- Tu não sabes onde está Kay?
E as flores respondiam-lhe. Ela ouvia as histórias que elas sabiam contar, mas eram apenas fantasias. Quanto ao pequeno Kay, nenhuma delas o conhecia.
Que diria o lírio vermelho? Vamos escutá-lo:
- Não ouves o tambor? "Tan, tan! " Só tem duas notas: "Tan! Tan!" Não ouves o canto fúnebre das mulheres? Não ouves as ordens dos sacerdotes? Envolta em sua longa túnica vermelha, a esposa indiana mantém-se sobre a fogueira; as chama sobem, envolvendo-a, juntamente com seu defunto marido: mas a esposa indiana parece não sentir o martírio. Crês que a chama da alma possa perecer nas chamas da fogueira?
- Mas como queres tu que eu o saiba? - perguntou a pequena Gerda.
- Pois a minha história acabou- disse o lírio vermelho.
Que teria contado a ipoméia?
- Na encosta da montanha está suspenso um velho torreão. A hera alastra-se pelos muros e seus brotos viçosos sobem até o balcão, onde se vê, de pé, uma moça. Ela se debruça sobre a balaustrada e sonda o estreito caminho com olhos ansiosos. Que flor, naquelas ruínas! A rosa não é mais louçã, nem se liga com mais graça à sua haste; a flor da macieira, que a brisa agita, não é mais aérea, nem mais graciosa. Escuta o suave ruge-ruge do seu vestido de seda...escuta o que ela murmura baixinho: " Não virá ele?"
- É de Kay que estás falando? - pergunta Gerda.
- Não, ele não figura no meu conto- respondeu a ipoméia.
Que disse a pequena fura-neve?
- Entre os galhos da árvore oscilam duas cordas, às quais está presa uma tábua: é um balanço. nele se embalam duas meninas muito lindas, de vestidos alvos como a neve, e compridos laços verdes no chapéu. O irmão, maior que elas, está de pé no balanço, com os braços passados pelas cordas, para manter o equilíbrio- porque tem uma taça em uma da mãos e na outra um canudinho - e sopra bolhas de sabão. Move-se o balanço e as bolhas sobem no ar, todas irisadas.( O que é irisado: adj. Diz-se do que possui ou foi colorido com as cores do arco-íris. ) ... A última ainda está pousada na ponta da palhinha, e agita-se ao sabor da brisa. O cãozinho negro corre e ergue-se nas patas traseiras: também quer subir ao balanço, mas este não para no seu vaivém, e o cãozinho late, irritado. As crianças o incitam, enquanto as lindas bolhas rebentam e se desfazem.
É muito lindo o que contas- disse Gerda- mas tem uma expressão tão triste...E meu companheiro, o pequeno Kay? Não sabes onde está?
Mas a fura-neve, a campainha branca e minúscula, fica calada.
Que conta o jacinto?
- Eram três lindas irmãs, vestidas de gaze: uma de vermelho, outra de azul e a última de branco. De mãos dadas, dançavam ao luar, à beira do lago tranquilo. Não eram elfos, não: eram da raça dos homens. E que perfume penetrante saturava o ar! As donzelas sumiram-se na mata. Que sucedeu? Que infortúnio caiu as lindas moças? Olha aquele barco que desliza sobre o lago: traz ele três esquifes, que encerram os corpos das donzelas. Dormem as dançarinas do lago? Ou estarão mortas? O perfume das flores diz que estão mortas. E os sinos do crepúsculo dobram a finados.
- Ah! Sombrio jacinto! Tua história é muito lúgrebe! Ela me deixou ainda mais triste...Escuta: meu amigo Kay está morto, como as tuas donzelas? A s rosas dizem que não; e tu, que é que dizes?
- Din, don! Din, don! tangeram as campainhas roxas dos jacintos. Não dobramos pelo pequeno Kay! Nós nunca o vimos! Cantamos apenas a nossa canção - a única que sabemos. Din, don!
Gerda interrogou o dente-de-leão, que se expandia entre as folhas verdes:
- Tu brilhas como um sol pequenino- disse-lhe, - Sabes onde poderei encontrar meu companheiro de brinquedos?
O dente-de-leão brilhava, de fato, sobre a relva; ele entoou uma canção, mas os versos não falavam do pequeno Kay.
- No primeiro dia de primavera, o sol esplendido de Deus Nosso Senhor desceu para aquecer um pequenino patio fundo, deslizando seus raios pela parede branca de uma casa vizinha. junto à parede aparecia a primeira flor amarela do ano, reluzindo como uma moeda de ouro. A velha avó estava sentada na sua cadeira; a neta correu a beijá-la. Ela não era mais que uma pobre criadinha, e ainda assim seu beijo valia mais que todos os tesouros do mundo, porque a menina pusera nele todo o seu coração. E tudo era ouro:
" Ouro - a flor perfumada e louçã
Ouro - a fresca e brilhante manhã!"
E o dente-de-leão continuou:
- Acabou-se a história, e não sei outra.
- Coitada da avózinha! - exclamou Gerda. - Ela me preocupa, aflige-se com a minha falta, como eu com a falta de Kay... Mas breve voltarei a casa, e com ele! De nada vale perguntar a estas flores: elas são muito egoístas, só pensam em si mesmas!
Arregaçou o vestido para poder andar mais ligeiro, e correu direito ao portão do jardim; mas um narciso bateu-lhe nas pernas, quando saltava por cima dele. A menina parou e olhou para a flor de haste comprida, e perguntou-lhe:
- Saberás, acaso, alguma coisa?
Curvou-se para a flor, e...que lhe teria dito o narciso?
- Vejo-me! Vejo-me! E que suave é o meu perfume! Lá bem cima, no sótão, mora a dançarina. Descansa às vezes sobre a ponta de um pé, às vezes sobre as duas. Parece que está pisando a pés o mundo inteiro- e ela não é mais que uma ilusão. Deita água do bule de chá em um pano que tem na mão: é o seu corpete- grande coisa é o asseio! Seu vestido branco está pendurado em um cabide; ela já o lavou também com a água do bule, e estendeu-o no telhado para secar. Veste-o, e põe ao pescoço um lenço amarelo - e o vestido branco parece mais branco. Vê como é tesa, e como ergue a cabeça, equilibrando-se no seu talo esguio! Vejo-me! É o meu retrato!
- E a mim que me importa isso? - replicou Gerda. - É inútil tudo o que me contaste.
E correu para o portão; estava fechado, mas a menina apertou com tanta força a aldrava enferrujada que esta saltou do gancho. Abriu-se a porta, e Gerda saiu correndo, correndo, para o vasto mundo. Três vezes parou e voltou-se, olhando, para trás, mas ninguém a seguia. Cansada de tanto correr, sentou-se em uma grande pedra; olhou então em roda e viu que o verão já tinha passado e que era já o fim do outono. Lá dentro do belo jardim não percebera a fuga do tempo: o sol brilhava lá sempre com o mesmo esplendor, e as estações se confundiam; as flores desabrochavam o ano inteiro.
- Como me demorei! - suspirou ela. - Quanto tempo perdi! Já estamos no outono. Não posso perder mais um minuto!
Levantou-se para continuar a corrida; mas como lhe doíam os membros inteiriçados pela fadiga! Nem o tempo, nem a paisagem a convidavam também a andar. O céu era enuviado e frio. As folhas dos salgueiros já estavam amareladas, e iam caindo de uma em uma. Escorria umidade das árvores, como chuva. Só a ameixeira brava conservava os frutos, mas eram tão ácidos que embotavam os dentes, deixando um travo na boca.
Que frio, e que triste e cinzento era o vasto mundo!
IV - O PRÍNCIPE E A PRINCESA
Viu-se Gerda logo obrigada aparar para descansar de novo: não tinha mais forças para caminhar. E enquanto ela repousa um pouco ali, um grande corvo, empoleirado em uma árvore em frente da menina, olhava-a com curiosidade. A ave agitou a cabeça para um lado e para outro, e, disse:
- Grau! Grau ! G tac! G tac!
É mais ou menos assim que se diz " bom dia" naquele país, mas o pobre animal tinha muito sotaque. Contudo, apesar da má pronúncia, estava gostando da menina, e perguntou-lhe onde ia, assim sozinha pelo vasto mundo.
Gerda não entendeu, de tudo o que o corvo disse, senão a palavra "sozinha"; mas esta, conhecia-a ela muito bem, por experiência própria, e compreendeu o sentido da pergunta do corvo. Fez-lhe, pois, a narração de suas aventuras, e perguntou-lhe se não tinha visto Kay.
Sacudindo, gravemente a cabeça, respondeu o corvo:
- Quem sabe sabe? Talvez! Talvez!
Será possível? - exclamou Gerda, abraçando o corvo, de tão alvoraçada.
E beijou-o, muito contente: e quase o sufocou, de tanto que lhe apertou o pescoço, ao abraçá-lo.
- Mas devagar...mais devagar! - recomendou o corvo. - Creio que o vi...quero dizer: suponho que era ele...sim, pode ser que fosse. Sim, sim, é possível que seja o mesmo, mas não o firmo. Em todo o caso, já não se lembra de ti: só pensa agora na sua princesa.
- Princesa! Então ele mora em casa de uma princesa?
- Sim; escuta! Mas...é tão difícil a tua língua!Se soubesse, grasnar, ou ao menos falar o idioma corvino, eu poderia contar-te tudo, e muito melhor.
- Não...não aprendi essa língua, disse Gerda. Minha avó sim: não só entende, como fala também esse idioma. Ela sabe também palrar, isto é, fala a língua peguenta, que é o dioma das pêgas, como sabes. Pena é que eu não a tivesse aprendido!
- Não faz mal- disse o corvo. - Vou contar-te o caso o melhor que puder; mas desculparás meus erros de gramática, não é?
E contou-lhe o que sabia:
- Reina neste país uma princesa de inteligência prodigiosa. É tão sábia que leu todos os jornais que já foram impressos no mundo; mas a maior prova da sua sabedoria está em que ela esqueceu tudo quanto leu! Ainda pouco tempo estava ela sentada no trono - e, por falar nisso, parece que não é lá coisa tão agradável como parece, senta-se a gente em um trono, e que não basta isso para sermos felizes! - Para se distrair, começou a cantarolar uma canção, aquela que tem um estribilho assim:
"Por que então não me hei de casar?
Por quê? Por quê?"
- E - continuou o corvo- ela disse consigo: " Por que não me hei de casar? "Mas o caso é que ela queria um marido que soubesse conversar, responder às perguntas que lhe fizessem; não queria um desses sujeitos graves e pretensiosos, solenes e cheios de si: são muito enfadonhos. convocou, ao som do gongo, as damas de honor, e participou-lhes a ideia que tivera. E todas elas ficaram muito contentes. E diziam:
" -É encantador! É o que todas nós dizemos todos os dias: Por que a princesa não se casa?
Neste ponto o corvo explicou:
- Podes estar certa de que o que te conto é a pura verdade. Sei tudo isto de minha noiva, que anda à vontade por todo o palácio.
A noiva era naturalmente uma corva; uma corva domesticada, porque os corvos só se casam com corvas. Mas, voltemos à história:
- Todos os jornais do país - continuou o corvo - publicaram então a proclamação; todos eles apareceram naquele dia com uma cercadura de corações em chamas, com as iniciais da princesa. Dizia a proclamação que qualquer moço inteligente e de boa figura podia apresentar-se no palácio e conversar com a princesa: e que o que conversasse melhor, e se mostrasse mais senhor de si e de espírito mais atilado,( Pessoa com aguçada inteligência de análise e compreensão das causas e efeitos.)casaria com ela. Sim, Sim! Podes acreditar no que te digo: tudo se passou como te conto; não estou inventando nada - tão certo como estarmos nós aqui conversando. Ora, apareceram moços às centenas. Mas eram despedidos todos, um por um. Enquanto estavam na rua, fora do palácio, tagarelavam como pêgas. Mas no que entravam pela grande porta, e passavam pela dupla fila de guardas, todos de uniformes cobertos de prata, perdiam logo o aprumo. E quando os lacaios agaloados de ouro os conduziam pela escadaria monumental dos vastos salões, inundados de luz de lustres inumeráveis, os pobres rapazes sentiam as ideias confusas; e uma vez diante do trono, onde a princesa estava sentada, cheia de uma majestade, nada mais sabiam dizer: repetiam, miseravelmente desorientados, a última palavra do que ela acabava de pronunciar ou antes - balbuciavam apenas. Ora, isso não interessava à princesa- ouvir repetir o que ela mesma dissera! Parecia que os pobres moços estavam enfeitiçados, e que um encantamento lhes travava a língua: porque assim que saíam do palácio e se viam na ruas, ao ar livre, recobravam o uso da palavra, e a língua se lhes soltava. Assim foi no primeiro e no segundo dia. Quanto mais gente era despedida, mas aparecia: parecia que brotavam na terra, tamanha era a fluência de pretendentes. Era uma fila imensa, desde as portas da cidade até o palácio.
E o corvo repetia:
- Eu o vi; vi com estes olhos! Os que esperavam na rua a sua vez tiveram tempo de sentir fome e sede. Os mais espertos tinham trazido provisões, mas não caíam na asneira de reparti-la com os vizinhos. E pensava cada um lá consigo. "Que a língua s lhes pegue no céu da boca! Assim não poderão dizer uma palavra à princesa! " E é claro que, vendo um homem meio morto de fome e de sede, ele não havia de querê-lo para marido!
- Mas...e Kay ? - indagou Gerda. - Quando chegou ele? Estava no meio de multidão?
- Mas espera, espera um pouco- disse o corvo.- És muito impaciente! Lá chegaremos. No terceiro dia apresento-se um jovenzinho, que andava a pé. Muitos outros chegavam a cavalo ou de carro, como grãos-senhores. Dirigiu-se para o palácio, muito alegre: parecia vir ali só por divertimento. Tinha os olhos brilhantes como os teus; cabelos louros, compridos e muito lindos, mas vestia como um menino pobre.
- Oh! Era Kay! - gritou Gerda, radiante de alegria. - Achei-o! Enfim, achei-o!
- Levava às costas um saco - continuou o corvo.
- Não : havia de ser o trenó, pois o levou consigo.
- Pode ser - disse o corvo. - Não vi de perto. Mas, segundo me contou minha noiva, que é incapaz de alterar a verdade, quando chegou à porta do castelo, não se sentiu nada intimidado à vista dos porteiros, nem dos guardas de uniforme bordado de prata, nem dos lacaios agaloados de ouro. E quando quiseram que ficasse esperando embaixo, ao pé da escada, foi dizendo logo: " Obrigado; não é nada agradável esperar de pé !" Subiu sem mais detença, e penetrou nos salões deslumbrantes de luzes. Lá dentro viu incensando o trono camaristas e ministros- todos eles calçados apenas de alpercatas, para não fazer barulho. Era bastante para desconcertar um homem não habituado a tanta solenidade, quanto mais a quem, como aquele jovem, sentia as botinas rangeram despropositadamente! Ele, contudo, não se intimidou.
- Sim! Era Kay! Lembrou-me de que quando desapareceu estava com as botinas novas, e que elas rangiam muito - eu mesma as ouvi ranger, naquele dia.
-E faziam um barulho diabólico! - continuou o corvo, - Mas o rapaz, como se aquilo não fosse com ele, caminhou em direção à princesa, que estava sentada sobre uma enorme pérola, do tamanho de uma almofada. Cercavam-na as damas de honor, com suas camareira, e as camareiras das suas camareiras; e todos os cortesãos, com os cavalheiros do seu séquito, e os servidores dos cavalheiros com seus pajens.Toda essa gente rodeava o trono, como disse, e quanto mais próximos da porta, mais orgulhosos se mostravam. E os últimos, que eram pajens dos pajens -aqueles que andam só de alpercatas - eram tão imponentes e tão rebarbativos, que a gente mal ousava encará-los. Mas o rapaz nem se apercebeu da sua presença.
- Havia de ser coisa tremenda, avançar no meio de toda essa Corte! - disse Gerda. - Mas e Kay? Conseguiu ele agradar a princesa?
- Se conseguiu! Digo-te que, não fora eu um corvo, e quem teria casado com ele era eu! Falou tão bem, com tanto espírito, como eu mesmo falo, quando falo o idioma corvino. Minha noiva contou-me tudo. Era um rapaz bonito e amável, e muito desembaraçado. Também não foi lá para pedi-la em casamento, não; disse-o de chegada: queria apenas verificar se a princesa era, de fato, tão espirituosa como diziam. Achou-a encantadora, e ela por sua vez gostou muito dele.
- Sim: não tenho mais dúvida alguma- era Kay! Sabia tantas coisas - até podia fazer cálculos de frações, de cabeça! Era tão esperto! Escuta! Queres levar-me ao palácio?
- Ah! Isso é fácil de dizer, mas por a ideia em prática...é outra coisa! Em todo o caso, vou falar com a minha noiva: talvez ela ache um meio de te introduzir lá dentro; mas torno a prevenir que jamais uma menina como tu - e de mais a mais, descalça- oh! jamais entrou naquele palácio.
- Pois eu hei de entrar! Quando Kay souber que estou lá irá imediatamente me procurar.
- Veremos se é possível. Vamos, que o palácio não fica longe daqui. Ficarás esperando no portão.
E o corvo ergueu a cabeça e bateu as asas. Lá se foi voando, e só voltou ao cair da noite.
- Grau! Grau! - disse ele ao chegar. - Minha noiva envia-te muitos cumprimentos, e este pãozinho, que tirou da cozinha para ti. Lá havia tanto, tanto pão! E ela pensou que havias de ter fome, não? Agora quanto a te apresentares no palácio- nem pensar nisso! Estás descalça, e os guardas recamados de prata, e os lacaios vestidos de brocado não o consentiriam. É impossível! Mas espera, não chores assim: entrarás de qualquer maneira. Minha noiva, que faria tudo para me ser agradável, conhece uma escada de serviço, que vai ter ao quarto de dormir, e ela sabe onde está a chave.
O corvo conduziu a menina pela grande alameda da entrada; e assim como caíam as folhas das árvores, uma por uma, assim também as luzes da fachada do palácio foram-se apagando, uma por uma. E quando tudo ficou às escuras, o corvo levou Gerda para uma porta baixa, que estava entreaberta.
E como palpitava - de angústia e de esperança- o coração da menina! Era como se ela fosse cometer uma falta, assim se esgueirando na sombra, furtivamente. No entanto só queria saber se de fato era Kay quem estava lá dentro. Certo é que já quase nem tinha dúvidas: devia se ele! Aquilo que o corvo dissera-cabelos compridos e brilhantes, olhos vivos e inteligentes, língua desembaraçada- não podia referir-se senão a Kay. Já lhe parecia vê-lo sorrir, como no tempo em que brincavam juntos em casa, à sombra das roseiras.
- Como ele vai ficar contente de me ver! - pensava ela. - E me fará perguntas. E como se comoverá quando eu lhe contar toda a tristeza que reinou na sua casa e na nossa, quando ele desapareceu!
Subiram a escada; no patamar ardia uma pequena lanterna sobre um móvel. Esperava-os a corva domesticada, que dava saltinhos e voltava a cabeça, toda dengosa, para o lado do corvo; Gerda fez-lhe uma reverência, como a avó lhe tinha ensinado.
- Meu noivo falou-me muito bem de ti, boa menina- disse a corva.- E tua vida- Vita, como dizem alguns - comoveu-me muito, e prometi-lhe que te ajudaria. Queres levar a lanterna? Podes seguir-me sem receio: não encontraremos ninguém.
- Mas parece-me que vem alguém atrás de nós- disse a menina.
É que na parede apareciam sombras estranhas: cavalos de crinas compridas e pernas delgada, caçadores, cavaleiros e amazonas elegantes.
- Ah! São os sonhos- explicou a corva domesticada. - Levam os pensamentos de Suas Altezas para as suas correrias e caçadas. E é melhor assim: não acordarão facilmente, e poderás contemplá-los mais de perto. Espero agora que, quando lhes tiveres caído em graça, e te encherem de honras, não te esqueças de nos mostrar um coração generoso.
- Disso tenho toda a certeza- acudiu o corvo do mato.
E via-se bem, por estas palavras, que era um corvo silvestre e nada civilizado: não tinha a experiência da Corte.
Entraram em uma sala, cujas paredes eram forradas de cetim róseo, todo bordado de flores. Os sonhos também passaram por ali, e voltavam a galope; mas iam tão depressa que Gerda não chegou a ver os pensamentos de Suas Altezas, que eles levavam, que eles levavam. Entraram depois em outra sala, e em outra ainda, e cada qual mais magnificente. Era para desorientar qualquer pessoa, todo aquele luxo prodigioso. Mas Gerda apenas lhes deitava um rápido olhar: só pensava em tornar a ver o seu companheiro de brinquedos.
Chegaram por fim ao quarto de dormir. O teto, todo de cristal, formava uma grande coroa de folhas de palmeira. No meio erguia-se uma grossa haste de ouro maciço, que sustentava dois leitos, em forma de lírios: um branco, onde repousa a princesa, o outro cor de fogo, que era o do príncipe. Gerda aproximou-se deste, certa de encontrar o seu amigo Kay. Levantou uma das pétalas cor de fogo, que abaixavam de noite, para abrigar o príncipe, e viu-lhe a nuca: mas o rosto ela não pode ver, por que ele o tapava com os braços. Julgou que era de fato Kay, e chamou-o pelo nome, mantendo a lanterna erguida, para que ele a visse ao abrir os olhos. Os fantasmas do sonho voltaram a todo o galope, trazendo o espírito do moço, que despertou o ergueu a cabeça.
E...não era Kay!
Somente a nuca se parecia com a dele. Contudo não deixava o príncipe de ser também um belo rapaz. Nisto a princesa também ergueu a cabeça, lá no seu leito de lírio branco e perguntou quem estava ali. E Gerda, lavada em lágrimas, contou-lhes toda a sua história, sem esquecer de mencionar tudo quanto os dois corvos tinham feito por ela.
- Coitadinha! - disseram ambos ao mesmo tempo. Louvaram então o procedimento dos corvos, e disseram que não estavam zangados com eles, apesar de terem infringido todas as regras da etiqueta: mas que não tornassem a fazer coisa semelhante: tais liberdades não eram permitidas no castelo; mas daquela vez tinham até merecido uma recompensa. E perguntaram-lhes:
- Que preferem vocês? Um campanário velho, para nele morarem sozinhos, ou uma nomeação para a Côrte, onde ficarão, elevados à dignidades de corvos da câmara real- o que lhes dará direito a todos os restos da mesa?
Os corvos inclinaram a cabeça, em sinal de reconhecimento, e optaram pelo emprego fixo:
- Nossa raça- disseram eles - tem uma velhice muito prolongada, e assim ficaremos certos de que não nos faltará alimento.
Sim: mais valia alguma coisa segura para a velhice, do que a liberdade!
O príncipe fez o que no momento podia em benefício de Gerda: abandonou seu leito, para que ela dormisse ali. E a menina, juntando as mãozinhas, disse:
- Senhor! Como os animais e os homens são bondosos comigo!
Fechou os olhos e pegou no sono - um sono suave e tranquilo, em que lhe apareceram de novo, em sonhos, as visões já entrevistas; mas eram agora os anjos do céu que arrastavam em pequeno trenó, em que ia sentado Kay, que a olhava sorrindo. mas era apenas sonho, porque ao despertar a visão desaparecer.
De manhã vestiram-na de veludo e sedas, dos pés à cabeça. A princesa convidou-a para ficar morando no castelo, onde viveria em contínuas festas: mas Gerda não aceitou: pediu que lhe dessem apenas um carrinho e um cavalo, e também um par de botinas, pois seu único desejo era continuar em busca de Kay pelo vasto mundo.
Recebeu lindas botinas, e também um regalo de pele, para abrigar as mãos; e ficou linda, com o vestido novo. Quando desceu para continuar a viagem achou no pátio um carro flamejante, todo de ouro, que a esperava à porta. Tinha gravadas as armas dos príncipes. A caixa do carro estava cheia de biscoitos, frutas, bolos de gengibre e passas. o cocheiro, o lacaio e o batedor- porque havia até um batedor - todos tinham uniforme bordado de ouro e coroas de ouro à cabeça.
O príncipe e a princesa em pessoa, ajudaram a menina a subir para o carro, e desejaram-lhe boa viagem, com muita gentileza e bondade. O corvo do mato, que tinha casado com a corva, ia acompanhar a menina nas três primeiras léguas de caminho, e sentou-se ao lado dela, porque não lhe agradava ir na traseira do carro, viajando assim de costas. A corva doméstica ficou à porta. E agitava as asas, em despedida.
- Adeus! Adeus! - diziam o príncipe e a princesa.
E a pequena Gerda chorava, e o corvo chorava. Andaram assim três léguas, e então o corvo despediu-se dela- e foi esta a despedida mais triste: como era uma criatura rústica, tinha-se afeiçoado de coração à menina, e doía-lhe muito separar-se dela. Voou para o alto de uma árvore e lá ficou agitando as asas negras, até perder de vista o carro, que resplandecia como um sol de verdade.
V- UM CORAÇÃO CAPRICHOSO
Iam atravessando uma floresta sombria, mas via-se bem o caminho, graças aos reflexos que despedia a carruagem. A luz era tanta que atraiu um bando de ladrões: precipitaram-se para o carro, como moscas engodadas por uma chama.
- Mas é ouro! É ouro puro! - gritava eles.
Apoderaram-se do carro e dos cavalos e mataram o cocheiro, o lacaio e o batedor.
- Que fresca e gordinha esta menina! - disse logo a velha mãe do chefe dos ladrões. - Ve-se logo que foi engordada com nozes!
Era uma velha de bigodes, e com as sobrancelhas tão compridas, que quase lhe tapavam os olhos. E ela continuou a falar, puxando por uma faca, cujo brilho dava calafrios:
- A carne dela há de ser tão tenra como a de um cordeirinho...Vai ser um regalo!
E ergueu a faca fiada, que brilhava com um fulgor sinistro.
Mas no mesmo instante soltou um grito agudo:
- Ai! Ai!
Era a neta, criatura selvagem e feroz, que, dependurada ao pescoço da megera, lhe enterrara os dentes na orelha.
- Criança malvada! - rugia a velha, apresentando-se de novo para degolar Gerda.
- Quero-a para brincar comigo! - disse a rapariga. - Ela me dará aquele regalo e aquele vestido; e vai dormir comigo na minha cama.
E ferrou outra dentada na avó, que de tanta dor deu um salto, retorcendo-se toda. Riam os ladrões, das contorções da velha, e diziam:
- Olha só a velha como dança com a filhota!
- Quero ir de carro! - disse a filha do ladrão.
E foi preciso deixá-la fazer o que queria: era teimosa e autoritária, estragada pelos mimos que lhe davam todos. Subiu pois com Gerda para o carro e lá se foram correndo, saltando por cima de troncos caídos e pedras soltas, por dentro do mato. A nova companheira de Gerda tinha a mesma estatura que ela, mas era mais robusta; seus ombros eram vigorosos, e a tez trigueira. Os olhos negros tinham uma expressão inquieta e tristonha. Ela cercou Gerda com os braços e disse-lhe:
- Não tenhas medo: não te matarão enquanto eu não me aborrecer de ti. Acho que hás de ser uma princesa, não?]
Disse-lhe Gerda que não; e contou-lhe todas as aventuras por que passara, em busca de Kay. A rapariga abriu bem os olhos tristes e sombrios, contemplando com a maior atenção aquela criaturinha frágil, a quem tinha acontecido tanta coisa estranha. Depois sacudiu a cabeça, com um ar de desafio, dizendo:
- Não!Não te matariam, nem que eu me incomodasse contigo: nesse caso eu mesma te mataria!!
Enxugou as lágrimas que corriam dos olhos de Gerda e depois meteu as mãos no regalo, que era quente e macio.
Chegaram enfim ao pátio de um castelo meio arruinado, que servia de esconderijo aos ladrões. Das fendas das paredes saíam voando corvos e outras aves de rapina. Enormes buldogues, capazes de devorar um homem, vieram correndo ao encontro do carro; tinham o ar feroz, e saltavam em roda das meninas; mas aqueles cães não ladravam: isso não lhes era permitido.
Na grande sala toda escalavrada(. Cuja superfície está arruinada, esburacada (parede escalavrada):. ardia uma fogueira sobre as lajes do pavimento; a fumaça subia para o teto em busca de saída - porque não havia chaminé - e rebojava toda, enchendo o enorme salão e escapando enfim por onde podia. No meio da fogueira fervia um caldeirão de sopa, e ao redor dele douravam ao calor do fogo lebres e coelhos, seguros em espetos.
- Esta noite vais dormir comigo e com todos os meus animaizinhos preferidos - disse a filha do ladrão.
Depois de comerem foram acomodar-se em um canto, onde havia um monte de palha e uns tapetes. Espetados pela paredes viam-se vários poleiros, onde posavam mais de cem pombas, que pareciam adormecidas; mas ergueram a cabeça, à aproximação das meninas. Além dos poleiros viam-se também umas grades de sarrafos, que tapavam aberturas da parede.
- São todas minhas! - disse a estranha rapariga, apontando para as aves.
Segurou uma pomba pelas patinhas e sacudiu-a, para obrigá-la a bater as asas. Lançou-a então ao rosto de Gerda, dizendo:
- Dá-lhe um beijo!
E pôs-se a rir da carinha assustada da menina.
- Todas estas pombas são domésticas - explicou ela - mas aquelas que estão naqueles encerros da parede são do mato. Tenho de mantê-las assim engaioladas, senão fugiriam todas. Mas o meu favorito é este, o meu querido Bé!
E ao dizer isto puxou pelos chifres um jovem rangífer (Mammífero ruminante, o mesmo que renna.) que estava amarrado, e trazia ao pescoço uma coleira de cobre bem polido.
- É outro que não posso perder de vista - continuou ela. - Tem de ficar amarrado, senão é capaz de fugir. Todas as noites dou-lhe um pontaço no pescoço com a minha faca, e ele quase morre de medo! É tão divertido!
E a menina cruel tirou de uma fenda da parede uma faca comprida e esfregou-a no pescoço do rangífer. O pobre animal, louco de terror, esticava a corda, escouceava, debatia-se - mas tudo isto causava grande prazer à rapariga. Depois de rir bastante, ela resolveu deitar-se; puxou Gerda para que também se acomodasse a seu lado.
- Ficas assim com essa faca a noite? - perguntou a menina, amedrontada.
- Sempre durmo com ela: a gente nunca sabe o que pode acontecer. Mas conta-me outra vez aquilo que disseste do teu amigo Kay, e o que te aconteceu por esses mundos.
E Gerda recomeçou a sua história; as pombas trocazes arrulavam na gaiola, enquanto as outra dormiam, muito tranquilas.
A filha do ladrão passou um braço pelo pescoço de Gerda e, com a faca segura na outra mão, adormeceu como um cepo. Gerda, porém, não pode pregar olho, vendo-se sempre entre a vida e a morte. Os bandidos, sentados em roda da fogueira, cantavam e bebiam, enquanto a velha megera dançava e dava pulos. Que espetáculo horrível para a pobre Gerda!
De repente as pombas trocazes puseram-se arrular, dizendo:
- Cou...cou...Nós vimos Kay, nós vimos...Uma galinha branca puxava o trenó dele. Kay estava sentado no da Rainha da Neve...Passou pelo mato, onde nós estávamos, ainda muito novinhas, no nosso ninho. O sopro gelado da Rainha da Neve chegou até a nossa árvore, e todos os filhotes morreram: só escapamos nós duas!
- Que é que vocês estão dizendo? - perguntou Gerda. - Para onde foi a Rainha da Neve? Vocês sabem para onde foi ela?
- Sem dúvida foi para a Lapônia, onde há sempre neve e gelo. Pergunto a à rena que está ali amarrada, se queres saber bem de tudo.
- Se há neve e gelo! Mas é esplendido! - rerpondeu a rena. - É tão bom viver na Lapônia!...Lá a gente pode correr livremente por aqueles imensos vales deslumbrantes de brancura. É lá que a Rainha da Neve tem seu palácio de verão. Mas o seu verdadeiro forte, o castelo principal, fica perto do Polo Norte, em uma ilha chamada Spitzberg.
- Oh! Kay, meu pobre Kay! Onde estarás a esta hora? - suspirou Gerda.
- Fica quieta- disse a outra- senão enterro-te esta faca no corpo!
Gerda calou-se; mas pela manhã contou-lhe o que as pombas trocazes tinham dito. A filha do ladrão escutou-a muito séria, fazendo sinais de aprovação com a cabeça, e depois disse:
- Muito bem...
E, voltando-se para o rangífer, perguntou-lhe:
- Sabes onde é a Lapônia?
- Pois não havia de saber! E ninguém o sabe melhor do que eu!
E seus olhos deitavam chispas, à recordação da pátria.
- Foi lá que nasci, foi lá que me criei! Lá vivi os dias mais felizes da minha vida, saltando pelos campos de neve...
- Escuta, Gerda. Todos os homens saíram, e só ficou em casa a minha avó. Ela não sai, mas ali pelo meio-dia bebe um trago daquela garrafa e dorme uma sestinha. Então poderei fazer alguma coisa por ti. Espera!
E a neta da megera saltou da cama para beijar a avó. Puxou-lhe pelo bigode, dizendo:
- Bom dia , minha boa cabra velha! Bom dia!
A velha respondeu assentando-lhe um murro no nariz, que ficou vermelho e inchado; mas tudo aquilo eram manifestações de amizade.
Mais tarde, de fato, a velha bebeu alguma coisa que havia em garrafão, e deitou-se para sestear. Foi a neta ter então com o rangífer e disse-lhe:
- Eu bem queria ficar contigo, e continuar a te dar sustos com a minha faca, porque és tão engraçado quando ficas com medo...Mas o que é que se vai fazer! É preciso que vás à Lapônia; mas olha! Tens de correr a bom correr! leva esta menina ao palácio da Rainha da Neve, onde está seu companheiro de brinquedos. Sabes tudo o que ela me contou, pois estavas acordado, e nos escutavas.
A rena deu um salto, de tão alegre. A rapariga acomodou Gerda nas costas do animal, amarrou-a fortemente, e até forrou o lombo da rena com o seu travesseiro, para que ficasse mais cômodo. Depois disse a Gerda:
- Toma - leva tuas botas de pele, porque lá faz muito frio; eu fico com o regalo: gosto dele, e tão pequenino ...Mas tenho outra coisa aqui. Não quero que fiques com as mãos geladas, não: toma estas luvas da avó; são forradas, e chegam até os cotovelos. Vamos, calça-as...Credo! Agora tens uma manoplas tão horríveis como as da minha cabra velha!
Gerda chorava de alegria.
- Deixa-te de caretas - disse a outra. - Não gosto de te ver chorar. Deves estar mas é muito contente. Toma também isto: dois pães e um pedaço de presunto. Assim não terás fome.
Amarrou as provisões no lombo da rena. Depois foi abrir a porta, chamou os enorme cães para dentro da sala, para que não perseguissem os fugitivos, e cortou a corda do rangífer com a sua faca fiada, dizendo ao animal:
- Agora corre! Mas tem todo o cuidado com a mocinha!
Gerda estendeu-lhe os braços, sepultados nas enormes luvas de pele, e disse-lhe adeus.
E o rangífer partiu como uma flecha, saltando por cima das pedras e dos valados. Atravessou a grande floresta, cruzou pantanais e campinas, e atravessou de novo matos profundos.Os lobos uivavam, os corvos crocitavam, o vento gemia. De repente apareceu um resplendor intenso; parecia que o céu se incendiava todo.
- São as luzes da minha querida aurora boreal - Exclamou a rena, encantada. - Vê como brilham!
E corria, corria, mais depressa, mais depressa...Correu noite dia, e parecia que a energia lhe aumentava ainda. Comeram os pães, comeram o presunto, e quando as provisões já estavam acabadas, chegaram enfim à Lapônia.
VI - A LAPÔNIA E A FINLANDESA
Parou a rena em frente de uma choça pequenina. Era de aparência miserável: o teto quase tocava o chão, e a porta era tão baixinha que para entrar tiveram de se arrastar. Lá dentro encontraram apenas uma mulher lapônia, que cozinhava peixe, Uma lâmpada de azeite iluminava fracamente o pequeno recinto.
Contou-lhe a rena toda a história de Gerda, depois de a inteirar da sua própria, que lhe parecia bem mais notável. Gerda estava tão enregelada, que nem podia falar.
- Coitadinha!- disse a mulher, - Ainda tens muito que andar! São mais de cem léguas pelo interior da Finlândia. É lá que mora a Rainha da Neve; é lá que ela acende todas as noites seus fachos, que parecem fogos de Bengala. Vou escrever em um bacalhau seco- porque não tenho papel e tu o levarás a uma finlandesa que mora lá. Ela dirá o que vocês terão de fazer, porque o sabe melhor que eu.
Enquanto isso Gerda se aquecera. Deu-lhe a lapônia alimentos e bebidas quentes, e foi escrever a sua carta. Entregou depois a Gerda o bacalhau seco, que ela amarrou também ao dorso do rangífer, para que não se perdesse. Sentou-se então a lapônia nas costas do animal, que recomeçou a corrida. Voa que voa! E o céu resplandecia, todo colorido de vermelho e de amarelo. A aurora boreal iluminava o caminho, na noite interminável do Norte.
Chegaram enfim à Finlândia, e, na corrida em que ia, a rena foi bater de encontro à chaminé da finlandesa, cuja casa era enterrada no solo. A mulher acolheu amavelmente os viajantes. Mas que calor lá dentro da toca! Também a mulher estava quase sem roupas. Era anã, e nada asseada - mas muito boa pessoa. Tratou logo de tirar as botas e as luvas de Gerda, e desafogou-lhe as roupas, senão o calor a sufocaria. Teve também o cuidado de por um pedaço de gelo sobre a cabeça do rangífer, para evitar uma apoplexia, e depois tratou de ler o bacalhau seco. Leu e releu, e ainda tornou a ler o que estava escrito ali, até que o soube de cor; atirou então o bacalhau para o caldeirão: vivendo em uma região tão pobre, a finlandesa aprendera cedo a tudo aproveitar, e aquilo servia para comer!
Contou-lhe então a rena a sua história, e depois a de Gerda. E a finlandesa escutava sem nada dizer; apenas piscava de vez em quando os olhinhos inteligentes.
Terminada a narração, disse ainda a rena:
- Tu és muito sagaz: e eu sei que conheces grandes segredos. Podes amarrar, somente com um fiozinho, todos os ventos do mundo; desfazendo um nó, reina bom vento; se desamarra o segundo, o navio navega com grande rapidez; mas se soltares ainda o terceiro e o quarto, desaba tamanha tempestade, que deita por terra as árvores das florestas. Também sabes preparar uma beberagem que dá a força de doze homens. Não quererás dá-la a beber a esta menina, para que ela possa lutar com a Rainha da Neve?
- A força de doze homens...- murmurou a finlandesa.- Sim...é possível! Isso lhe pode ser útil.
Tirou então uma grande pele enrolada, que estava guardada debaixo da cama, desdobrou-a, e pôs-se a ler os caracteres estranhos que lá estavam escritos. E precisava de tanto esforço de atenção para interpretá-los, que o suor lhe escorria da fronte. Por fim já nem queria continuar a leitura, de tão fatigada; mas a rena tornou a implorar com tamanho empenho, por amor de Gerda, e a menina também a encarava com olhos tão suplicantes, tão cheios de lágrimas, que a finlandesa piscou os olhos, e recomeçou a leitura. Ao terminar, levou a rena para um canto, e , depois de lhe aplicar mais gelo à cabeça, disse-lhe em segredo:
- Vejo por estas garatujasf. Desenho rudimentar, malfeito, normalmente sem forma e ilegível. ) que Kay está de fato no palácio da Rainha da Neve. Tem lá tudo quanto deseja: sente-se muito feliz, e acha que não há no mundo inteiro vida melhor que a sua; mas isso provém de uma partícula de vidro que lhe penetrou pelo olho e foi incrustar-se no seu coração: é isto o que lhe desnatura os sentimentos e as ideias. Enquanto essa migalhinha de vidro não for retirada dali, ele não poderá retornar à sua condição de ser humano digno deste nome, e continuará dominado pela Rainha da Neve.
- E tu mesma não podes dar à menina alguma beberagem que lhe empreste o poder de romper o encantamento?
- Não posso dar poder mais forte do que aquele que já possui. Pois não vês que poder ela tem? Não vês que todos os seres - homens e animais- são obrigados a servi-la, e que, tendo partido descalça da terra natal, pode ainda assim atravessar sem perigo metade do mundo? E não é de nós que ela recebe esse poder, não: tem-no ela no coração, e ali o conserva, porque é uma criança inocente, e cheia de bondade. Se ela não conseguir entrar no palácio da Rainha da Neve, e arrancar do coração do menino as duas lasquinhas que tem causado todo o mal, nós de nada lhe serviremos. Tudo o que te resta a fazer é levá-la até a entrada do jardim da Rainha da Neve, que fica a duas léguas daqui. Deixa-a junto à moita de espinheiro de frutos vermelhos, que encontrarás no meio da neve. Então, sem perder tempo a tagarelar com as renas que encontrares pelo caminho, dá volta; e corre a bom correr!
E a finlandesa colocou de novo Gerda no lombo da rena, que disparou como uma flecha.
- Para, rena! - disse Gerda. - Esqueci-me das botinas e das luvas de pele!
É que sentia frio glacial, que cortava a epiderme. Mas a rena não voltou atrás: continuou a galopar sem esmorecer, e só foi parar perto da moita de frutos vermelhos. Então depôs a menina no chão e beijou-a na boca, enquanto lhe escorriam dos olhos grandes lágrimas ardente. E o valente animal tornou a partir, retomando o caminho que andara, e voando que nem vento.
E lá ficou Gerda sozinha, descalça e sem luvas, no meio daquele país inteiramente gelado. Desandou a correr, e avistou todo um regimento de flocos de neve, que vinham vindo. Não caíam do céu, certamente todo iluminado então pela aurora boreal. Corriam em linha reta pelo chão, e iam sempre aumentando de tamanho.
Lembrou-se dos que examinara uma vez com a lente, e que lhe pareceram então tão grandes e simétricos. Pois estes eram bem maiores, e bem mais esquisitos: eram dotados de vida - eram flocos vivos! Eram a guarda avançada da Rainha da Neve, e tomavam as formas mais estranhas. Uns pareciam-se com o porco-espinho, eram horrendos! Outros, feixes de serpentes entrelaçadas, esticando as cabeças para todos os lados; outros assemelhavam-se a ursinhos gorduchos, de pelo crespo. E todos eram de alvura deslumbrante. E avançavam em boa ordem.
E a menina começou a rezar. Repetia o Padre-Nosso, e o frio era tão intenso que seu hálito gelava quando lhe saía da boca, e ela o via diante de si, como uma nuvem. Ia-se condensado, em forma de anjinhos minúsculos, luminosos, que assim que tocavam o chão aumentavam de tamanho. Vinham todos armados de espada e escudo, e de elmo à cabeça. E quando Gerda acabou de dizer o Padre-Nosso, viu-se rodeada de uma legião deles, que descarregava a espada contra os flocos de neve, deixando-os desfeitos, em mil caquinhos.
Então ela pode correr, livre de perigo e já sem medo algum. Os anjos iam-lhe tocando nas mãos e nos pés, para que não ficassem enregelados. E assim ela chegou ao palácio da Rainha da Neve.
Mas vejamos agora o que fora feito de Kay. È certo que não se recordava mais de Gerda; e menos ainda poderia imaginar que ela estivesse mesmo à porta do palácio - tão perto dele!
VIII- O CASTELO DA RAINHA DA NEVE
As paredes do palácio eram feitas da neve que os ventos tinham amontoado; e eles mesmos haviam aberto naquelas muralhas as portas e janelas. Eram mais de cem salões imensos; o maior de todos media algumas milhas de extensão, e todos eram iluminados pelos fogos da aurora boreal. Tudo lá dentro brilhava, cintilava. Mas que vácuo, e que frio!
Jamais havia festa alguma naqueles domínios reais. Teria sido fácil, entretanto, convocar para um baile os ursos brancos, que, ao som da orquestra da tempestade, podiam dançar quadrilhas com aquela sua gravidade austera, que harmonizava tão bem com a solenidade do lugar. Nem tampouco era permitida a entrada às raposas brancas da vizinhança; e menos ainda se consentia que suas damas de companhia se reunissem ali para tagarelar e murmurar da vida alheia, como é de uso na corte de tantos soberanos...Não! Tudo era vasto e vazio naquele palácio da Rainha da Neve; e a própria luz era gelada.
No maior daquele imensos salões que não tinham fim, havia um lago inteiramente gelado, cuja superfície era partida em milhares de milhares de bocados, todos perfeitamente iguais. Era no meio daquele lago gelado que reinava a Rainha de Neve quando voltava de suas correrias. Afirmava ela que o lago era o espelho da sabedoria; e que era aquele o melhor lugar do mundo.
Lá também estava kay, azulado de frio - mas nem dava por isso. Com um beijo a Rainha da Neve afastara dele os tremores de frio; e afinal- seu coração não era já um bloco de gelo? Tinha nas mãos alguns daqueles pedaços de gelo, planos e simétricos, de que se compunha a superfície do lago. Procurava formar com eles alguma figura determinada, movendo-os em todos os sentidos, combinando-os de mil maneiras. Era como um jogo de paciência. Absorto em suas combinações, procurava obter figuras singulares e estranhas. Chamava-se aquilo o grande jogo da sabedoria, muito mais difícil do que o quebra-cabeça chinês.
Aquelas figuras excêntricas, que não se assemelhavam a coisa alguma real, pareciam-lhe maravilhosas; mas era por causa do grão de vidro que tinha no olho.
Compunha assim letras e chegava a formar palavras inteira. Procurava naquele momento compor a palavra ETERNIDADE. Tentava já há muito tempo, sem o conseguir. A Rainha da Neve dissera-lhe um dia:
- Se chegares a formar esta palavra, serás senhor da tua pessoa; dar-te-ei o mundo inteiro, e um par de patins novos.
Mas Kay não conseguia acertar, por mais que se esforçasse. Um dia a Rainha da Neve disse:
- Preciso dar uma volta lá pelos países quentes, Quero espiar nos caldeirões grandes. Quem sabe se a neve dos cimos já não se derreteu! Isso é bom para os limoeiros e as parreiras.
Os caldeirões grandes a que ela se referia eram os vulcões Etna e Vesúvio.
Foi voando pelos ares, e Kay ficou só no imenso salão, curvado sobre os pedaços de gelo. Pensava, imaginava, combinava; como havia de arranjá-los para obter o que queria? E ali ficou imóvel, inerte, como se estivesse também gelado.
Foi então que Gerda entrou pela grande porta do palácio. Montavam guarda na entrada os ventos cortantes; mas Gerda rezou a oração da noite, e eles se acalmaram, e adormeceram. E ela entrou no imenso salão gelado. Avistou Kay: reconheceu-o imediatamente. Correu para ele e abraçou-se ao seu pescoço, gritando cheia de alegria:
- Meu Kay querido! Até que afinal te achei!
Ele continuava calado, duro de frio, têso como uma estaca, de olhos fixos nos pedaços de gelo. Então Gerda chorou; chorou lágrimas ardentes, que caíram sobre Kay e chegaram até o seu coração. Fundiram o gelo que o cobria , de sorte que com o gelo escorreu dele o grãozinho de cristal. Kay levantou a cabeça e olhou para Gerda. E ela cantou, como dantes cantava lá no seu jardinzinho, aquele hino:
" Lá no vale coberto de rosas,
O Menino Jesus nós veremos!"
E Kay, ouvindo-a, rompeu a chorar; chorou tanto, tanto, que as lágrima arrastaram o caquinho de espelho para fora do olho. Então o menino reconheceu Gerda, e gritou, radiante de felicidade:
- Gerda! Minha querida Gerda, onde estiveste todo este tempo?
E, olhando em roda, perguntou ainda!
- E eu? Onde estive eu? E que frio faz aqui! E que deserto é isto , esta imensidão!
Abraçou Gerda, que ria e chorava de felicidade. E aquele grupo que os dois formavam , e que poderia denominar-se"O Amor que protege e salva", oferecia um quadro tão encantador, que até os pedaços de gelo se puseram a dançar de contentes; e quando, cansados, tornaram a atirar-se ao chão para repousar, formaram a palavra ETERNIDADE, a palavra que havia de dar a Kay a liberdade, a terra inteira e patins novinhos.
Gerda beijou-lhe as faces, que logo ficaram coradas; beijou-lhe os olhos, e eles recuperaram o antigo brilho; beijou-lhe as mãos e os pés, que também tornaram à vida: e ele se sentiu forte e animado, cheio de saúde e de alegria. Agora, sim! Agora a rainha da Neve podia vir quando quisesse! Mas Kay não esperou por ela, para reclamar o que tinha prometido: ali estava a sua carta de alforria, escrita com letras resplandecentes, letra de gelo.
Os dois saíram do imenso palácio de mãos dadas. Falaram da avó, da sua infância, das rosas do jardim do telhado. Quando se aproximavam dos lugares, o vento cessava de soprar e o sol aparecia. Na moita de espinheiro, carregada de bagas vermelhas, esperava-os o paciente rangífer, com sua mulher, a rena, que tinha o ubre bem cheio de leite. Elas beberam aquele bom leite quentinho, e depois os dois animais os conduziram à casa da lapônia, que tinha feito roupas novas para eles, e preparara o seu trenó para levá-los.
Instalou-os no trenó e conduziu-os até a fronteira do seu país, onde apareciam já os primeiros brotos verdes. Despediram-se ambos da boa lapônia e do casal de renas, que os tinham levado até lá. Tornaram a ouvir o gorjeio dos passarinhos e entraram na orla dos bosques, cheios já dos verdes rebentos que anunciam a primavera. De repente Gerda avistou um cavalo magnífico, que reconheceu imediatamente: era um dos que a conduziram no carro de ouro! Montada nele vinha uma moça, com um gorro vermelho. Do arção da sela pendiam duas pistolas. Era aquela menina da quadrilha de ladrões. Cansada da vida que levava na floresta, partira para o Norte; se não lhe agradasse o lugar, ora! iria para outro rumo! Visitaria outros países. Ela também reconheceu Gerda- e que encontro cheio de alegria foi o das duas amigas!
Mas a desenvolta rapariga passou a repreender Kay:
- Sim, senhor!És um grande vagabundo! Eu só queria saber se mereces que alguém corra até o fim do mundo por tua causa!
Gerda acariciou as faces da amiga, e, para mudar de assunto, pediu-lhe notícias do príncipe e da princesa.
- Andam viajando pelo estrangeiro.
- E os corvos? -indagou Gerda.
- O do mato morreu; a viúva anda de luto; uns fiapos de lã preta na perna. E vive a se lamentar, e a se queixar de saudades do marido. Mas tudo aquilo é só palavrório! E agora...conta-me as tuas aventuras, e como foi que deste com este fujão!
Gerda e Kay contaram-lhe tudo.
- E a vaquinha Vitória entrou por uma porta e saiu por outra! E acabou-se a história! - disse a moça do gorro.
E estendeu-lhe a mão; prometeu-lhes uma visita, se acaso passasse pela sua cidade, e lá se foi, a correr mundo.
Mas Gerda e Kay continuaram a andar, de mãos dadas: à medida que caminhavam mais bela e mais florida lhe aparecia a primavera, cheia de verdura e de flores. Um dia ouviram o repique dos sinos, e reconheceram os altos campanários da sua cidade. Chegaram a casa, subiram a escada, e entraram no quarto da avó, onde tudo estava como dantes. O relógio da parede continuava a andar: tique-taque, tique-taque, enquanto os ponteiros caminhavam. Mas ao passar pela porta notaram que eram agora gente grande.
Quando abriram a janela viram as rosas que brilhavam, esplendidas, sobre o canal do telhado; e debaixo das roseiras suas banquetas os esperavam. kay e Gerda sentaram-se ali, como outrora. Tinham esquecido, como se esquece um sonho mau, os frios esplendores da Rainha da Neve. A avó, que se aquecia ao sol, lia na sua Bíblia:
" Se naõ vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos Céus."
Kay e Gerda olharam-se e compreenderam de repente as palavras do velho hino:
" Lá no vale coberto de rosas,
O Menino Jesus nós veremos!"
Ficaram ali, muito tempo, de mãos dadas.
Tinham crescido, sim, mas eram ainda crianças- crianças no coração.
FIM
- Estas são muito lindas- disse ela- do que todas as que vem nos livros de figuras; além disso, ensinei a cada uma das flores uma história, que elas agora sabem contar.
Tomou a criança pela mão, levou-a para a casinha e fechou a porta. As janelas ficavam muito altas, e os vidros, como já disse, eram azuis, amarelos e encarnados, de sorte que a luz do dia, passando por eles, coloria todos os objetos de uma mescla de cores fantásticas. Sobre a mesa estava uma cesta cheia de cerejas magníficas, e Gerda comeu quantas quis, conforme lhe permitira a velha.
Enquanto comia as frutas, ia a velha lhe penteando o cabelo com um pente de ouro, e, formando lindos cachos, que cercavam como uma auréola o rostinho gentil da criança, fresco como um botão de rosa.
- Há tanto que eu desejava- disse a velha- ter comigo uma meninazinha amável como tu! Verás como vamos ser felizes agora!
Enquanto ela ia penteando os cabelos de Gerda, ia a menina esquecendo aos poucos o seu amigo de infância; porque aquela velha era uma feiticeira. Não era, contudo, malvada: apenas fazia mágicas para se distrair; e agora, como gostara da menina, queria retê-la ao pé de si.
Por isso mesmo foi logo ao jardim e estendeu a muleta por cima de todas as roseiras; e todas elas, até as que estavam cheias de vigor e cobertas de rosas belíssimas, sumiram-se imediatamente debaixo da terra, sem deixar sinal algum de que ali havia ainda há pouco tanta flor. É que a feiticeira temia que, vendo as rosas, Gerda se lembrasse das do seu sótão; lembrar-se-ia então de Kay, o seu amigo, e fugiria para procurá-lo.
Depois levou a criança ao jardim. Era um jardim esplêndido! E que perfume delicioso! Vicejavam ali flores das quatro estações do ano, e todas eram lindas. Nenhum livro de estampas, certamente, podia comparar-se com aquele esplendor! Gerda pulava de alegria; e brincou entre os canteiro até o sol se sumir atrás das cerejeiras. A velha levou-a então para dentro ; deitou-a em uma linda caminha, cujos travesseiros eram de seda rosa, bordados de violetas. E a menina adormeceu e teve sonhos tão lindos, como só uma rainha pode sonhar no dia do casamento.
No dia seguinte voltou ao jardim, para brincar entre as flores, aos brandos raios de sol. E assim se passaram dias e dias. Conhecia já todas as flores, apesar de haver tantas naquele jardim; parecia-lhe, contudo, que faltava uma - mas qual delas, não sabia dizer. Ora um dia, examinando o grande chapéu da velha, que era cercado de uma grinalda de flores, viu que a mais bela de todas era uma rosa. Esquecera-se a velha de tirá-la do chapéu, quando sumira as roseira debaixo da terra. É quase sempre assim: a gente nem sempre pensa em tudo.
- Que linda! - exclamou Gerda. - Não haverá rosas neste jardim?
E pôs-se a examinar minunciosamente canteiro por canteiro: nada! Não havia uma única rosa. Atirou-se de bruços ao chão, chorando, muito aflita. As lágrimas que derramava caíram exatamente no lugar onde estava uma das roseiras que a velha tinha sepultado, e quando a terra ficou bem regada de lágrimas, surgiu de repente a roseira, tão lindamente florida como no momento em que fora soterrada.
A alegria de Gerda não teve limites: beijou as flores, uma por uma, e depois lhe vieram à memória as que tinha deixado em casa, diante da janela do sótão- e então lembrou-se também de Kay, o seu amigo de infância.
- Meu Deus! - exclamou ela. - Quanto tempo perdi aqui! Eu, que sai de casa para procurar o meu companheiro de brinquedos...
Voltou-se para as rosas e perguntou:
- Saberão vocês onde está ele? Estará mesmo morto?
- Não; morto ele não está - disseram as rosas. -
Nós estivemos debaixo da terra; e lá que se encontram todos o que morrem, e ele lá não está.
- Obrigada! Muito obrigada!
E Gerda falou então com as outras flores; curvava-se sobre seus cálices, tomava-os entre as mãozinhas minúsculas, e perguntava:
- Tu não sabes onde está Kay?
E as flores respondiam-lhe. Ela ouvia as histórias que elas sabiam contar, mas eram apenas fantasias. Quanto ao pequeno Kay, nenhuma delas o conhecia.
Que diria o lírio vermelho? Vamos escutá-lo:
- Não ouves o tambor? "Tan, tan! " Só tem duas notas: "Tan! Tan!" Não ouves o canto fúnebre das mulheres? Não ouves as ordens dos sacerdotes? Envolta em sua longa túnica vermelha, a esposa indiana mantém-se sobre a fogueira; as chama sobem, envolvendo-a, juntamente com seu defunto marido: mas a esposa indiana parece não sentir o martírio. Crês que a chama da alma possa perecer nas chamas da fogueira?
- Mas como queres tu que eu o saiba? - perguntou a pequena Gerda.
- Pois a minha história acabou- disse o lírio vermelho.
Que teria contado a ipoméia?
- Na encosta da montanha está suspenso um velho torreão. A hera alastra-se pelos muros e seus brotos viçosos sobem até o balcão, onde se vê, de pé, uma moça. Ela se debruça sobre a balaustrada e sonda o estreito caminho com olhos ansiosos. Que flor, naquelas ruínas! A rosa não é mais louçã, nem se liga com mais graça à sua haste; a flor da macieira, que a brisa agita, não é mais aérea, nem mais graciosa. Escuta o suave ruge-ruge do seu vestido de seda...escuta o que ela murmura baixinho: " Não virá ele?"
- É de Kay que estás falando? - pergunta Gerda.
- Não, ele não figura no meu conto- respondeu a ipoméia.
Que disse a pequena fura-neve?
- Entre os galhos da árvore oscilam duas cordas, às quais está presa uma tábua: é um balanço. nele se embalam duas meninas muito lindas, de vestidos alvos como a neve, e compridos laços verdes no chapéu. O irmão, maior que elas, está de pé no balanço, com os braços passados pelas cordas, para manter o equilíbrio- porque tem uma taça em uma da mãos e na outra um canudinho - e sopra bolhas de sabão. Move-se o balanço e as bolhas sobem no ar, todas irisadas.( O que é irisado: adj. Diz-se do que possui ou foi colorido com as cores do arco-íris. ) ... A última ainda está pousada na ponta da palhinha, e agita-se ao sabor da brisa. O cãozinho negro corre e ergue-se nas patas traseiras: também quer subir ao balanço, mas este não para no seu vaivém, e o cãozinho late, irritado. As crianças o incitam, enquanto as lindas bolhas rebentam e se desfazem.
É muito lindo o que contas- disse Gerda- mas tem uma expressão tão triste...E meu companheiro, o pequeno Kay? Não sabes onde está?
Mas a fura-neve, a campainha branca e minúscula, fica calada.
Que conta o jacinto?
- Eram três lindas irmãs, vestidas de gaze: uma de vermelho, outra de azul e a última de branco. De mãos dadas, dançavam ao luar, à beira do lago tranquilo. Não eram elfos, não: eram da raça dos homens. E que perfume penetrante saturava o ar! As donzelas sumiram-se na mata. Que sucedeu? Que infortúnio caiu as lindas moças? Olha aquele barco que desliza sobre o lago: traz ele três esquifes, que encerram os corpos das donzelas. Dormem as dançarinas do lago? Ou estarão mortas? O perfume das flores diz que estão mortas. E os sinos do crepúsculo dobram a finados.
- Ah! Sombrio jacinto! Tua história é muito lúgrebe! Ela me deixou ainda mais triste...Escuta: meu amigo Kay está morto, como as tuas donzelas? A s rosas dizem que não; e tu, que é que dizes?
- Din, don! Din, don! tangeram as campainhas roxas dos jacintos. Não dobramos pelo pequeno Kay! Nós nunca o vimos! Cantamos apenas a nossa canção - a única que sabemos. Din, don!
Gerda interrogou o dente-de-leão, que se expandia entre as folhas verdes:
- Tu brilhas como um sol pequenino- disse-lhe, - Sabes onde poderei encontrar meu companheiro de brinquedos?
O dente-de-leão brilhava, de fato, sobre a relva; ele entoou uma canção, mas os versos não falavam do pequeno Kay.
- No primeiro dia de primavera, o sol esplendido de Deus Nosso Senhor desceu para aquecer um pequenino patio fundo, deslizando seus raios pela parede branca de uma casa vizinha. junto à parede aparecia a primeira flor amarela do ano, reluzindo como uma moeda de ouro. A velha avó estava sentada na sua cadeira; a neta correu a beijá-la. Ela não era mais que uma pobre criadinha, e ainda assim seu beijo valia mais que todos os tesouros do mundo, porque a menina pusera nele todo o seu coração. E tudo era ouro:
" Ouro - a flor perfumada e louçã
Ouro - a fresca e brilhante manhã!"
E o dente-de-leão continuou:
- Acabou-se a história, e não sei outra.
- Coitada da avózinha! - exclamou Gerda. - Ela me preocupa, aflige-se com a minha falta, como eu com a falta de Kay... Mas breve voltarei a casa, e com ele! De nada vale perguntar a estas flores: elas são muito egoístas, só pensam em si mesmas!
Arregaçou o vestido para poder andar mais ligeiro, e correu direito ao portão do jardim; mas um narciso bateu-lhe nas pernas, quando saltava por cima dele. A menina parou e olhou para a flor de haste comprida, e perguntou-lhe:
- Saberás, acaso, alguma coisa?
Curvou-se para a flor, e...que lhe teria dito o narciso?
- Vejo-me! Vejo-me! E que suave é o meu perfume! Lá bem cima, no sótão, mora a dançarina. Descansa às vezes sobre a ponta de um pé, às vezes sobre as duas. Parece que está pisando a pés o mundo inteiro- e ela não é mais que uma ilusão. Deita água do bule de chá em um pano que tem na mão: é o seu corpete- grande coisa é o asseio! Seu vestido branco está pendurado em um cabide; ela já o lavou também com a água do bule, e estendeu-o no telhado para secar. Veste-o, e põe ao pescoço um lenço amarelo - e o vestido branco parece mais branco. Vê como é tesa, e como ergue a cabeça, equilibrando-se no seu talo esguio! Vejo-me! É o meu retrato!
- E a mim que me importa isso? - replicou Gerda. - É inútil tudo o que me contaste.
E correu para o portão; estava fechado, mas a menina apertou com tanta força a aldrava enferrujada que esta saltou do gancho. Abriu-se a porta, e Gerda saiu correndo, correndo, para o vasto mundo. Três vezes parou e voltou-se, olhando, para trás, mas ninguém a seguia. Cansada de tanto correr, sentou-se em uma grande pedra; olhou então em roda e viu que o verão já tinha passado e que era já o fim do outono. Lá dentro do belo jardim não percebera a fuga do tempo: o sol brilhava lá sempre com o mesmo esplendor, e as estações se confundiam; as flores desabrochavam o ano inteiro.
- Como me demorei! - suspirou ela. - Quanto tempo perdi! Já estamos no outono. Não posso perder mais um minuto!
Levantou-se para continuar a corrida; mas como lhe doíam os membros inteiriçados pela fadiga! Nem o tempo, nem a paisagem a convidavam também a andar. O céu era enuviado e frio. As folhas dos salgueiros já estavam amareladas, e iam caindo de uma em uma. Escorria umidade das árvores, como chuva. Só a ameixeira brava conservava os frutos, mas eram tão ácidos que embotavam os dentes, deixando um travo na boca.
Que frio, e que triste e cinzento era o vasto mundo!
IV - O PRÍNCIPE E A PRINCESA
Viu-se Gerda logo obrigada aparar para descansar de novo: não tinha mais forças para caminhar. E enquanto ela repousa um pouco ali, um grande corvo, empoleirado em uma árvore em frente da menina, olhava-a com curiosidade. A ave agitou a cabeça para um lado e para outro, e, disse:
- Grau! Grau ! G tac! G tac!
É mais ou menos assim que se diz " bom dia" naquele país, mas o pobre animal tinha muito sotaque. Contudo, apesar da má pronúncia, estava gostando da menina, e perguntou-lhe onde ia, assim sozinha pelo vasto mundo.
Gerda não entendeu, de tudo o que o corvo disse, senão a palavra "sozinha"; mas esta, conhecia-a ela muito bem, por experiência própria, e compreendeu o sentido da pergunta do corvo. Fez-lhe, pois, a narração de suas aventuras, e perguntou-lhe se não tinha visto Kay.
Sacudindo, gravemente a cabeça, respondeu o corvo:
- Quem sabe sabe? Talvez! Talvez!
Será possível? - exclamou Gerda, abraçando o corvo, de tão alvoraçada.
E beijou-o, muito contente: e quase o sufocou, de tanto que lhe apertou o pescoço, ao abraçá-lo.
- Mas devagar...mais devagar! - recomendou o corvo. - Creio que o vi...quero dizer: suponho que era ele...sim, pode ser que fosse. Sim, sim, é possível que seja o mesmo, mas não o firmo. Em todo o caso, já não se lembra de ti: só pensa agora na sua princesa.
- Princesa! Então ele mora em casa de uma princesa?
- Sim; escuta! Mas...é tão difícil a tua língua!Se soubesse, grasnar, ou ao menos falar o idioma corvino, eu poderia contar-te tudo, e muito melhor.
- Não...não aprendi essa língua, disse Gerda. Minha avó sim: não só entende, como fala também esse idioma. Ela sabe também palrar, isto é, fala a língua peguenta, que é o dioma das pêgas, como sabes. Pena é que eu não a tivesse aprendido!
- Não faz mal- disse o corvo. - Vou contar-te o caso o melhor que puder; mas desculparás meus erros de gramática, não é?
E contou-lhe o que sabia:
- Reina neste país uma princesa de inteligência prodigiosa. É tão sábia que leu todos os jornais que já foram impressos no mundo; mas a maior prova da sua sabedoria está em que ela esqueceu tudo quanto leu! Ainda pouco tempo estava ela sentada no trono - e, por falar nisso, parece que não é lá coisa tão agradável como parece, senta-se a gente em um trono, e que não basta isso para sermos felizes! - Para se distrair, começou a cantarolar uma canção, aquela que tem um estribilho assim:
"Por que então não me hei de casar?
Por quê? Por quê?"
- E - continuou o corvo- ela disse consigo: " Por que não me hei de casar? "Mas o caso é que ela queria um marido que soubesse conversar, responder às perguntas que lhe fizessem; não queria um desses sujeitos graves e pretensiosos, solenes e cheios de si: são muito enfadonhos. convocou, ao som do gongo, as damas de honor, e participou-lhes a ideia que tivera. E todas elas ficaram muito contentes. E diziam:
" -É encantador! É o que todas nós dizemos todos os dias: Por que a princesa não se casa?
Neste ponto o corvo explicou:
- Podes estar certa de que o que te conto é a pura verdade. Sei tudo isto de minha noiva, que anda à vontade por todo o palácio.
A noiva era naturalmente uma corva; uma corva domesticada, porque os corvos só se casam com corvas. Mas, voltemos à história:
- Todos os jornais do país - continuou o corvo - publicaram então a proclamação; todos eles apareceram naquele dia com uma cercadura de corações em chamas, com as iniciais da princesa. Dizia a proclamação que qualquer moço inteligente e de boa figura podia apresentar-se no palácio e conversar com a princesa: e que o que conversasse melhor, e se mostrasse mais senhor de si e de espírito mais atilado,( Pessoa com aguçada inteligência de análise e compreensão das causas e efeitos.)casaria com ela. Sim, Sim! Podes acreditar no que te digo: tudo se passou como te conto; não estou inventando nada - tão certo como estarmos nós aqui conversando. Ora, apareceram moços às centenas. Mas eram despedidos todos, um por um. Enquanto estavam na rua, fora do palácio, tagarelavam como pêgas. Mas no que entravam pela grande porta, e passavam pela dupla fila de guardas, todos de uniformes cobertos de prata, perdiam logo o aprumo. E quando os lacaios agaloados de ouro os conduziam pela escadaria monumental dos vastos salões, inundados de luz de lustres inumeráveis, os pobres rapazes sentiam as ideias confusas; e uma vez diante do trono, onde a princesa estava sentada, cheia de uma majestade, nada mais sabiam dizer: repetiam, miseravelmente desorientados, a última palavra do que ela acabava de pronunciar ou antes - balbuciavam apenas. Ora, isso não interessava à princesa- ouvir repetir o que ela mesma dissera! Parecia que os pobres moços estavam enfeitiçados, e que um encantamento lhes travava a língua: porque assim que saíam do palácio e se viam na ruas, ao ar livre, recobravam o uso da palavra, e a língua se lhes soltava. Assim foi no primeiro e no segundo dia. Quanto mais gente era despedida, mas aparecia: parecia que brotavam na terra, tamanha era a fluência de pretendentes. Era uma fila imensa, desde as portas da cidade até o palácio.
E o corvo repetia:
- Eu o vi; vi com estes olhos! Os que esperavam na rua a sua vez tiveram tempo de sentir fome e sede. Os mais espertos tinham trazido provisões, mas não caíam na asneira de reparti-la com os vizinhos. E pensava cada um lá consigo. "Que a língua s lhes pegue no céu da boca! Assim não poderão dizer uma palavra à princesa! " E é claro que, vendo um homem meio morto de fome e de sede, ele não havia de querê-lo para marido!
- Mas...e Kay ? - indagou Gerda. - Quando chegou ele? Estava no meio de multidão?
- Mas espera, espera um pouco- disse o corvo.- És muito impaciente! Lá chegaremos. No terceiro dia apresento-se um jovenzinho, que andava a pé. Muitos outros chegavam a cavalo ou de carro, como grãos-senhores. Dirigiu-se para o palácio, muito alegre: parecia vir ali só por divertimento. Tinha os olhos brilhantes como os teus; cabelos louros, compridos e muito lindos, mas vestia como um menino pobre.
- Oh! Era Kay! - gritou Gerda, radiante de alegria. - Achei-o! Enfim, achei-o!
- Levava às costas um saco - continuou o corvo.
- Não : havia de ser o trenó, pois o levou consigo.
- Pode ser - disse o corvo. - Não vi de perto. Mas, segundo me contou minha noiva, que é incapaz de alterar a verdade, quando chegou à porta do castelo, não se sentiu nada intimidado à vista dos porteiros, nem dos guardas de uniforme bordado de prata, nem dos lacaios agaloados de ouro. E quando quiseram que ficasse esperando embaixo, ao pé da escada, foi dizendo logo: " Obrigado; não é nada agradável esperar de pé !" Subiu sem mais detença, e penetrou nos salões deslumbrantes de luzes. Lá dentro viu incensando o trono camaristas e ministros- todos eles calçados apenas de alpercatas, para não fazer barulho. Era bastante para desconcertar um homem não habituado a tanta solenidade, quanto mais a quem, como aquele jovem, sentia as botinas rangeram despropositadamente! Ele, contudo, não se intimidou.
- Sim! Era Kay! Lembrou-me de que quando desapareceu estava com as botinas novas, e que elas rangiam muito - eu mesma as ouvi ranger, naquele dia.
-E faziam um barulho diabólico! - continuou o corvo, - Mas o rapaz, como se aquilo não fosse com ele, caminhou em direção à princesa, que estava sentada sobre uma enorme pérola, do tamanho de uma almofada. Cercavam-na as damas de honor, com suas camareira, e as camareiras das suas camareiras; e todos os cortesãos, com os cavalheiros do seu séquito, e os servidores dos cavalheiros com seus pajens.Toda essa gente rodeava o trono, como disse, e quanto mais próximos da porta, mais orgulhosos se mostravam. E os últimos, que eram pajens dos pajens -aqueles que andam só de alpercatas - eram tão imponentes e tão rebarbativos, que a gente mal ousava encará-los. Mas o rapaz nem se apercebeu da sua presença.
- Havia de ser coisa tremenda, avançar no meio de toda essa Corte! - disse Gerda. - Mas e Kay? Conseguiu ele agradar a princesa?
- Se conseguiu! Digo-te que, não fora eu um corvo, e quem teria casado com ele era eu! Falou tão bem, com tanto espírito, como eu mesmo falo, quando falo o idioma corvino. Minha noiva contou-me tudo. Era um rapaz bonito e amável, e muito desembaraçado. Também não foi lá para pedi-la em casamento, não; disse-o de chegada: queria apenas verificar se a princesa era, de fato, tão espirituosa como diziam. Achou-a encantadora, e ela por sua vez gostou muito dele.
- Sim: não tenho mais dúvida alguma- era Kay! Sabia tantas coisas - até podia fazer cálculos de frações, de cabeça! Era tão esperto! Escuta! Queres levar-me ao palácio?
- Ah! Isso é fácil de dizer, mas por a ideia em prática...é outra coisa! Em todo o caso, vou falar com a minha noiva: talvez ela ache um meio de te introduzir lá dentro; mas torno a prevenir que jamais uma menina como tu - e de mais a mais, descalça- oh! jamais entrou naquele palácio.
- Pois eu hei de entrar! Quando Kay souber que estou lá irá imediatamente me procurar.
- Veremos se é possível. Vamos, que o palácio não fica longe daqui. Ficarás esperando no portão.
E o corvo ergueu a cabeça e bateu as asas. Lá se foi voando, e só voltou ao cair da noite.
- Grau! Grau! - disse ele ao chegar. - Minha noiva envia-te muitos cumprimentos, e este pãozinho, que tirou da cozinha para ti. Lá havia tanto, tanto pão! E ela pensou que havias de ter fome, não? Agora quanto a te apresentares no palácio- nem pensar nisso! Estás descalça, e os guardas recamados de prata, e os lacaios vestidos de brocado não o consentiriam. É impossível! Mas espera, não chores assim: entrarás de qualquer maneira. Minha noiva, que faria tudo para me ser agradável, conhece uma escada de serviço, que vai ter ao quarto de dormir, e ela sabe onde está a chave.
O corvo conduziu a menina pela grande alameda da entrada; e assim como caíam as folhas das árvores, uma por uma, assim também as luzes da fachada do palácio foram-se apagando, uma por uma. E quando tudo ficou às escuras, o corvo levou Gerda para uma porta baixa, que estava entreaberta.
E como palpitava - de angústia e de esperança- o coração da menina! Era como se ela fosse cometer uma falta, assim se esgueirando na sombra, furtivamente. No entanto só queria saber se de fato era Kay quem estava lá dentro. Certo é que já quase nem tinha dúvidas: devia se ele! Aquilo que o corvo dissera-cabelos compridos e brilhantes, olhos vivos e inteligentes, língua desembaraçada- não podia referir-se senão a Kay. Já lhe parecia vê-lo sorrir, como no tempo em que brincavam juntos em casa, à sombra das roseiras.
- Como ele vai ficar contente de me ver! - pensava ela. - E me fará perguntas. E como se comoverá quando eu lhe contar toda a tristeza que reinou na sua casa e na nossa, quando ele desapareceu!
Subiram a escada; no patamar ardia uma pequena lanterna sobre um móvel. Esperava-os a corva domesticada, que dava saltinhos e voltava a cabeça, toda dengosa, para o lado do corvo; Gerda fez-lhe uma reverência, como a avó lhe tinha ensinado.
- Meu noivo falou-me muito bem de ti, boa menina- disse a corva.- E tua vida- Vita, como dizem alguns - comoveu-me muito, e prometi-lhe que te ajudaria. Queres levar a lanterna? Podes seguir-me sem receio: não encontraremos ninguém.
- Mas parece-me que vem alguém atrás de nós- disse a menina.
É que na parede apareciam sombras estranhas: cavalos de crinas compridas e pernas delgada, caçadores, cavaleiros e amazonas elegantes.
- Ah! São os sonhos- explicou a corva domesticada. - Levam os pensamentos de Suas Altezas para as suas correrias e caçadas. E é melhor assim: não acordarão facilmente, e poderás contemplá-los mais de perto. Espero agora que, quando lhes tiveres caído em graça, e te encherem de honras, não te esqueças de nos mostrar um coração generoso.
- Disso tenho toda a certeza- acudiu o corvo do mato.
E via-se bem, por estas palavras, que era um corvo silvestre e nada civilizado: não tinha a experiência da Corte.
Entraram em uma sala, cujas paredes eram forradas de cetim róseo, todo bordado de flores. Os sonhos também passaram por ali, e voltavam a galope; mas iam tão depressa que Gerda não chegou a ver os pensamentos de Suas Altezas, que eles levavam, que eles levavam. Entraram depois em outra sala, e em outra ainda, e cada qual mais magnificente. Era para desorientar qualquer pessoa, todo aquele luxo prodigioso. Mas Gerda apenas lhes deitava um rápido olhar: só pensava em tornar a ver o seu companheiro de brinquedos.
Chegaram por fim ao quarto de dormir. O teto, todo de cristal, formava uma grande coroa de folhas de palmeira. No meio erguia-se uma grossa haste de ouro maciço, que sustentava dois leitos, em forma de lírios: um branco, onde repousa a princesa, o outro cor de fogo, que era o do príncipe. Gerda aproximou-se deste, certa de encontrar o seu amigo Kay. Levantou uma das pétalas cor de fogo, que abaixavam de noite, para abrigar o príncipe, e viu-lhe a nuca: mas o rosto ela não pode ver, por que ele o tapava com os braços. Julgou que era de fato Kay, e chamou-o pelo nome, mantendo a lanterna erguida, para que ele a visse ao abrir os olhos. Os fantasmas do sonho voltaram a todo o galope, trazendo o espírito do moço, que despertou o ergueu a cabeça.
E...não era Kay!
Somente a nuca se parecia com a dele. Contudo não deixava o príncipe de ser também um belo rapaz. Nisto a princesa também ergueu a cabeça, lá no seu leito de lírio branco e perguntou quem estava ali. E Gerda, lavada em lágrimas, contou-lhes toda a sua história, sem esquecer de mencionar tudo quanto os dois corvos tinham feito por ela.
- Coitadinha! - disseram ambos ao mesmo tempo. Louvaram então o procedimento dos corvos, e disseram que não estavam zangados com eles, apesar de terem infringido todas as regras da etiqueta: mas que não tornassem a fazer coisa semelhante: tais liberdades não eram permitidas no castelo; mas daquela vez tinham até merecido uma recompensa. E perguntaram-lhes:
- Que preferem vocês? Um campanário velho, para nele morarem sozinhos, ou uma nomeação para a Côrte, onde ficarão, elevados à dignidades de corvos da câmara real- o que lhes dará direito a todos os restos da mesa?
Os corvos inclinaram a cabeça, em sinal de reconhecimento, e optaram pelo emprego fixo:
- Nossa raça- disseram eles - tem uma velhice muito prolongada, e assim ficaremos certos de que não nos faltará alimento.
Sim: mais valia alguma coisa segura para a velhice, do que a liberdade!
O príncipe fez o que no momento podia em benefício de Gerda: abandonou seu leito, para que ela dormisse ali. E a menina, juntando as mãozinhas, disse:
- Senhor! Como os animais e os homens são bondosos comigo!
Fechou os olhos e pegou no sono - um sono suave e tranquilo, em que lhe apareceram de novo, em sonhos, as visões já entrevistas; mas eram agora os anjos do céu que arrastavam em pequeno trenó, em que ia sentado Kay, que a olhava sorrindo. mas era apenas sonho, porque ao despertar a visão desaparecer.
De manhã vestiram-na de veludo e sedas, dos pés à cabeça. A princesa convidou-a para ficar morando no castelo, onde viveria em contínuas festas: mas Gerda não aceitou: pediu que lhe dessem apenas um carrinho e um cavalo, e também um par de botinas, pois seu único desejo era continuar em busca de Kay pelo vasto mundo.
Recebeu lindas botinas, e também um regalo de pele, para abrigar as mãos; e ficou linda, com o vestido novo. Quando desceu para continuar a viagem achou no pátio um carro flamejante, todo de ouro, que a esperava à porta. Tinha gravadas as armas dos príncipes. A caixa do carro estava cheia de biscoitos, frutas, bolos de gengibre e passas. o cocheiro, o lacaio e o batedor- porque havia até um batedor - todos tinham uniforme bordado de ouro e coroas de ouro à cabeça.
O príncipe e a princesa em pessoa, ajudaram a menina a subir para o carro, e desejaram-lhe boa viagem, com muita gentileza e bondade. O corvo do mato, que tinha casado com a corva, ia acompanhar a menina nas três primeiras léguas de caminho, e sentou-se ao lado dela, porque não lhe agradava ir na traseira do carro, viajando assim de costas. A corva doméstica ficou à porta. E agitava as asas, em despedida.
- Adeus! Adeus! - diziam o príncipe e a princesa.
E a pequena Gerda chorava, e o corvo chorava. Andaram assim três léguas, e então o corvo despediu-se dela- e foi esta a despedida mais triste: como era uma criatura rústica, tinha-se afeiçoado de coração à menina, e doía-lhe muito separar-se dela. Voou para o alto de uma árvore e lá ficou agitando as asas negras, até perder de vista o carro, que resplandecia como um sol de verdade.
V- UM CORAÇÃO CAPRICHOSO
Iam atravessando uma floresta sombria, mas via-se bem o caminho, graças aos reflexos que despedia a carruagem. A luz era tanta que atraiu um bando de ladrões: precipitaram-se para o carro, como moscas engodadas por uma chama.
- Mas é ouro! É ouro puro! - gritava eles.
Apoderaram-se do carro e dos cavalos e mataram o cocheiro, o lacaio e o batedor.
- Que fresca e gordinha esta menina! - disse logo a velha mãe do chefe dos ladrões. - Ve-se logo que foi engordada com nozes!
Era uma velha de bigodes, e com as sobrancelhas tão compridas, que quase lhe tapavam os olhos. E ela continuou a falar, puxando por uma faca, cujo brilho dava calafrios:
- A carne dela há de ser tão tenra como a de um cordeirinho...Vai ser um regalo!
E ergueu a faca fiada, que brilhava com um fulgor sinistro.
Mas no mesmo instante soltou um grito agudo:
- Ai! Ai!
Era a neta, criatura selvagem e feroz, que, dependurada ao pescoço da megera, lhe enterrara os dentes na orelha.
- Criança malvada! - rugia a velha, apresentando-se de novo para degolar Gerda.
- Quero-a para brincar comigo! - disse a rapariga. - Ela me dará aquele regalo e aquele vestido; e vai dormir comigo na minha cama.
E ferrou outra dentada na avó, que de tanta dor deu um salto, retorcendo-se toda. Riam os ladrões, das contorções da velha, e diziam:
- Olha só a velha como dança com a filhota!
- Quero ir de carro! - disse a filha do ladrão.
E foi preciso deixá-la fazer o que queria: era teimosa e autoritária, estragada pelos mimos que lhe davam todos. Subiu pois com Gerda para o carro e lá se foram correndo, saltando por cima de troncos caídos e pedras soltas, por dentro do mato. A nova companheira de Gerda tinha a mesma estatura que ela, mas era mais robusta; seus ombros eram vigorosos, e a tez trigueira. Os olhos negros tinham uma expressão inquieta e tristonha. Ela cercou Gerda com os braços e disse-lhe:
- Não tenhas medo: não te matarão enquanto eu não me aborrecer de ti. Acho que hás de ser uma princesa, não?]
Disse-lhe Gerda que não; e contou-lhe todas as aventuras por que passara, em busca de Kay. A rapariga abriu bem os olhos tristes e sombrios, contemplando com a maior atenção aquela criaturinha frágil, a quem tinha acontecido tanta coisa estranha. Depois sacudiu a cabeça, com um ar de desafio, dizendo:
- Não!Não te matariam, nem que eu me incomodasse contigo: nesse caso eu mesma te mataria!!
Enxugou as lágrimas que corriam dos olhos de Gerda e depois meteu as mãos no regalo, que era quente e macio.
Chegaram enfim ao pátio de um castelo meio arruinado, que servia de esconderijo aos ladrões. Das fendas das paredes saíam voando corvos e outras aves de rapina. Enormes buldogues, capazes de devorar um homem, vieram correndo ao encontro do carro; tinham o ar feroz, e saltavam em roda das meninas; mas aqueles cães não ladravam: isso não lhes era permitido.
Na grande sala toda escalavrada(. Cuja superfície está arruinada, esburacada (parede escalavrada):. ardia uma fogueira sobre as lajes do pavimento; a fumaça subia para o teto em busca de saída - porque não havia chaminé - e rebojava toda, enchendo o enorme salão e escapando enfim por onde podia. No meio da fogueira fervia um caldeirão de sopa, e ao redor dele douravam ao calor do fogo lebres e coelhos, seguros em espetos.
- Esta noite vais dormir comigo e com todos os meus animaizinhos preferidos - disse a filha do ladrão.
Depois de comerem foram acomodar-se em um canto, onde havia um monte de palha e uns tapetes. Espetados pela paredes viam-se vários poleiros, onde posavam mais de cem pombas, que pareciam adormecidas; mas ergueram a cabeça, à aproximação das meninas. Além dos poleiros viam-se também umas grades de sarrafos, que tapavam aberturas da parede.
- São todas minhas! - disse a estranha rapariga, apontando para as aves.
Segurou uma pomba pelas patinhas e sacudiu-a, para obrigá-la a bater as asas. Lançou-a então ao rosto de Gerda, dizendo:
- Dá-lhe um beijo!
E pôs-se a rir da carinha assustada da menina.
- Todas estas pombas são domésticas - explicou ela - mas aquelas que estão naqueles encerros da parede são do mato. Tenho de mantê-las assim engaioladas, senão fugiriam todas. Mas o meu favorito é este, o meu querido Bé!
E ao dizer isto puxou pelos chifres um jovem rangífer (Mammífero ruminante, o mesmo que renna.) que estava amarrado, e trazia ao pescoço uma coleira de cobre bem polido.
- É outro que não posso perder de vista - continuou ela. - Tem de ficar amarrado, senão é capaz de fugir. Todas as noites dou-lhe um pontaço no pescoço com a minha faca, e ele quase morre de medo! É tão divertido!
E a menina cruel tirou de uma fenda da parede uma faca comprida e esfregou-a no pescoço do rangífer. O pobre animal, louco de terror, esticava a corda, escouceava, debatia-se - mas tudo isto causava grande prazer à rapariga. Depois de rir bastante, ela resolveu deitar-se; puxou Gerda para que também se acomodasse a seu lado.
- Ficas assim com essa faca a noite? - perguntou a menina, amedrontada.
- Sempre durmo com ela: a gente nunca sabe o que pode acontecer. Mas conta-me outra vez aquilo que disseste do teu amigo Kay, e o que te aconteceu por esses mundos.
E Gerda recomeçou a sua história; as pombas trocazes arrulavam na gaiola, enquanto as outra dormiam, muito tranquilas.
A filha do ladrão passou um braço pelo pescoço de Gerda e, com a faca segura na outra mão, adormeceu como um cepo. Gerda, porém, não pode pregar olho, vendo-se sempre entre a vida e a morte. Os bandidos, sentados em roda da fogueira, cantavam e bebiam, enquanto a velha megera dançava e dava pulos. Que espetáculo horrível para a pobre Gerda!
De repente as pombas trocazes puseram-se arrular, dizendo:
- Cou...cou...Nós vimos Kay, nós vimos...Uma galinha branca puxava o trenó dele. Kay estava sentado no da Rainha da Neve...Passou pelo mato, onde nós estávamos, ainda muito novinhas, no nosso ninho. O sopro gelado da Rainha da Neve chegou até a nossa árvore, e todos os filhotes morreram: só escapamos nós duas!
- Que é que vocês estão dizendo? - perguntou Gerda. - Para onde foi a Rainha da Neve? Vocês sabem para onde foi ela?
- Sem dúvida foi para a Lapônia, onde há sempre neve e gelo. Pergunto a à rena que está ali amarrada, se queres saber bem de tudo.
- Se há neve e gelo! Mas é esplendido! - rerpondeu a rena. - É tão bom viver na Lapônia!...Lá a gente pode correr livremente por aqueles imensos vales deslumbrantes de brancura. É lá que a Rainha da Neve tem seu palácio de verão. Mas o seu verdadeiro forte, o castelo principal, fica perto do Polo Norte, em uma ilha chamada Spitzberg.
- Oh! Kay, meu pobre Kay! Onde estarás a esta hora? - suspirou Gerda.
- Fica quieta- disse a outra- senão enterro-te esta faca no corpo!
Gerda calou-se; mas pela manhã contou-lhe o que as pombas trocazes tinham dito. A filha do ladrão escutou-a muito séria, fazendo sinais de aprovação com a cabeça, e depois disse:
- Muito bem...
E, voltando-se para o rangífer, perguntou-lhe:
- Sabes onde é a Lapônia?
- Pois não havia de saber! E ninguém o sabe melhor do que eu!
E seus olhos deitavam chispas, à recordação da pátria.
- Foi lá que nasci, foi lá que me criei! Lá vivi os dias mais felizes da minha vida, saltando pelos campos de neve...
- Escuta, Gerda. Todos os homens saíram, e só ficou em casa a minha avó. Ela não sai, mas ali pelo meio-dia bebe um trago daquela garrafa e dorme uma sestinha. Então poderei fazer alguma coisa por ti. Espera!
E a neta da megera saltou da cama para beijar a avó. Puxou-lhe pelo bigode, dizendo:
- Bom dia , minha boa cabra velha! Bom dia!
A velha respondeu assentando-lhe um murro no nariz, que ficou vermelho e inchado; mas tudo aquilo eram manifestações de amizade.
Mais tarde, de fato, a velha bebeu alguma coisa que havia em garrafão, e deitou-se para sestear. Foi a neta ter então com o rangífer e disse-lhe:
- Eu bem queria ficar contigo, e continuar a te dar sustos com a minha faca, porque és tão engraçado quando ficas com medo...Mas o que é que se vai fazer! É preciso que vás à Lapônia; mas olha! Tens de correr a bom correr! leva esta menina ao palácio da Rainha da Neve, onde está seu companheiro de brinquedos. Sabes tudo o que ela me contou, pois estavas acordado, e nos escutavas.
A rena deu um salto, de tão alegre. A rapariga acomodou Gerda nas costas do animal, amarrou-a fortemente, e até forrou o lombo da rena com o seu travesseiro, para que ficasse mais cômodo. Depois disse a Gerda:
- Toma - leva tuas botas de pele, porque lá faz muito frio; eu fico com o regalo: gosto dele, e tão pequenino ...Mas tenho outra coisa aqui. Não quero que fiques com as mãos geladas, não: toma estas luvas da avó; são forradas, e chegam até os cotovelos. Vamos, calça-as...Credo! Agora tens uma manoplas tão horríveis como as da minha cabra velha!
Gerda chorava de alegria.
- Deixa-te de caretas - disse a outra. - Não gosto de te ver chorar. Deves estar mas é muito contente. Toma também isto: dois pães e um pedaço de presunto. Assim não terás fome.
Amarrou as provisões no lombo da rena. Depois foi abrir a porta, chamou os enorme cães para dentro da sala, para que não perseguissem os fugitivos, e cortou a corda do rangífer com a sua faca fiada, dizendo ao animal:
- Agora corre! Mas tem todo o cuidado com a mocinha!
Gerda estendeu-lhe os braços, sepultados nas enormes luvas de pele, e disse-lhe adeus.
E o rangífer partiu como uma flecha, saltando por cima das pedras e dos valados. Atravessou a grande floresta, cruzou pantanais e campinas, e atravessou de novo matos profundos.Os lobos uivavam, os corvos crocitavam, o vento gemia. De repente apareceu um resplendor intenso; parecia que o céu se incendiava todo.
- São as luzes da minha querida aurora boreal - Exclamou a rena, encantada. - Vê como brilham!
E corria, corria, mais depressa, mais depressa...Correu noite dia, e parecia que a energia lhe aumentava ainda. Comeram os pães, comeram o presunto, e quando as provisões já estavam acabadas, chegaram enfim à Lapônia.
VI - A LAPÔNIA E A FINLANDESA
Parou a rena em frente de uma choça pequenina. Era de aparência miserável: o teto quase tocava o chão, e a porta era tão baixinha que para entrar tiveram de se arrastar. Lá dentro encontraram apenas uma mulher lapônia, que cozinhava peixe, Uma lâmpada de azeite iluminava fracamente o pequeno recinto.
Contou-lhe a rena toda a história de Gerda, depois de a inteirar da sua própria, que lhe parecia bem mais notável. Gerda estava tão enregelada, que nem podia falar.
- Coitadinha!- disse a mulher, - Ainda tens muito que andar! São mais de cem léguas pelo interior da Finlândia. É lá que mora a Rainha da Neve; é lá que ela acende todas as noites seus fachos, que parecem fogos de Bengala. Vou escrever em um bacalhau seco- porque não tenho papel e tu o levarás a uma finlandesa que mora lá. Ela dirá o que vocês terão de fazer, porque o sabe melhor que eu.
Enquanto isso Gerda se aquecera. Deu-lhe a lapônia alimentos e bebidas quentes, e foi escrever a sua carta. Entregou depois a Gerda o bacalhau seco, que ela amarrou também ao dorso do rangífer, para que não se perdesse. Sentou-se então a lapônia nas costas do animal, que recomeçou a corrida. Voa que voa! E o céu resplandecia, todo colorido de vermelho e de amarelo. A aurora boreal iluminava o caminho, na noite interminável do Norte.
Chegaram enfim à Finlândia, e, na corrida em que ia, a rena foi bater de encontro à chaminé da finlandesa, cuja casa era enterrada no solo. A mulher acolheu amavelmente os viajantes. Mas que calor lá dentro da toca! Também a mulher estava quase sem roupas. Era anã, e nada asseada - mas muito boa pessoa. Tratou logo de tirar as botas e as luvas de Gerda, e desafogou-lhe as roupas, senão o calor a sufocaria. Teve também o cuidado de por um pedaço de gelo sobre a cabeça do rangífer, para evitar uma apoplexia, e depois tratou de ler o bacalhau seco. Leu e releu, e ainda tornou a ler o que estava escrito ali, até que o soube de cor; atirou então o bacalhau para o caldeirão: vivendo em uma região tão pobre, a finlandesa aprendera cedo a tudo aproveitar, e aquilo servia para comer!
Contou-lhe então a rena a sua história, e depois a de Gerda. E a finlandesa escutava sem nada dizer; apenas piscava de vez em quando os olhinhos inteligentes.
Terminada a narração, disse ainda a rena:
- Tu és muito sagaz: e eu sei que conheces grandes segredos. Podes amarrar, somente com um fiozinho, todos os ventos do mundo; desfazendo um nó, reina bom vento; se desamarra o segundo, o navio navega com grande rapidez; mas se soltares ainda o terceiro e o quarto, desaba tamanha tempestade, que deita por terra as árvores das florestas. Também sabes preparar uma beberagem que dá a força de doze homens. Não quererás dá-la a beber a esta menina, para que ela possa lutar com a Rainha da Neve?
- A força de doze homens...- murmurou a finlandesa.- Sim...é possível! Isso lhe pode ser útil.
Tirou então uma grande pele enrolada, que estava guardada debaixo da cama, desdobrou-a, e pôs-se a ler os caracteres estranhos que lá estavam escritos. E precisava de tanto esforço de atenção para interpretá-los, que o suor lhe escorria da fronte. Por fim já nem queria continuar a leitura, de tão fatigada; mas a rena tornou a implorar com tamanho empenho, por amor de Gerda, e a menina também a encarava com olhos tão suplicantes, tão cheios de lágrimas, que a finlandesa piscou os olhos, e recomeçou a leitura. Ao terminar, levou a rena para um canto, e , depois de lhe aplicar mais gelo à cabeça, disse-lhe em segredo:
- Vejo por estas garatujasf. Desenho rudimentar, malfeito, normalmente sem forma e ilegível. ) que Kay está de fato no palácio da Rainha da Neve. Tem lá tudo quanto deseja: sente-se muito feliz, e acha que não há no mundo inteiro vida melhor que a sua; mas isso provém de uma partícula de vidro que lhe penetrou pelo olho e foi incrustar-se no seu coração: é isto o que lhe desnatura os sentimentos e as ideias. Enquanto essa migalhinha de vidro não for retirada dali, ele não poderá retornar à sua condição de ser humano digno deste nome, e continuará dominado pela Rainha da Neve.
- E tu mesma não podes dar à menina alguma beberagem que lhe empreste o poder de romper o encantamento?
- Não posso dar poder mais forte do que aquele que já possui. Pois não vês que poder ela tem? Não vês que todos os seres - homens e animais- são obrigados a servi-la, e que, tendo partido descalça da terra natal, pode ainda assim atravessar sem perigo metade do mundo? E não é de nós que ela recebe esse poder, não: tem-no ela no coração, e ali o conserva, porque é uma criança inocente, e cheia de bondade. Se ela não conseguir entrar no palácio da Rainha da Neve, e arrancar do coração do menino as duas lasquinhas que tem causado todo o mal, nós de nada lhe serviremos. Tudo o que te resta a fazer é levá-la até a entrada do jardim da Rainha da Neve, que fica a duas léguas daqui. Deixa-a junto à moita de espinheiro de frutos vermelhos, que encontrarás no meio da neve. Então, sem perder tempo a tagarelar com as renas que encontrares pelo caminho, dá volta; e corre a bom correr!
E a finlandesa colocou de novo Gerda no lombo da rena, que disparou como uma flecha.
- Para, rena! - disse Gerda. - Esqueci-me das botinas e das luvas de pele!
É que sentia frio glacial, que cortava a epiderme. Mas a rena não voltou atrás: continuou a galopar sem esmorecer, e só foi parar perto da moita de frutos vermelhos. Então depôs a menina no chão e beijou-a na boca, enquanto lhe escorriam dos olhos grandes lágrimas ardente. E o valente animal tornou a partir, retomando o caminho que andara, e voando que nem vento.
E lá ficou Gerda sozinha, descalça e sem luvas, no meio daquele país inteiramente gelado. Desandou a correr, e avistou todo um regimento de flocos de neve, que vinham vindo. Não caíam do céu, certamente todo iluminado então pela aurora boreal. Corriam em linha reta pelo chão, e iam sempre aumentando de tamanho.
Lembrou-se dos que examinara uma vez com a lente, e que lhe pareceram então tão grandes e simétricos. Pois estes eram bem maiores, e bem mais esquisitos: eram dotados de vida - eram flocos vivos! Eram a guarda avançada da Rainha da Neve, e tomavam as formas mais estranhas. Uns pareciam-se com o porco-espinho, eram horrendos! Outros, feixes de serpentes entrelaçadas, esticando as cabeças para todos os lados; outros assemelhavam-se a ursinhos gorduchos, de pelo crespo. E todos eram de alvura deslumbrante. E avançavam em boa ordem.
E a menina começou a rezar. Repetia o Padre-Nosso, e o frio era tão intenso que seu hálito gelava quando lhe saía da boca, e ela o via diante de si, como uma nuvem. Ia-se condensado, em forma de anjinhos minúsculos, luminosos, que assim que tocavam o chão aumentavam de tamanho. Vinham todos armados de espada e escudo, e de elmo à cabeça. E quando Gerda acabou de dizer o Padre-Nosso, viu-se rodeada de uma legião deles, que descarregava a espada contra os flocos de neve, deixando-os desfeitos, em mil caquinhos.
Então ela pode correr, livre de perigo e já sem medo algum. Os anjos iam-lhe tocando nas mãos e nos pés, para que não ficassem enregelados. E assim ela chegou ao palácio da Rainha da Neve.
Mas vejamos agora o que fora feito de Kay. È certo que não se recordava mais de Gerda; e menos ainda poderia imaginar que ela estivesse mesmo à porta do palácio - tão perto dele!
VIII- O CASTELO DA RAINHA DA NEVE
As paredes do palácio eram feitas da neve que os ventos tinham amontoado; e eles mesmos haviam aberto naquelas muralhas as portas e janelas. Eram mais de cem salões imensos; o maior de todos media algumas milhas de extensão, e todos eram iluminados pelos fogos da aurora boreal. Tudo lá dentro brilhava, cintilava. Mas que vácuo, e que frio!
Jamais havia festa alguma naqueles domínios reais. Teria sido fácil, entretanto, convocar para um baile os ursos brancos, que, ao som da orquestra da tempestade, podiam dançar quadrilhas com aquela sua gravidade austera, que harmonizava tão bem com a solenidade do lugar. Nem tampouco era permitida a entrada às raposas brancas da vizinhança; e menos ainda se consentia que suas damas de companhia se reunissem ali para tagarelar e murmurar da vida alheia, como é de uso na corte de tantos soberanos...Não! Tudo era vasto e vazio naquele palácio da Rainha da Neve; e a própria luz era gelada.
No maior daquele imensos salões que não tinham fim, havia um lago inteiramente gelado, cuja superfície era partida em milhares de milhares de bocados, todos perfeitamente iguais. Era no meio daquele lago gelado que reinava a Rainha de Neve quando voltava de suas correrias. Afirmava ela que o lago era o espelho da sabedoria; e que era aquele o melhor lugar do mundo.
Lá também estava kay, azulado de frio - mas nem dava por isso. Com um beijo a Rainha da Neve afastara dele os tremores de frio; e afinal- seu coração não era já um bloco de gelo? Tinha nas mãos alguns daqueles pedaços de gelo, planos e simétricos, de que se compunha a superfície do lago. Procurava formar com eles alguma figura determinada, movendo-os em todos os sentidos, combinando-os de mil maneiras. Era como um jogo de paciência. Absorto em suas combinações, procurava obter figuras singulares e estranhas. Chamava-se aquilo o grande jogo da sabedoria, muito mais difícil do que o quebra-cabeça chinês.
Aquelas figuras excêntricas, que não se assemelhavam a coisa alguma real, pareciam-lhe maravilhosas; mas era por causa do grão de vidro que tinha no olho.
Compunha assim letras e chegava a formar palavras inteira. Procurava naquele momento compor a palavra ETERNIDADE. Tentava já há muito tempo, sem o conseguir. A Rainha da Neve dissera-lhe um dia:
- Se chegares a formar esta palavra, serás senhor da tua pessoa; dar-te-ei o mundo inteiro, e um par de patins novos.
Mas Kay não conseguia acertar, por mais que se esforçasse. Um dia a Rainha da Neve disse:
- Preciso dar uma volta lá pelos países quentes, Quero espiar nos caldeirões grandes. Quem sabe se a neve dos cimos já não se derreteu! Isso é bom para os limoeiros e as parreiras.
Os caldeirões grandes a que ela se referia eram os vulcões Etna e Vesúvio.
Foi voando pelos ares, e Kay ficou só no imenso salão, curvado sobre os pedaços de gelo. Pensava, imaginava, combinava; como havia de arranjá-los para obter o que queria? E ali ficou imóvel, inerte, como se estivesse também gelado.
Foi então que Gerda entrou pela grande porta do palácio. Montavam guarda na entrada os ventos cortantes; mas Gerda rezou a oração da noite, e eles se acalmaram, e adormeceram. E ela entrou no imenso salão gelado. Avistou Kay: reconheceu-o imediatamente. Correu para ele e abraçou-se ao seu pescoço, gritando cheia de alegria:
- Meu Kay querido! Até que afinal te achei!
Ele continuava calado, duro de frio, têso como uma estaca, de olhos fixos nos pedaços de gelo. Então Gerda chorou; chorou lágrimas ardentes, que caíram sobre Kay e chegaram até o seu coração. Fundiram o gelo que o cobria , de sorte que com o gelo escorreu dele o grãozinho de cristal. Kay levantou a cabeça e olhou para Gerda. E ela cantou, como dantes cantava lá no seu jardinzinho, aquele hino:
" Lá no vale coberto de rosas,
O Menino Jesus nós veremos!"
E Kay, ouvindo-a, rompeu a chorar; chorou tanto, tanto, que as lágrima arrastaram o caquinho de espelho para fora do olho. Então o menino reconheceu Gerda, e gritou, radiante de felicidade:
- Gerda! Minha querida Gerda, onde estiveste todo este tempo?
E, olhando em roda, perguntou ainda!
- E eu? Onde estive eu? E que frio faz aqui! E que deserto é isto , esta imensidão!
Abraçou Gerda, que ria e chorava de felicidade. E aquele grupo que os dois formavam , e que poderia denominar-se"O Amor que protege e salva", oferecia um quadro tão encantador, que até os pedaços de gelo se puseram a dançar de contentes; e quando, cansados, tornaram a atirar-se ao chão para repousar, formaram a palavra ETERNIDADE, a palavra que havia de dar a Kay a liberdade, a terra inteira e patins novinhos.
Gerda beijou-lhe as faces, que logo ficaram coradas; beijou-lhe os olhos, e eles recuperaram o antigo brilho; beijou-lhe as mãos e os pés, que também tornaram à vida: e ele se sentiu forte e animado, cheio de saúde e de alegria. Agora, sim! Agora a rainha da Neve podia vir quando quisesse! Mas Kay não esperou por ela, para reclamar o que tinha prometido: ali estava a sua carta de alforria, escrita com letras resplandecentes, letra de gelo.
Os dois saíram do imenso palácio de mãos dadas. Falaram da avó, da sua infância, das rosas do jardim do telhado. Quando se aproximavam dos lugares, o vento cessava de soprar e o sol aparecia. Na moita de espinheiro, carregada de bagas vermelhas, esperava-os o paciente rangífer, com sua mulher, a rena, que tinha o ubre bem cheio de leite. Elas beberam aquele bom leite quentinho, e depois os dois animais os conduziram à casa da lapônia, que tinha feito roupas novas para eles, e preparara o seu trenó para levá-los.
Instalou-os no trenó e conduziu-os até a fronteira do seu país, onde apareciam já os primeiros brotos verdes. Despediram-se ambos da boa lapônia e do casal de renas, que os tinham levado até lá. Tornaram a ouvir o gorjeio dos passarinhos e entraram na orla dos bosques, cheios já dos verdes rebentos que anunciam a primavera. De repente Gerda avistou um cavalo magnífico, que reconheceu imediatamente: era um dos que a conduziram no carro de ouro! Montada nele vinha uma moça, com um gorro vermelho. Do arção da sela pendiam duas pistolas. Era aquela menina da quadrilha de ladrões. Cansada da vida que levava na floresta, partira para o Norte; se não lhe agradasse o lugar, ora! iria para outro rumo! Visitaria outros países. Ela também reconheceu Gerda- e que encontro cheio de alegria foi o das duas amigas!
Mas a desenvolta rapariga passou a repreender Kay:
- Sim, senhor!És um grande vagabundo! Eu só queria saber se mereces que alguém corra até o fim do mundo por tua causa!
Gerda acariciou as faces da amiga, e, para mudar de assunto, pediu-lhe notícias do príncipe e da princesa.
- Andam viajando pelo estrangeiro.
- E os corvos? -indagou Gerda.
- O do mato morreu; a viúva anda de luto; uns fiapos de lã preta na perna. E vive a se lamentar, e a se queixar de saudades do marido. Mas tudo aquilo é só palavrório! E agora...conta-me as tuas aventuras, e como foi que deste com este fujão!
Gerda e Kay contaram-lhe tudo.
- E a vaquinha Vitória entrou por uma porta e saiu por outra! E acabou-se a história! - disse a moça do gorro.
E estendeu-lhe a mão; prometeu-lhes uma visita, se acaso passasse pela sua cidade, e lá se foi, a correr mundo.
Mas Gerda e Kay continuaram a andar, de mãos dadas: à medida que caminhavam mais bela e mais florida lhe aparecia a primavera, cheia de verdura e de flores. Um dia ouviram o repique dos sinos, e reconheceram os altos campanários da sua cidade. Chegaram a casa, subiram a escada, e entraram no quarto da avó, onde tudo estava como dantes. O relógio da parede continuava a andar: tique-taque, tique-taque, enquanto os ponteiros caminhavam. Mas ao passar pela porta notaram que eram agora gente grande.
Quando abriram a janela viram as rosas que brilhavam, esplendidas, sobre o canal do telhado; e debaixo das roseiras suas banquetas os esperavam. kay e Gerda sentaram-se ali, como outrora. Tinham esquecido, como se esquece um sonho mau, os frios esplendores da Rainha da Neve. A avó, que se aquecia ao sol, lia na sua Bíblia:
" Se naõ vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos Céus."
Kay e Gerda olharam-se e compreenderam de repente as palavras do velho hino:
" Lá no vale coberto de rosas,
O Menino Jesus nós veremos!"
Ficaram ali, muito tempo, de mãos dadas.
Tinham crescido, sim, mas eram ainda crianças- crianças no coração.
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário