domingo, 14 de agosto de 2016

A CORRIDA - CONTOS DE ANDERSEN

 
Havia um prêmio , ou antes, dois prêmios, um grande outro menor, para quem desenvolvesse maior velocidade. Esta, porém, devia ser comprovada não em uma única corrida, mas durante o ano inteiro.
   - Eu ganhei o primeiro prêmio- disse o esquilo. É claro que há de haver justiça, quando temos no júri parentes e bons amigos. Mas o que me parece quase insultante é que a tartaruga tenha obtido segundo!
   - Não, senhor- declarou o poste que assistira à distribuição dos prêmios. - Deve-se considerar também o esforço, a boa vontade. Esta é pelo menos a opinião de muitas pessoas respeitáveis. E eu compreendo perfeitamente isso. É verdade que a tartaruga levou seis meses para atravessar o portal da casa, mas também é certo que se mutilou nessa passagem: na precipitação - porque para ela aquilo foi precipitação - em que ia, quebrou a rótula. Ela se dedicou de corpo e alma a essa corrida, e até correu com a casa nas costas. Ora, tudo isso é muito interessante, e por isso mesmo ela obteve o segundo prêmio.
   - Pois podiam bem ter-me contemplado - disse a andorinha. - Creio que ninguém ainda se mostrou nem mais veloz nem mais impetuosa no vôo. Além disso, quanto tenho viajado, e como vou longe!
    - É mesmo, e é isso que a prejudica - retrucou logo o poste. - A senhora é muito volúvel. Toca sempre a viajar pelo estrangeiro, mal aponta aqui o frio. é uma falta de patriotismo. Por isso não foi possível incluí-la na lista.
    - Então, se eu ficasse o inverno inteiro metida no brejo, se eu dormisse ali todo esse tempo, teria sido considerada no concurso?
    - Se a senhora nos trouxer um atestado da Velha do Brejo, dizendo que dormiu metade do tempo em território da pátria, será tomada em consideração, sim.
    Foi quando se ouviu a queixa da tartaruga:
   - Acho que eu devia ter tido o primeiro prêmio e não o segundo. Sei que o esquilo correu mas foi de puro medo, receando sempre algum perigo. Eu cá fiz da corrida o objetivo da minha vida, e fiquei aleijada em serviço. Se alguém mereceu o primeiro prêmio, fui eu! Mas isso pouco importa; não ando procurando publicidade, nem costumo gabar-me; pelo contrário, desprezo o elogio em boca própria, que até é vitupério.( É o ato de vituperar e significa insultar, censurar, caluniar, difamar ou expor alguém ao insulto, ou a vergonha ...)
   - Pois posso dizer-lhe, com muito acerto, que todos os prêmios, pelo menos no que dependeu do meu voto, foram conferidos com equidade- explicou o velho marco divisório do mato, que fazia parte do júri. - Procedo sempre na devida ordem, com circunspeção e critério. Já tive a honra de fazer parte do júri que distribui os prêmios nada menos de quatro vezes, mas só hoje cheguei a impor a minha opinião. Sempre parti de um princípio determinado: para conferir o primeiro prêmio, regulei-me pelo alfabeto, partindo do começo; e para o segundo, começando do fim. Se querem dar-me um pouco de atenção, explicarei o manejo. Já disse que é este o quinto júri de que faço parte: pois bem, a quinta letra a partir do A, é o E, que é inicial do esquilo, como sabem. Eis por que lhe dei o primeiro prêmio. Ora, a quinta letra, contando do fim para o princípio, é o T( porque o W é o mesmo que dois VV, e o Y vale tanto como um I); veio a suceder, pois, que coube o segundo lugar à tartaruga. no próximo concurso, o F terá o primeiro prêmio, enquanto o segundo lugar tocará ao S. Todas as coisas devem ser feitas com ordem, pois  a gente precisa saber sempre a que se ater.
    Foi quando falou a mula, e falou assim:
   - Eu teria votado em mim mesma, se não fizesse parte do júri. Não devemos levar em conta apenas a velocidade, mas também outras qualidades do indivíduo, como a força de tração, por exemplo. Não era isso, contudo, o que eu queria salientar, nem tampouco a inteligencia do esquilo na fuga, nem a astúcia com que engana os seus perseguidores.Não! Há outro ponto, que não deve ser desdenhado, e ao qual muita gente liga grande importância; refiro-me ao que chamamos estética. Eu tenho em  vista, antes de tudo, a beleza. Olhei para as orelhas do esquilo,tão lindas, tão bem conformadas...Dá prazer, na verdade, ver aquelas orelhas- sem falar na cauda! Tive a impressão de me ver a mim mesma nos tempos da infância. E foi assim que dei o meu voto ao esquilo.
    - Zzzz...-  disse a mosca. - Eu cá quero fazer discurso. Só o que pretendo é dizer uma coisa. Só o que pretendo é dizer que já alcancei mais de um esquilo na corrida. Ainda há pouco tempo esmaguei as pernas traseiras de um esquilo novo, ainda filhote. ia sentada na locomotiva, na frente do trem. Costumo viajar assim, porque é como a gente controla melhor a própria velocidade. Durante o certo tempo ia um esquilo ainda novo correndo diante da locomotiva. Nem de leve imaginava a minha presença ali. Mas afinal, teve de interromper a corrida e sair dos trilhos. foi quando a locomotiva lhe esmigalhou as pernas traseiras, só porque eu ia sentada ali. O esquilo lá ficou deitado, mas eu continuei a corrida. E isso é o que eu entendo por vencer. Mas conto só por contar: não faço caso do prêmio; nem preciso dele!
    E enquanto isso, a roseira brava ia falando de si consigo. Ela não dizia nada em voz alta, porque é contrário à sua natureza dar opinião; ia, pois, dizendo lá consigo:
    - No meu entender, quem merece o primeiro premio é o raio de  sol. O primeiro e também o segundo. O raio de sol voa em um abrir e fechar de olhos, percorrendo todo o imenso espaço que nos separa do firmamento, e chega ao pé de nós ainda com tanta força, que desperta a natureza inteira. E a sua beleza dá cor e perfume às rosas. Ao que parece, os membros do júri nem deram tino disso...Ah! Se eu fosse o raio de sol, havia de aquece-los, até que ficassem torrados! Mas afinal, isso só serviria para os deixar pretos e, se quiserem, que fiquem pretos de outra maneira. O melhor é não dizer nada...Na mata reina a paz.É uma coisa esplendida estar em flor, perfumar, e viver em cânticos e lendas! Seja como for, o raio de sol, pelo menos, há de sobreviver a todos nós.
   Nisto a minhoca, que estivera todo o tempo do julgamento a dormir, chegou e perguntou:
    - Mas afinal, de que consta o primeiro prêmio?
   - Consta do acesso livre a uma horta onde há também aveleiras e nogueiras - respondeu  a mula. - Foi minha a proposta. Como o esquilo tinha de ganhar, eu, como membro sisudo e ponderado do júri, considerei a utilidade que teria esse prêmio para o vencedor, Tem ele agora aquilo do que precisa. Quanto à tartaruga, terá o direito de ficar perto do portão, e de saborear o musgo, e gozar a luz do sol. Além disso, ela foi nomeada juiz de corridas. É de muita utilidade ter a gente um perito nessas coisas a que os homens chamam comissão. Eu, por mim, espero muito do futuro, pois que tivemos um excelente começo!
FIM


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