Era no mês de maio. Ainda soprava frio o vento, mas árvores e arbustos, campo e prados, diziam:
- Chegou a primavera! Chegou a primavera!
As cercas vivas cheias de flores. E a própria primavera se anunciava, falando da copa de uma macieirinha nova, da qual pendia um único galho, fresco e florido, carregado de botõezinhos rosados prontos para desabrochar.
O galho sabia bem que era muito lindo: são coisas que se sente, tanto na folha como no sangue; por isso não se surpreendeu ao ver que uma carruagem de luxo parava em frente da macieira, nem ao ouvir a jovem condessa dizer que" um galho de macieira era a coisa mais linda do mundo, era a própria primavera na sua manifestação mais esplêndida".
Quebraram o galho e deram-no à condessa; ela o levou, fazendo-lhe sombra com o guarda-sol de seda. E lá foi ele para o castelo cheio de salas magnificas e quartos suntuosas. Nas janelas enfumavam-se ao vento cortinas alvíssimas. Vasos brilhantes e transparentes ostentavam flores viçosas. Em um desses vasos, que aparecia talhado em neve recém-caída, puseram o galho de macieira, entre frescos e luzidios ramos de faia. E vê-lo ali era um prazer para os olhos.
Ora, isso tornou o galho orgulhoso, o que é simplesmente humano.
Naquela sala entrava gente de toda a espécie, e cada pessoa exprimia s sua admiração, segundo a própria importância. Algumas nada disseram; outras disseram demais. O galho de macieira entendeu que havia uma diferença entre as plantas. E pensava lá entre si:
- Algumas servem para adorno, outras para alimentação; há plantas que até podem ser inteiramente dispensadas.
E como ficava em frente da janela, de onde avistava o jardim e o prado, não lhe faltavam plantas para contemplar, despertando-lhe as cismas: havia ali ricas e pobres, e até algumas das mais humilde plantinhas.
- Aquelas pobres ervilhas deserdadas! - dizia o galho florido. - Há uma diferença, não há negá-lo! Como não se sentirão infelizes, se semelhante gente é capaz de sentir, como eu e os da minha casta! Existe uma diferença, não há dúvida; mas é preciso estabelece-la, senão todos seriam iguais.
E o galho de macieira olhava com particular compaixão para umas flores que brotavam em grande quantidade nos campos e nas valetas. Ninguém jamais as reunia em um ramalhete, porque eram muito vulgares. Havia-as até entre as pedras do passeio, nas ruas. Brotavam por toda a parte, como as ervas daninhas da pior espécie, e tinham o feio nome de " flor de cachorro"; mas também lhe chamam dente-de-leão. Seu nome verdadeiro é taraxaco.
- Pobre flor desprezada! Não tens culpa de te haverem dado um nome tão sem graça. Mas é assim mesmo, tanto entre as plantas, como entre os homens. Deve haver uma diferença...
- Diferença...- repetiu o raio de sol.
E beijou o galho florido; mas também beijou a flor de cachorro lá fora, no prado. E todos os irmãos do raio de sol beijaram as flores, tanto as pobre como as ricas.
O galho de macieira jamais pensara no amor infinito que Deus dedica a tudo quanto vive e se agita no mundo; jamais pensara em quanta beleza pode estar oculta, porém não esquecida; e isso também é humano.
Mais o raio de sol - um raio de luz! - esse sabia-o, sim. E disse:
- Não enxergas ao longe; não vês as coisas com nitidez. Que erva desprezada é essa, cujo destino lamentas tanto?
- O dente-de-leão - disse o galho. - Nunca pessoa alguma faz ramalhetes dela. É pisada aos pés. Elas crescem em quantidade excessiva, e quando dão sementes, estas saem voando pelas estradas, como fiapos de lá, e se dependuram na roupa das pessoas. É uma erva daninha! Mas também, essas devem viver...Ah! Dou na verdade muitas graças a Deus por não ser uma flor daquelas!
Vinha pelo prado um grupo de crianças. A menorzinha era ainda tão pequenina, que vinha nos braços de outra maior. Quando a sentaram na grama, no meio das flores amarelas, riu, contente, agitando as perninhas, resolvendo-se no chão; e pôs-se a colher flores, mas colhia somente daquelas amarelhinhas, e beijava-as, com a maior inocência. As maiores colhiam também daquelas flores, mas com toda a comprida haste; dobravam-nas em forma de laçada, e iam formando elos, que se uniam em cadeias. Ornavam com elas o pescoço, depois puseram outras nos ombros, e no peito. Enfim, era um encanto de cadeias verdes! Mas as mais crescidas apanhavam cuidadosamente as longas hastes que já tinham acabado de florescer, e que agora ostentavam uma coroa de sementes penugentas: uma coroa fofa, aérea, autentica obra de arte, que se diria feita das plumas mais finas, ou de flocos delicados, E erguiam-nas no ar, para desnudá-las com um único sopro: quem o conseguisse- afirmava-o a avó- ganharia vestido novo antes do fim do ano.
E a flor desprezada era agora profeta.
- Estás vendo? - perguntou o raio de sol. - Estás vendo quanta beleza e quanto poder?
- Pois sim ! Poder sobre as crianças! - retrucou o galho de macieira.
Nisto entrou no prado uma velha. Trazia uma faca já embotada e sem cabo, com a qual pretendia arrancar algumas raízes daquela mesma planta. Algumas, depois de fervidas, lhe serviriam como substituto do café; as outras, iria vende-las na farmácia, para ganhar alguns niqueis.
Mas a beleza - dizia o galho de macieira - é coisa superior. Só os eleitos entram no reino do belo. Há uma diferença entre as plantas, do mesmo modo que há diferenças entre os homens.
O raio de sol falou do imenso amor de Deus, que se manifesta na criação de tudo quanto tem vida, e na distribuição igual das coisas na existência temporal e na eternidade.
- Isso é o que tu pensas! - respondeu o galho.
Entraram naquele momento na sala algumas pessoas, e entre elas a jovem e bela condensa - a mesma que pusera o galho de macieira no vaso transparente, onde se mirava a luz do sol. Tinha na mão uma flor - ou coisa semelhante; um objeto, enfim, que abrigava atrás de algumas grandes folhas, para furtá-lo a alguma corrente de ar ou sopro de vento. Trazia-o com maior cautela do que a que dispensara ao galho de macieira. Afastou com cuidado as grande folhas, e apareceu a linda coroa de sementes penujosas, a coroa da desprezada flor amarela, e o dente-de-leão, a flor de cachorro.
Era aquela a flor que colhera com tanto carinho, que trouxera com tamanho cuidado, para que não perdesse nem uma só das delicadas setas emplumadas que formam o vulto nebuloso, e que parecem soltas ao redor do núcleo. Conseguira a condessa trazê-la intata. E admirava-lhe agora as bela linhas, a transparência aérea, a formosura frágil, que sucumbe ao sopro da brisa.
- Vejam como Deus a fez maravilhosamente bela! - disse a moça. - Quero pintá-la ao lado do galho de macieira, que todos acham, tão lindo. Mas esta flor humilde recebeu também de Deus, embora de outra maneira, os mesmos dons. Ainda que diferentes, são ambos filhos do reino da beleza.
O raio de sol beijou a flor singela e o galho da macieira cheio de flores, cujas pétalas pareciam corar...
FIM
Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
quinta-feira, 25 de agosto de 2016
O COLARINHO - CONTOS DE ANDERSEN
Era uma vez um janota(Pessoa que se veste com esmero; elegância exagerada fora de contexto, almofadinha, bolado)., cujos bens consistiam apenas em uma abotoador de sapatos e uma escova de cabelo; mas ele possuía o mais elegante colarinho do mundo, e vamos ouvir agora a história deste mesmo colarinho. Ele já estava tão velho que andava pensando em casar, e um dia aconteceu-lhe encontrar na tina uma liga.
- Valha-me Deus! - gritou o colarinho. - Nunca vi ninguém tão esbelto, tão delicado, tão elegante como a senhora! Seria muita ousadia perguntar-lhe seu nome?
A liga não respondeu.
- Onde mora a senhora? - indagou o colarinho.
Mas aquela loga era tímida por natureza, e não sabia que resposta havia de dar.
- Suponho que seja um cinto - disse o colarinho - um cinto para apertar roupas interiores. Vejo que a senhora tanto serve para prestar serviço como para enfeite, minha pequena dama:
- O senhor não deve falar comigo! Não lhe dei nenhum motivo para isso!
- Quando uma pessoa é tão linda como a senhora, já deu motivo que chegue, não acha?
- Vá embora! Não se chegue assim para mim - disse a liga. - O senhor não parece muito bem-educado...
- Sou um cavalheiro fino, ah! isso eu sou! Possuo um abotoador de sapatos e uma escova de cabelo.
Ora, isso não era verdade, porque o seu senhor que possuía aqueles objetos. Mas ele era um gabolas(. contador de vantagem, loroteiro, mentiroso, sabe de tudo, entende de tudo, fanfarrão.)
- Não se aproxime! - disse a liga.- Não estou habituada a semelhante procedimento! - Que tolice ridícula! - exclamou o colarinho.
E nesse momento se viram fora da tina. Depois o colarinho foi para a tábua de engomar . E veio então o ferro.
- Senhora viúva - cumprimentou o colarinho,- Peço-lhe que aceite as minhas homenagens!
- Este esfarrapado! - disse o ferro, passeando, todo orgulho, sobre o colarinho.
É que o ferro se julgava uma máquina a vapor, que rola pelos trilhos, e vai puxando carros. Por isso chamou-lhe esfarrapado. Era um simples ferro de engomar, mas o colarinho, supondo que fosse uma passadeira, chamava-o de senhora.
Como as beiras do colarinho estavam já um tanto esfiapadas, foi preciso recorrer à tesoura, para apará-las.
- Oh! - disse logo o colarinho - a senhora deve ser uma dançarina de primeira classe. Como ergue bem a perna! Nunca vi ninguém tão elegante na minha vida! Nenhuma criatura humana poderia imitá-la.
- Também o creio - respondeu a tesoura.
- A senhora merecia ser condensa! Eu, só o que possuo no mundo é uma janota, um abotoador de sapatos e uma escova de cabelos. Quem me dera ter um condado, para depô-lo a seus pés!
- O quê! Mas ele tem a ousadia de me cortejar- disse a tesoura, indignada.
E deu um corte tão violento, que deixou o colarinho em estado de ir para o cisco. E ele ficou a pensar:
- Então vou fazer minha proposta à escova de cabelo. Mas...que lindo cabelo a senhora tem, minha menina! Nunca pensou em contratar casamento?
- O senhor bem pode imaginar que hei de ter pensado nisso; sou noiva de abotoador de sapatos.
- Noiva! - brandou o colarinho.
Agora não havia mais ninguém a quem pudesse fazer a corte; resolveu, pois, desprezar tudo quanto fosse galanteio.
Muito tempo depois, estava ele dentro de um saco, na fábrica de papel. Não lhe faltava companhia, pois havia ali muito trapo: finos e grosseiros, reunidos em bandos separados, naturalmente. Tinham todos muita coisa que contar, mas ninguém como o colarinho, que era um grande gabolas.
- Eu tive muitas noivas - dizia ele. - Elas não me deixavam viver sossegado. Mas devo confessar que era um fino cavalheiro, e de muito boa figura. Tinha um abotoador, e uma escova, que nunca usava. Queria que me vissem naquele tempo! Nunca hei de esquecer meu primeiro amor! Era uma cinta. Tão linda, tão macia, tão elegante! Atirou-se em uma tina de lavar por minha causa. Havia também uma viúva, que se apaixonou por mim; mas eu não a quis, e ela chegou a ficar preta, de tão zangada. Depois foi uma dançarina de alto coturno, que me fez o ferimento de que ainda sofro: era uma criatura tão impulsiva! Até a minha escova de cabelo pretendeu casar comigo, e ficou tão desgostosa com a minha indiferença, que perdeu todo o cabelo. Sim, tive muitas aventuras dessa espécie; mas o que mais me comoveu foi a liga - quero dizer, a cinta - que se lançou na tina da barrela...Tenho muita coisa na consciência, e é mais que tempo de ser clareado, e convertido em papel.
E foi nisto mesmo que veio a dar o colarinho. Todos os farrapos foram transformados em papel branco, e talvez seja hoje este mesmo pedaço de papel em que está impressa esta história. Seria um bom castigo por ter-se jactado tão desavergonhadamente de coisas que jamais aconteceram! Vamos pois dar atenção a esta advertência, para não lhe seguir o exemplo. A não ser assim- como saber se não havemos de ser metidos dentro de um saco de trapos, e transformados em papel, sobre o qual toda a nossa história, passagens secretas e tudo, há de ser impressa, e nós obrigados a circular, e a contá-la a todo o mundo , como aconteceu àquele colarinho?
FIM
- Valha-me Deus! - gritou o colarinho. - Nunca vi ninguém tão esbelto, tão delicado, tão elegante como a senhora! Seria muita ousadia perguntar-lhe seu nome?
A liga não respondeu.
- Onde mora a senhora? - indagou o colarinho.
Mas aquela loga era tímida por natureza, e não sabia que resposta havia de dar.
- Suponho que seja um cinto - disse o colarinho - um cinto para apertar roupas interiores. Vejo que a senhora tanto serve para prestar serviço como para enfeite, minha pequena dama:
- O senhor não deve falar comigo! Não lhe dei nenhum motivo para isso!
- Quando uma pessoa é tão linda como a senhora, já deu motivo que chegue, não acha?
- Vá embora! Não se chegue assim para mim - disse a liga. - O senhor não parece muito bem-educado...
- Sou um cavalheiro fino, ah! isso eu sou! Possuo um abotoador de sapatos e uma escova de cabelo.
Ora, isso não era verdade, porque o seu senhor que possuía aqueles objetos. Mas ele era um gabolas(. contador de vantagem, loroteiro, mentiroso, sabe de tudo, entende de tudo, fanfarrão.)
- Não se aproxime! - disse a liga.- Não estou habituada a semelhante procedimento! - Que tolice ridícula! - exclamou o colarinho.
E nesse momento se viram fora da tina. Depois o colarinho foi para a tábua de engomar . E veio então o ferro.
- Senhora viúva - cumprimentou o colarinho,- Peço-lhe que aceite as minhas homenagens!
- Este esfarrapado! - disse o ferro, passeando, todo orgulho, sobre o colarinho.
É que o ferro se julgava uma máquina a vapor, que rola pelos trilhos, e vai puxando carros. Por isso chamou-lhe esfarrapado. Era um simples ferro de engomar, mas o colarinho, supondo que fosse uma passadeira, chamava-o de senhora.
Como as beiras do colarinho estavam já um tanto esfiapadas, foi preciso recorrer à tesoura, para apará-las.
- Oh! - disse logo o colarinho - a senhora deve ser uma dançarina de primeira classe. Como ergue bem a perna! Nunca vi ninguém tão elegante na minha vida! Nenhuma criatura humana poderia imitá-la.
- Também o creio - respondeu a tesoura.
- A senhora merecia ser condensa! Eu, só o que possuo no mundo é uma janota, um abotoador de sapatos e uma escova de cabelos. Quem me dera ter um condado, para depô-lo a seus pés!
- O quê! Mas ele tem a ousadia de me cortejar- disse a tesoura, indignada.
E deu um corte tão violento, que deixou o colarinho em estado de ir para o cisco. E ele ficou a pensar:
- Então vou fazer minha proposta à escova de cabelo. Mas...que lindo cabelo a senhora tem, minha menina! Nunca pensou em contratar casamento?
- O senhor bem pode imaginar que hei de ter pensado nisso; sou noiva de abotoador de sapatos.
- Noiva! - brandou o colarinho.
Agora não havia mais ninguém a quem pudesse fazer a corte; resolveu, pois, desprezar tudo quanto fosse galanteio.
Muito tempo depois, estava ele dentro de um saco, na fábrica de papel. Não lhe faltava companhia, pois havia ali muito trapo: finos e grosseiros, reunidos em bandos separados, naturalmente. Tinham todos muita coisa que contar, mas ninguém como o colarinho, que era um grande gabolas.
- Eu tive muitas noivas - dizia ele. - Elas não me deixavam viver sossegado. Mas devo confessar que era um fino cavalheiro, e de muito boa figura. Tinha um abotoador, e uma escova, que nunca usava. Queria que me vissem naquele tempo! Nunca hei de esquecer meu primeiro amor! Era uma cinta. Tão linda, tão macia, tão elegante! Atirou-se em uma tina de lavar por minha causa. Havia também uma viúva, que se apaixonou por mim; mas eu não a quis, e ela chegou a ficar preta, de tão zangada. Depois foi uma dançarina de alto coturno, que me fez o ferimento de que ainda sofro: era uma criatura tão impulsiva! Até a minha escova de cabelo pretendeu casar comigo, e ficou tão desgostosa com a minha indiferença, que perdeu todo o cabelo. Sim, tive muitas aventuras dessa espécie; mas o que mais me comoveu foi a liga - quero dizer, a cinta - que se lançou na tina da barrela...Tenho muita coisa na consciência, e é mais que tempo de ser clareado, e convertido em papel.
E foi nisto mesmo que veio a dar o colarinho. Todos os farrapos foram transformados em papel branco, e talvez seja hoje este mesmo pedaço de papel em que está impressa esta história. Seria um bom castigo por ter-se jactado tão desavergonhadamente de coisas que jamais aconteceram! Vamos pois dar atenção a esta advertência, para não lhe seguir o exemplo. A não ser assim- como saber se não havemos de ser metidos dentro de um saco de trapos, e transformados em papel, sobre o qual toda a nossa história, passagens secretas e tudo, há de ser impressa, e nós obrigados a circular, e a contá-la a todo o mundo , como aconteceu àquele colarinho?
FIM
segunda-feira, 22 de agosto de 2016
PAROLICE DE CRIANÇAS - CONTOS DE ANDERSEN
Em casa do comerciante mais rico da cidade reunira-se um grupo de crianças- crianças de famílias abastadas, filhas de gente de trato.
O negociante era homem instruído; fizera exames. Assim o determinara seu pai, que começara a vida como tropeiro. Ativos e honestos, pai e filho prosperavam.
O negociante não era apenas inteligente e capaz: tinha também coração. Iam à sua casa pessoas bem-postas, pessoas de origem nobre, pessoas distintas pelo espirito. Umas tinham ao mesmo tempo o espirito e o nascimento; outras não possuíam por si nem uma nem outra coisa.
Naquela tarde havia na casa do negociante uma reunião de crianças. Essas criaturinhas tagarelavam, tagarelavam o mais que podiam, e diziam com toda a franqueza o que pensavam.
Entre elas estava uma meninazinha de beleza fora do comum. Mas como era presunçosa! A culpa cabia à criadagem, que a estragava com tanta lisonja. Os pais, ao contrário, eram pessoas de muito bom-senso, e não se orgulhavam da sua nobreza mais do que convinha. O pai era camareiro real. É uma alta posição, não há dúvida. Sabia-o a menina, que dizia às camaradinhas:
- Sou filha da câmara do rei!
Poderia também ter sido uma filha de adega: isso não dependia dela. Não cessava de repetir, contudo, às outras crianças, que era bem-nascida:
- Quando a pessoa não é bem-nascida, não pode a coisa alguma. Nem que saiba ler e escrever, nem aprenda bem as lições - é tudo trabalho perdido: não há remédio nenhum! E os que tem um sen no nome?...*Esses então nunca podem ser nada, nada, nada! Quando essa gente se aproxima de nós, temos de firmar bem os punhos na cinta para afastá-la.
E ela apoiava as lindas mãozinhas nas ancas, procurando fazer os cotovelos bem pontudos, para mostrar de que maneira era preciso afastar os plebeus. E que figurinha deliciosa era então aquela, com aqueles bracinhos tão pequeninos!
Mas a filhinha do negociante irritou-se ao ouvir tais palavras. Seu pai chamava-se Petersen; ela não consentia que os sen fossem considerados daquela maneira. E, assumindo o tom mais altaneiro que pode, retrucou:
- Sabes que meu pai é bastante rico para comprar cem cruzeiros de bombons e atirá-los às crianças da rua ? E o teu, pode fazer a mesma coisa?
- Mas escuta! - acudiu a filha de um homem de letras. - O meu pai pode botar o teu e todos os outros no jornal. Todo o mundo tem medo dele...dele e do seu jornal! A mamãe diz que ele é uma potência!
E as crianças todas se empertigavam, encarando-se uma às outras, com ares de superioridade.
Lá fora, pela porta entreaberta, um rapazinho pobre espiava as maravilhas da festa. Valia tão pouco neste mundo, que nem sequer lhe era permitido entrar para ver mais de perto. Tinha dado uma demão à cozinheira, cuidando do espeto, e em recompensa teve licença de ir olhar a assembleia daquelas crianças vestidas com tanto esmero. Era já grande felicidade para ele.
Ouvira o que diziam as meninas, e sentiu-se então acabrunhado de tristeza. Seus pais, muito pobres, não tinham nem título, nem tesouro, nem jornal, nem nada; e - o que era muito pior- o nome de seu pai, o seu nome, acabava em sen. Toda a esperança estava, portanto, perdida; nunca chegaria a nada no mundo!
Entretanto, parecia-lhe impossível que não fosse bem-nascido, pois lhe tinham dito até qual fora o dia do seu nascimento. Mas isso, ao que parecia, não era bastante.
II
Muitos anos se passaram. Todas aquelas crianças cresceram; são agora gente grande.
Na cidade ergueu-se uma casa magnífica, ou antes, um palácio, cheio de objetos de arte. Todos os habitantes desejam visitar o palácio, e é uma honra ser admitido lá dentro. Vem de longe uma multidão de forasteiros para admirar todas aquelas maravilhas.
Pois esse palácio é a morada de uma daquelas crianças de quem acabamos de falar.
A qual delas pertencerá o palácio?
Pertence ao rapazinho pobre, que outrora escutava atrás da porta. Aquele menino veio a ser alguma coisa, apesar de ter um nome terminado em sen. É Thorwaldsen, e célebre escultor.
E as outras três crianças, aquelas meninazinhas tão orgulhosas do nascimento, da riqueza, da influência dos pais? Que foi feito delas? Que são hoje? Não sei muito bem. Estão aí, na multidão desconhecida. Sem dúvida não foram infelizes, pois que tinham sido bem dotadas pela natureza; mas já devem ter visto que tudo quanto disseram naquela tarde não passava de parolice de crianças.
FIM
O negociante era homem instruído; fizera exames. Assim o determinara seu pai, que começara a vida como tropeiro. Ativos e honestos, pai e filho prosperavam.
O negociante não era apenas inteligente e capaz: tinha também coração. Iam à sua casa pessoas bem-postas, pessoas de origem nobre, pessoas distintas pelo espirito. Umas tinham ao mesmo tempo o espirito e o nascimento; outras não possuíam por si nem uma nem outra coisa.
Naquela tarde havia na casa do negociante uma reunião de crianças. Essas criaturinhas tagarelavam, tagarelavam o mais que podiam, e diziam com toda a franqueza o que pensavam.
Entre elas estava uma meninazinha de beleza fora do comum. Mas como era presunçosa! A culpa cabia à criadagem, que a estragava com tanta lisonja. Os pais, ao contrário, eram pessoas de muito bom-senso, e não se orgulhavam da sua nobreza mais do que convinha. O pai era camareiro real. É uma alta posição, não há dúvida. Sabia-o a menina, que dizia às camaradinhas:
- Sou filha da câmara do rei!
Poderia também ter sido uma filha de adega: isso não dependia dela. Não cessava de repetir, contudo, às outras crianças, que era bem-nascida:
- Quando a pessoa não é bem-nascida, não pode a coisa alguma. Nem que saiba ler e escrever, nem aprenda bem as lições - é tudo trabalho perdido: não há remédio nenhum! E os que tem um sen no nome?...*Esses então nunca podem ser nada, nada, nada! Quando essa gente se aproxima de nós, temos de firmar bem os punhos na cinta para afastá-la.
E ela apoiava as lindas mãozinhas nas ancas, procurando fazer os cotovelos bem pontudos, para mostrar de que maneira era preciso afastar os plebeus. E que figurinha deliciosa era então aquela, com aqueles bracinhos tão pequeninos!
Mas a filhinha do negociante irritou-se ao ouvir tais palavras. Seu pai chamava-se Petersen; ela não consentia que os sen fossem considerados daquela maneira. E, assumindo o tom mais altaneiro que pode, retrucou:
- Sabes que meu pai é bastante rico para comprar cem cruzeiros de bombons e atirá-los às crianças da rua ? E o teu, pode fazer a mesma coisa?
- Mas escuta! - acudiu a filha de um homem de letras. - O meu pai pode botar o teu e todos os outros no jornal. Todo o mundo tem medo dele...dele e do seu jornal! A mamãe diz que ele é uma potência!
E as crianças todas se empertigavam, encarando-se uma às outras, com ares de superioridade.
Lá fora, pela porta entreaberta, um rapazinho pobre espiava as maravilhas da festa. Valia tão pouco neste mundo, que nem sequer lhe era permitido entrar para ver mais de perto. Tinha dado uma demão à cozinheira, cuidando do espeto, e em recompensa teve licença de ir olhar a assembleia daquelas crianças vestidas com tanto esmero. Era já grande felicidade para ele.
Ouvira o que diziam as meninas, e sentiu-se então acabrunhado de tristeza. Seus pais, muito pobres, não tinham nem título, nem tesouro, nem jornal, nem nada; e - o que era muito pior- o nome de seu pai, o seu nome, acabava em sen. Toda a esperança estava, portanto, perdida; nunca chegaria a nada no mundo!
Entretanto, parecia-lhe impossível que não fosse bem-nascido, pois lhe tinham dito até qual fora o dia do seu nascimento. Mas isso, ao que parecia, não era bastante.
II
Muitos anos se passaram. Todas aquelas crianças cresceram; são agora gente grande.
Na cidade ergueu-se uma casa magnífica, ou antes, um palácio, cheio de objetos de arte. Todos os habitantes desejam visitar o palácio, e é uma honra ser admitido lá dentro. Vem de longe uma multidão de forasteiros para admirar todas aquelas maravilhas.
Pois esse palácio é a morada de uma daquelas crianças de quem acabamos de falar.
A qual delas pertencerá o palácio?
Pertence ao rapazinho pobre, que outrora escutava atrás da porta. Aquele menino veio a ser alguma coisa, apesar de ter um nome terminado em sen. É Thorwaldsen, e célebre escultor.
E as outras três crianças, aquelas meninazinhas tão orgulhosas do nascimento, da riqueza, da influência dos pais? Que foi feito delas? Que são hoje? Não sei muito bem. Estão aí, na multidão desconhecida. Sem dúvida não foram infelizes, pois que tinham sido bem dotadas pela natureza; mas já devem ter visto que tudo quanto disseram naquela tarde não passava de parolice de crianças.
FIM
O FUNDÃO DO SINO - CONTOS DE ANDERSEN
Ding- Ding! Ding-dong!
O som sobe do "Fundão do Sino". no ribeiro de Odense. Não há criança na velha cidade de Odense, na ilha de Fiônia, que não conheça aquele riacho, que rega os jardins que rodeiam a cidade. Corre da represa ao moinho, passando por baixo das pontes de madeira. Florescem nas suas águas os lírios amarelos, que o povo chama botões do ribeiro; e crescem também ali o juncos de penacho castanho; e tifas escuras e aveludadas, de grande porte. Junto do Campo do Monge, e da Lavanderia, os salgueiros velhos, já de tronco fendido, mas ainda tesos e direitos, debruçaram-se por cima das águas; mas em frente deles veem-se jardins que se sucedem, todos diferentes, uns cheios de flores e ostentando caramanchões, graciosos e elegantes como uma cidadezinha de bonecas, outros onde vicejam apenas repolhos e outras hortaliças. Noutros pontos não se avistam os jardins, porque sabugueiros viçosos estendem os galhos por cima das águas. Estas são, nalguns pontos, tão fundas, que o remo não lhes alcançava o leito. O ponto mais fundo fica defronte do convento das freiras: o "Fundão do Sino". É lá que mora o velho gênio das águas, o "Homem do Riacho". Dorme durante o dia, enquanto o sol cintila na água, e aparece nas noites estreladas, e à luz do luar. É muito, muito velho. A avó diz que a sua avó contava histórias dele: que vivia uma vida solitária, sem falar com ninguém, a não ser com o enorme e velho sino da igreja. Dantes o sino se balançava na torre da igreja; mas agora já não se vê sinal algum nem da torre nem da igreja, que tinha a invocação de Santo Albano.
Ding-dong! Ding-dong!
Era a voz do sino, quando ainda estava pendurado no alto da torre; mas uma tarde, quando o sol já ia descendo no horizonte, e o sino estava no auge da agitação, despencou-se lá de cima e veio voando pelos ares; e o metal polido reluzia como se fossem brasas, aos raios vermelhos do sol.
- Ding-dong! Ding-dong! - Cantava o sino- Ding-dong! Agora vou descansar!
E voou para o riacho de Odense, e lançou-se no lugar mais fundo. Por isso se chama hoje aquele ponto o "Fundão do Sino".
Mas o sino não achou naquele lugar nem sono nem sossego. Lá embaixo, na morada do Homem do Riacho, repica e canta tanto, que as vezes o som repercute na água. Há quem diga que esse som indica que alguém vai morrer. Isso não é verdade, não: o sino canta e conversa com o Homem do Riacho, que já não vive agora sozinho.
E que é que lhe conta o sino? Já vimos que é muito, muito velho. Existia antes que a vó da vovó tivesse nascido; pois mesmo assim, com toda essa idade, é uma criança, comparado com o Homem do Riacho, que é um velho taciturno, um esquisitão. Veste calças de pele de enguia com botões amarelos - os botões do riacho - e traz à cabeça uma coroa de juncos. A barba é toda cheia de lentilhas dos rios. Pois com toda essa esquisitice, é um velho de aspecto agradável.
Seriam precisos dias e anos, para repetir tudo quando o sino conta. Ano após ano, conta ele sempre as mesmas histórias antigas, mas renovadas: ora abreviadas, ora desenvolvidas, conforme a disposição do momento. Conta coisas dos tempos antigos, dos sombrios tempos antigos:
- Na igreja de Santo Albano, o monge subia à torre. Era jovem e belo, mas tão taciturno...Olhava pela claraboia, olhava para o ribeiro de Odense, naquele tempo em que tinha ainda o leito largo, e o Campo do Monge era ainda um lago. Seus olhos vagavam sobre o dique verde, e o Cerco das Freiras, e lembrava-se dela; e o coração batia-lhe com mais vigor:
Ding-dong! Ding-dong! Ding-dong!...
Sim, era isso o que o sino contava.
- O estúpido criado do bispo subia também à torre, quando eu, o sino fundido de metal, me agitava e cantava, com a minha voz dura e poderosa. Eu poderia esmagar-lhe o cérebro. Ele se acomodava em debaixo do lugar onde eu estava suspenso, agitando duas varetas, como se fosse um instrumento de corda, e cantava:
"Agora posso cantar, posso cantar em voz alta, as coisas que noutra a hora nem sequer posso cochichar...Posso cantar tudo quanto eles mentem escondido, encerrado, fechado...Lá reina o frio e a umidade. Os ratos nos comem vivos...Ninguém sabe disso, ninguém ouve dizer estas coisas, ninguém ouve...Nem agora ouvirão, pois o sino repica e canta:
"Ding-dong! Ding-dong!
"Havia naquele tempo um rei, chamado Kanut, que respeitava os bispos e os monges. Mas ele ofendeu os camponeses com palavras duras, e impôs-lhes pesados impostos, e eles pegaram em armas e paus, e perseguiram-no, como a uma fera. O rei Kanut foi refugiar-se na igreja, e fechou a porta; e a turba enfurecida acampou diante da igreja. Eu ouvi contar essa história. Os corvos e as gralhas, espantados com os gritos e vociferações que retumbavam ali, voavam, entrando na torre, e dela saindo, olhavam para a multidão reunida lá embaixo , espiavam pelas janelas da igreja, e contavam em altos gritos o que viam: o rei Kanut estava rezando, prostrado, diante do altar, enquanto seus irmãos Érico e Benedito ficavam de guarda à porta, de espada desembainhada. Mas o criado do rei, o desleal Blake traiu o amo. A multidão reunida diante da igreja ficou sabendo onde poderia acertar um tiro no rei, e um deles atirou uma pedra pelo vitral. E agora o rei jazia ali, morto. os gritos da turba feroz e das aves assustadas retiniam e faziam o ar estremecer. Também eu juntei meu canto ao deles:
" Ding-dong! Ding-dong! Ding-dong!
" O sino da igreja está suspenso lá no alto, e olha para longe, e avista as aves, e entende-lhes a fala. O vento entra, uivando, na sua morada, pelas claraboias e sineiras; entra por todas as fendas. E o vento sabe de tudo: ele fica sabendo de tudo quanto se passa pelo ar, que cerca tudo quanto existe, e se introduz nos pulmões dos homens; sabe tudo quanto se manifesta por meio de sons e ruídos, ouve cada palavra, cada suspiro...O ar fica sabendo de tudo, e conta tudo ao vento; o sino da igreja entende-lhe a linguagem, e , repicando, comunica tudo ao mundo:
" Ding-dong!...Ding-odng!...
"Mas afinal cansei-me de ouvir e de saber tantas coisas. Já não podia anunciá-las, repicando e cantando. Fiquei tão fatigado, senti-me tão pesado, que afinal o campanário desmoronou, e eu voei pelo ar luminoso, e desci par o lugar mais fundo do rio, onde mora o Homem do Riacho, solitário, sozinho. E aqui conto agora todos os dias o que ouvi e o que sei. Ding-dong! Ding-dong!..."
Assim soa e se lamenta o sino, no riacho de Odense. Foi a avó quem o contou.
Mas o mestre, na escola, diz que sino nenhum pode repicar lé embaixo, na água, não há nenhum Homem do Riacho, porque não há mesmo. E quando todos os outros sinos da outras igrejas ressoam tão maravilhosamente, diz ele que o que soa não é o sino, mas o ar; e que é o ar que produz aqueles repiques. E avó conta também que o sino mesmo já tinha dito isso.
Nesse ponto ambos estão de acordo, o que já não é pouco. Ambos diziam:
"Se prudente, se prudente, e tem cuidado!"
O ar sabe tudo. paira em volta de nós, está dentro de nós, fala dos nossos pensamentos e das nossas ações- e fala mais lentamente do que o sino do Fundão do Riacho de Odense, onde mora o Homem do Riacho.
O ar faz os nossos pensamentos ressoarem para fora, até o imenso fundo do Céu, muito longe, e sempre, sempre...até que os sinos do Céu repiquem:
Ding-dong!...Ding-dong!...
FIM
O som sobe do "Fundão do Sino". no ribeiro de Odense. Não há criança na velha cidade de Odense, na ilha de Fiônia, que não conheça aquele riacho, que rega os jardins que rodeiam a cidade. Corre da represa ao moinho, passando por baixo das pontes de madeira. Florescem nas suas águas os lírios amarelos, que o povo chama botões do ribeiro; e crescem também ali o juncos de penacho castanho; e tifas escuras e aveludadas, de grande porte. Junto do Campo do Monge, e da Lavanderia, os salgueiros velhos, já de tronco fendido, mas ainda tesos e direitos, debruçaram-se por cima das águas; mas em frente deles veem-se jardins que se sucedem, todos diferentes, uns cheios de flores e ostentando caramanchões, graciosos e elegantes como uma cidadezinha de bonecas, outros onde vicejam apenas repolhos e outras hortaliças. Noutros pontos não se avistam os jardins, porque sabugueiros viçosos estendem os galhos por cima das águas. Estas são, nalguns pontos, tão fundas, que o remo não lhes alcançava o leito. O ponto mais fundo fica defronte do convento das freiras: o "Fundão do Sino". É lá que mora o velho gênio das águas, o "Homem do Riacho". Dorme durante o dia, enquanto o sol cintila na água, e aparece nas noites estreladas, e à luz do luar. É muito, muito velho. A avó diz que a sua avó contava histórias dele: que vivia uma vida solitária, sem falar com ninguém, a não ser com o enorme e velho sino da igreja. Dantes o sino se balançava na torre da igreja; mas agora já não se vê sinal algum nem da torre nem da igreja, que tinha a invocação de Santo Albano.
Ding-dong! Ding-dong!
Era a voz do sino, quando ainda estava pendurado no alto da torre; mas uma tarde, quando o sol já ia descendo no horizonte, e o sino estava no auge da agitação, despencou-se lá de cima e veio voando pelos ares; e o metal polido reluzia como se fossem brasas, aos raios vermelhos do sol.
- Ding-dong! Ding-dong! - Cantava o sino- Ding-dong! Agora vou descansar!
E voou para o riacho de Odense, e lançou-se no lugar mais fundo. Por isso se chama hoje aquele ponto o "Fundão do Sino".
Mas o sino não achou naquele lugar nem sono nem sossego. Lá embaixo, na morada do Homem do Riacho, repica e canta tanto, que as vezes o som repercute na água. Há quem diga que esse som indica que alguém vai morrer. Isso não é verdade, não: o sino canta e conversa com o Homem do Riacho, que já não vive agora sozinho.
E que é que lhe conta o sino? Já vimos que é muito, muito velho. Existia antes que a vó da vovó tivesse nascido; pois mesmo assim, com toda essa idade, é uma criança, comparado com o Homem do Riacho, que é um velho taciturno, um esquisitão. Veste calças de pele de enguia com botões amarelos - os botões do riacho - e traz à cabeça uma coroa de juncos. A barba é toda cheia de lentilhas dos rios. Pois com toda essa esquisitice, é um velho de aspecto agradável.
Seriam precisos dias e anos, para repetir tudo quando o sino conta. Ano após ano, conta ele sempre as mesmas histórias antigas, mas renovadas: ora abreviadas, ora desenvolvidas, conforme a disposição do momento. Conta coisas dos tempos antigos, dos sombrios tempos antigos:
- Na igreja de Santo Albano, o monge subia à torre. Era jovem e belo, mas tão taciturno...Olhava pela claraboia, olhava para o ribeiro de Odense, naquele tempo em que tinha ainda o leito largo, e o Campo do Monge era ainda um lago. Seus olhos vagavam sobre o dique verde, e o Cerco das Freiras, e lembrava-se dela; e o coração batia-lhe com mais vigor:
Ding-dong! Ding-dong! Ding-dong!...
Sim, era isso o que o sino contava.
- O estúpido criado do bispo subia também à torre, quando eu, o sino fundido de metal, me agitava e cantava, com a minha voz dura e poderosa. Eu poderia esmagar-lhe o cérebro. Ele se acomodava em debaixo do lugar onde eu estava suspenso, agitando duas varetas, como se fosse um instrumento de corda, e cantava:
"Agora posso cantar, posso cantar em voz alta, as coisas que noutra a hora nem sequer posso cochichar...Posso cantar tudo quanto eles mentem escondido, encerrado, fechado...Lá reina o frio e a umidade. Os ratos nos comem vivos...Ninguém sabe disso, ninguém ouve dizer estas coisas, ninguém ouve...Nem agora ouvirão, pois o sino repica e canta:
"Ding-dong! Ding-dong!
"Havia naquele tempo um rei, chamado Kanut, que respeitava os bispos e os monges. Mas ele ofendeu os camponeses com palavras duras, e impôs-lhes pesados impostos, e eles pegaram em armas e paus, e perseguiram-no, como a uma fera. O rei Kanut foi refugiar-se na igreja, e fechou a porta; e a turba enfurecida acampou diante da igreja. Eu ouvi contar essa história. Os corvos e as gralhas, espantados com os gritos e vociferações que retumbavam ali, voavam, entrando na torre, e dela saindo, olhavam para a multidão reunida lá embaixo , espiavam pelas janelas da igreja, e contavam em altos gritos o que viam: o rei Kanut estava rezando, prostrado, diante do altar, enquanto seus irmãos Érico e Benedito ficavam de guarda à porta, de espada desembainhada. Mas o criado do rei, o desleal Blake traiu o amo. A multidão reunida diante da igreja ficou sabendo onde poderia acertar um tiro no rei, e um deles atirou uma pedra pelo vitral. E agora o rei jazia ali, morto. os gritos da turba feroz e das aves assustadas retiniam e faziam o ar estremecer. Também eu juntei meu canto ao deles:
" Ding-dong! Ding-dong! Ding-dong!
" O sino da igreja está suspenso lá no alto, e olha para longe, e avista as aves, e entende-lhes a fala. O vento entra, uivando, na sua morada, pelas claraboias e sineiras; entra por todas as fendas. E o vento sabe de tudo: ele fica sabendo de tudo quanto se passa pelo ar, que cerca tudo quanto existe, e se introduz nos pulmões dos homens; sabe tudo quanto se manifesta por meio de sons e ruídos, ouve cada palavra, cada suspiro...O ar fica sabendo de tudo, e conta tudo ao vento; o sino da igreja entende-lhe a linguagem, e , repicando, comunica tudo ao mundo:
" Ding-dong!...Ding-odng!...
"Mas afinal cansei-me de ouvir e de saber tantas coisas. Já não podia anunciá-las, repicando e cantando. Fiquei tão fatigado, senti-me tão pesado, que afinal o campanário desmoronou, e eu voei pelo ar luminoso, e desci par o lugar mais fundo do rio, onde mora o Homem do Riacho, solitário, sozinho. E aqui conto agora todos os dias o que ouvi e o que sei. Ding-dong! Ding-dong!..."
Assim soa e se lamenta o sino, no riacho de Odense. Foi a avó quem o contou.
Mas o mestre, na escola, diz que sino nenhum pode repicar lé embaixo, na água, não há nenhum Homem do Riacho, porque não há mesmo. E quando todos os outros sinos da outras igrejas ressoam tão maravilhosamente, diz ele que o que soa não é o sino, mas o ar; e que é o ar que produz aqueles repiques. E avó conta também que o sino mesmo já tinha dito isso.
Nesse ponto ambos estão de acordo, o que já não é pouco. Ambos diziam:
"Se prudente, se prudente, e tem cuidado!"
O ar sabe tudo. paira em volta de nós, está dentro de nós, fala dos nossos pensamentos e das nossas ações- e fala mais lentamente do que o sino do Fundão do Riacho de Odense, onde mora o Homem do Riacho.
O ar faz os nossos pensamentos ressoarem para fora, até o imenso fundo do Céu, muito longe, e sempre, sempre...até que os sinos do Céu repiquem:
Ding-dong!...Ding-dong!...
FIM
domingo, 14 de agosto de 2016
OS CISNES SELVAGENS - CONTOS DE ANDERSEN
Longe, longe, naquele país para onde voam as andorinhas quando chega aqui o inverno, vivia um rei que tinha onze filhos e uma filha; a menina chamava-se Elisa. Os onze irmãos eram príncipes, e iam para a escola com uma estrela no peito e de espada ao lado. Escreviam com lápis de diamante, em pedras de ouro, e aprendiam as lições de cor tão rapidamente, que era só ler uma vez. Logo se via que eram príncipes. Sua irmã sentava-se em um banquinho de espelhos e tinha um livro de figuras, cujo preço fora o valor de um reino inteiro.
Sim! Eram crianças particularmente felizes; mas essa felicidade não durou toda a vida.
O pai, que era rei de todo o país, casou com uma rainha muito má, que não tinha amor algum às pobres crianças. Já no primeiro dia elas bem o sentiram. O palácio inteiro estava em festa, e as crianças brincavam quando começaram a chegar os convidados; não lhes serviram, como era costume, bolos e maças assadas: deram-lhes apenas areia em uma taça de chá, dizendo-lhes que fizessem de conta que aquilo era uma coisa boa.
Na semana seguinte a rainha pegou a Elisinha pela mão e levou-a para o campo, entregando a menina a um casal de camponeses; e pouco tempo depois dizia ela ao rei tantas falsidades contra os pobres príncipes, que o rei não se preocupou mais com eles. E a malvada rainha disse-lhes então:
Saiam, saiam daqui! Vão voar pelo mundo afora, e tratem de ganhar a vida por si! Vamos ! Voem , voem, aves sem voz!
Não pode, contudo, fazer-lhes todo o mal que desejava, porque os príncipes viraram logo em cisnes - onze magníficos cisnes selvagens. Soltando um grito estranho, saíram voando pelas janelas do palácio; voaram por sobre o parque, e saíram pelo mundo.
Era ainda muito cedo, e chegaram ao lugar onde sua irmãzinha Elisa dormia, no quarto dos lavradores. Pairaram sobre a casa, estenderam o longo pescoço, bateram as asas; mas ninguém os ouviu, nem viu. Tiveram de voar então para o alto, para as nuvens, pelo vasto mundo, e chegaram a um grande bosque escuro, que ia direito para o lado do mar.
A pobrezinha da Elisa ficou lá na casa dos campônios, e brincava com uma folha verde, porque não tinha outros brinquedos. Fez um furo na folha e por ele olhou para o sol, e pareceu-lhe que via os olhos límpidos dos irmãos; cada vez que o calor dos sol lhe aquecia as faces, a menina lembrava-se dos beijos que eles lhe davam , quando estava em casa.
Os dias eram sempre iguais. Quando o vento soprava sobre a roseira que cercavam a casa, parecia dizer-lhes num murmúrio:
- Que é que pode haver mais belo do que as rosas?
Mas as flores sacudiam a cabeça e respondiam:
- Elisa!
E quando a velha se sentava em frente da porta, no domingo, e lia o seu livro de orações, o vento virava as folhas e dizia ao livro:
- Quem pode ser mais piedoso que tu?
E o livro dizia:
- Elisa!
E as roseiras e o livro de orações falavam a pura verdade.
Quando a menina fez quinze anos foi para casa; e vendo a rainha como era formosa, ficou enraivecida, e mais ainda a odiou. Gostaria bem de transformá-la também em cisne bravo, como fizera aos irmãos, mas conteve-se, porque o rei queria ver a filha.
De manhã bem cedo a rainha foi ao banheiro, que era todo de mármore branco e guarnecido de macias almofadas e esplêndidas tapeçarias; pegou em três sapos, beijou-os e disse ao primeiro:
-Senta-te sobre a cabeça de Elisa, quando ela vier tomar banho, para que fique tão estúpida como tu.
Ao segundo disse:
- Pousa na testa dela, para que fique tão feia como tu, e nem o pai possa mais reconhecê-la.
E disse ao terceiro:
- Pousa no seu coração, para que nasça nela um mau espirito, que a faça sofrer.
Pôs então os sapos na água, que imediatamente ficou esverdeada; e chamando Elisa, mandou-a despir-se para tomar banho. E quando a menina mergulhou, um dos sapos meteu-se-lhe entre os cabelos, o segundo pouso-lhe na fronte, e o terceiro sobre o coração. Quando ela saiu do banho ficaram flutuando na água três papoulas vermelhas. Se a feiticeira não os tivesse beijado, teriam aparecido, em seu lugar, três rosas vermelhas. Seja como for, mudaram-se em flores, porque tinham pousado na cabeça e na fronte e no peito da menina. Era tão boa e tão inocente, que a feitiçaria não tinha poder sobre ela.
Quando a malvada rainha viu aquilo, esfregou a menina com suco de nozes, para que ficasse bem trigueira, e untou-lhe o rosto com um unguento venenoso; despenteou-a toda, deixando-lhe o cabelo emaranhado. Era impossível reconhecer a linda Elisa!
Ficou o pai muito abalado ao vê-la, e declarou que aquela não era a sua filha. Ninguém, a não ser o cão de guarda do pátio e as andorinhas, a reconheceria. Mas, pobres animais que eram, não tinham voz para dizer o que sabiam.
A pobre Elisa chorou muito, pensando nos seus onze irmãos que tinham ido embora. Saiu do castelo, andou o dia inteiro pelo campo e pela charneca, até que chegou a um grande bosque. Não tinha destino, não sabia onde havia de ir, mas desejava muito ver os irmãos: certamente tinham sido arremessados no mundo, e ia procurá-los, e havia de encontrá-los!
Pouco depois de ter a menina entrado no mato caiu a noite; agora não sabia mais o caminho e teve de se deitar no musgo macio. Fez a sua oração e encostou a cabeça no tronco de uma árvore. Reinava ali um silêncio profundo; o ar era suave, e na grama e no musgo brilhavam, como fogos verdes, centenas de vaga-lumes. e quando ela tocou de leve num galinho, os insetos brilhantes a cobriram, como uma chuva de estrelas.
Sonhou a noite inteira com o irmãos. Eram de novo crianças, e brincavam todos juntos, escreviam com seus lápis de diamantes nas lousas de ouro; e viam as lindas figuras do livro que tinha custado metade de um reino. Mas o que escreviam agora nas lousas não eram linhas e letras, como antigamente: narravam ali os bravos feitos que tinham praticado, e tudo quanto tinham visto e experimentado; e no livro de figuras tudo era vivo- os passarinhos cantavam e a s pessoas saíam do livro e falavam com ela e com seus irmãos. Mas quando se virava uma folha, todos eles saltavam para o seu lugar, de modo que não podia haver confusão.
O sol ia alto quando acordou. É claro que não o podia ver, porque as árvores estendiam a ramaria por cima dela. Mas os raios brincava lá em cima como um véu de gaze, vinha da folhagem um suave perfume, e os passarinhos quase que lhe pousavam nos ombros. Ouvia o ruído de águas: vários regatos iam ter a um lago, cujo leito era todo de bela areia. Cercava-o uma sebe de densos arbustos, mas o veados tinham rompido a cerca em um sítio, e por essa abertura Elisa entrou na água. Era tão clara, que se o vento não movesse os galhos das árvores, eles pareciam pintados no fundo do lago.
Quando Elisa viu o próprio rosto ficou aterrada - tão escura e feia se achou. Mas depois que molhou a mãozinha e esfregou os olhos e a fronte, a alva pele tornou a brilhar. Despiu-se e entrou na água fresca: não se poderia encontrar em todo o mundo mais bela filha de rei! Vestiu-se então de novo penteou os longos cabelos; bebeu da água da fonte na concha da mão; depois saiu a vagar pelo mato, sem saber onde ir. Pensava nos irmãos, e sabia que o céu não a esqueceria. É Deus quem faz cresceram as maças silvestres, para matar a fome. Ele lhe mostrou uma macieira, vergando ao peso das frutas. Fez ali a refeição do meio-dia, depois de por escoras debaixo dos galhos, e entrou na parte mais densa da mata. O silêncio era tão grande que ela ouvia o ruído de seus passos e o crepitar das folhas secas em que ia pisando. Não se via um passarinho; os raios do sol não podiam atravessar a folhagem densa das árvores; eram tão juntos os altos troncos, que pareciam antes uma cerca. Ela jamais vira uma solidão tão grande!
Anoiteceu de todo. Nem um único pirilampo brilhava agora na grama. Muito triste, a menina deitou-se para dormir. Pareceu-lhe então que os galhos das árvores se abriam lá em cima, e que mil olhos de anjos a vigiavam das alturas.
Quando amanheceu ela não sabia ao certo se aquilo tinha sido sonho ou realidade . Deu alguns passos e encontrou uma velha que trazia uma cesta de frutinhas do mato, e lhe ofereceu algumas. Elisa perguntou-lhe se não tinha visto onze príncipes cavalgando no bosque.
-Não - replicou a velha - mas vi ontem onze cisnes nadando no rio que fica próximo daqui. Todos eles tinham na cabeça coroas de ouro.
E levou Elisa para mostrar-lhe o rio, que corria li perto, abaixo do alto barranco. Os extensos galhos enfolhados das árvores que cresciam nas margens encontravam-se por cima do rio; e onde eles não alcançavam, as próprias raízes, saindo da terra, tinham entrelaçado as fibras por cima das águas.
Despediu-se Elisa da velha e foi seguindo pela margem, até a embocadura do rio.
O vasto mar brilhante abria-se diante dos olhos da jovem, mas nem uma única vela aparecia na superfície; não se via um só bote. Que havia ela de fazer? Olhou para as pedrinhas inumeráveis que cobriam a praia; a água as alisara, arredondando-as. Vidro, minério de ferro, tudo o que ali havia, recebera forma ao contato da água, muito mais branda, no entanto, do que a sua delicada mãozinha.
- Ela rola sobre as coisas, incansavelmente, e o que é áspero vai-se alisando. Eu serei também assim incansável. Obrigada por esta lição, claras ondas maravilhosas, que alisam as asperezas! Diz-me o coração que algum dia vocês me hão de levar para meus caros irmãos!
Espalhadas sobre as algas cobertas de nevoeiro viu ela onze penas de cisne, muito alvas; juntou-as e viu que havia nelas gotinhas d'água - agora se eram gotas de orvalho, ou se seriam lágrimas, ninguém podia dizer.
A praia era solitária, mas Elisa não notava, porque o mar estava sempre variando de aspecto - modificava-se mais em algumas horas do que os mais belos lagos em um ano inteiro.
Apareceu então uma grande nuvem negra; e era como se o mar dissesse:
-Também posso mostrar cólera!----------------
E soprou o vento, e as ondas voltaram para fora o seu lado branco. Mas o vento adormeceu, e as nuvens ficaram rosadas - e o mar parecia agora todo cor-de- rosa. Ora ficava esverdeado, ora branco outra vez. Mas por mais quieto que parecesse, havia sempre um leve movimento na beira da praia: a água arfava brandamente, como o peito de uma criança adormecida.
À hora de se pôr o sol, viu Elisa onze cisnes selvagens, todos coroados de ouro, que voavam para terra; voavam em fila, um atrás do outro, como uma longa fita branca. Elisa subiu ao barranco e ocultou-se atrás de uma moita: os cisnes vieram pousar perto dela, batendo as grandes asas brancas.
No momento em que o sol se escondia embaixo das águas, as penas dos cisnes caíram todas, e em vez de cisnes apareceram onze belos príncipes, os irmãos de Elisa. Ela soltou um grande grito: apesar de estarem muito diferentes, reconhecera-os - sentia que deviam ser seus irmãos, sabia que eram eles. E caiu-lhes nos braços, chamando-os pelos nomes. E os príncipes sentiram-se sumamente felizes de retornar a ver sua irmãzinha; e reconhecera-na, mesmo alta e tão formosa como estava agora. Riram e choraram; e logo ficaram sabendo de todas as crueldades da madrasta. Então disse o mais velho:
- Nós, teus irmãos, voamos feito cisnes selvagens enquanto o sol está no firmamento; mas assim que ele desaparece retomamos nossa forma humana. Por isso temos de vigiar sempre, de modo que tenhamos um ponto onde por os pés no momento em que o sol entra, porque se estivermos voando perto das nuvens, cairemos na terra, feito homens. Não moramos aqui; para além do mar há uma terra tão linda como esta. Mas o trajeto para lá é longo; temos de atravessar o mar imenso, e no caminho não há ilha alguma onde possamos passar a noite: apenas um pequeno rochedo emerge das vagas, mas dá somente para pousarmos nele, e bem juntos.Quando o mar está revolto, a espuma rebenta por cima de nós, mas damos graças a Deus por termos aquele rochedo. Ali passamos a noite na nossa forma humana; se não fosse aquele providencial rochedo nunca poderíamos visitar a bem-amada terra natal, porque são precisos dois dias - e os mais longos do ano- para a viagem. É pois somente uma vez ao ano que conseguimos ver nossa terra. Podemos ficar aqui onze dias, e voar por sobre o bosque imenso, de onde avistamos o palácio em que nascemos e no qual vive nosso pai; e a alta torre da igreja, a cuja sombra está enterrada nossa mãe. Aqui parece que as moitas e as árvores são os nossos parentes: aqui os cavalos selvagens atravessam a galope a planície, como no tempo de nossa infância; aqui os carvoeiros ainda cantam as velhas árias, ao som das quais dançávamos na meninice; aqui é a terra de nossos antepassados; para aqui nos sentimos atraídos, e aqui te encontramos, querida irmãzinha! Ainda podemos estar juntos dois dias. Depois temos de atravessar o mar, em busca de uma terra cheia de encantos, mas que não é o nosso berço. Como havemos de te levar? Porque não temos navio, nem bote...
- De que maneira poderia libertá-los, meus irmãos?- indagou ela.
E passaram quase toda a noite conversando- mal cochilaram um pouquinho.
Elisa foi despertada pelo ranger das asas dos cisnes acima da sua cabeça. Estavam os irmãos de novo encantados, e voavam em largos círculos. Afinal, foram-se; mas um deles, o mais novo, ficou para trás , e deitou a cabeça no colo dela. Elisa passava-lhe a mão nas asas; e ficaram juntos o dia inteiro. Ao escurecer voltaram os outros, e quando o sol se pôs, ali estavam na sua forma natural.
- Amanhã temos de ir embora, e não voltaremos antes que tenha passado uma ano inteiro. e não, podemos deixar-te assim! Tens coragem de ir conosco? Meu braço é bastante forte para te carregar na mata; e nossas asas, todas juntas, não terão também força bastante para voar contigo sobre o mar?
- Sim, levem-me! - disse Elisa.
Passaram a noite tecendo uma rede da casca flexível do salgueiro e de caniços duros; era uma rede vasta e forte. Nela deitou-se Elisa; e quando o sol nasceu, e seus irmãos se transformaram em cisnes selvagens, apanharam a rede com o bico e voaram com a irmã, ainda adormecida, para o alto, para a nuvens. Como os raios do sol lhe caíram exatamente sobre o rosto, um dos cisnes voava por sobre a cabeça da irmã, fazendo-lhe sombra com as asas.
Estavam longe da praia quando Elisa acordou: julgava sonhar ainda, tão estranho lhe parecia ser assim levada pelos ares, e por sobre o mar. A seu lado achou um cacho de bagas maduras e um punhado de raízes doces. Puseram-as ali para ela o irmão mais jovem, e ela sorriu-lhe , agradecida, porque o reconhecera: era aquele que voava mais acima, para lhe fazer sombra com as asas.
Voavam tão alto que o maior navio que descobriam lá embaixo parecia uma gaivota, pousada na água. Atrás deles elevava-se uma grande nuvem - uma montanha perfeita; e nela viu a moça desenhada a sua sombra e a dos onze cisnes, em tamanho gigantesco: era o quadro mais belo que já vira. Mas quando o sol subiu mais anida, e a nuvem foi ficando para trás, o retrato sombrio e flutuante foi diminuindo, e desapareceu.
Voaram assim o dia inteiro, como uma seta que vai zunindo, mas seu voo era mais baixo do que de costume, porque carregava a irmã. Aproximava-se uma tempestade: e a tarde ia adiantada: Elisa olhava ansiosa para o sol, porque o rochedo solitário não aparecia no oceano. Parecia-lhe agora que os cisnes batiam com força as asas. Ai! Era a causa daquela demora! Quando o sol entrasse eles se transformariam em homens e cairiam ao mar - e morreriam afogados! Começou então a rezar; rezou do mais íntimo do coração, mas ainda não avistava o rochedo. Aproximava-se cada vez mais as nuvens escuras, em uma massa imensa, negra e ameaçadora; aquele bloco de chumbo rolou para adiante e os relâmpagos se sucediam, um após outro.
Já o sol ia tocando a orla do mar! O coração de Elisa bateu descompassado. Então os cisnes começaram a descer tão suavemente que ela pensou que iam caindo, mas pararam outra vez. Já o sol estava meio oculto debaixo da água. E pela primeira vez ela viu o pequeno rochedo abaixo deles- e não aprecia maior do que uma foca, com a cabeça fora da água. O sol ia afundando rapidamente: por fim não parecia mais que uma estrela - e o seu pé tocou a terra firme. O sol extingui-se como a última faísca de um papel em chamas; os irmãos estavam de pé ao redor dela, de braços dados: não havia ali mais lugar do que o exatamente necessário para todos ele. O mar batia no rochedo e caía sobre Elisa, como um chuvisqueiro; o céu ardia em fogo, e o trovão ribombava constantemente; eles, porém, de mãos dadas, cantavam salmos, que lhes traziam consolação e coragem.---------------------------
De madrugada o ar era puro e tranquilo. Assim que o sol nasceu os cisnes voaram com a irmã , deixando a ilhota. As vagas erguiam-se ainda muito alto, e quando eles pairavam lá nas nuvens, parecia-lhes que a branca espuma era feita de milhões de cisnes que nadavam no mar.
Quando o sol subiu mais no céu, Elisa viu lá adiante uma região montanhosa que parecia flutuar no ar, com massas brilhantes de gelo boiando na água; no meio erguia-se um castelo talvez com uma milha de extensão, com colunatas esplêndidas que se erguiam umas sobre as outras, e enquanto lá embaixo ondulavam bosques de palmeiras, e flores brilhantes, grandes como rodas de moinho. Perguntou aos cisnes se era aquele o país a que se dirigiam, mas eles sacudiram a cabeça, porque o que ela via era o esplêndido palácio aéreo, sempre cambiante, da Fada Morgana, onde mortal algum podia entrar. Enquanto ela olhava para a montanha, castelo, bosques, tudo desapareceu, e o que surgiu diante dala foram vinte igrejas, todas muito semelhantes entre si, com suas torres altaneiras e janelas em ogiva. Chegou a imaginar que ouvia o som do órgão- mas era o marulho das vagas. E quando se aproximavam das igrejas, elas se transformaram em uma frota que navegava lá embaixo; e ao olhar novamente para baixo; era apenas um nevoeiro que brilhava sobre o oceano. E assim teve Elisa uma contínua mudança diante dos olhos, até que afinal avistou a verdadeira terra à qual iam aportar. Erguiam-se la belíssimas montanhas azuis, e florestas de cedros, e cidades, e palácios. Muito antes que o sol chegasse ao ocaso sentava-se ela sobre o rochedo, em frente de uma grande caverna, diante da qual se estendia um delicado tapete verde, formado de plantas rasteiras.
-Vamos ver com que vais sonhar esta noite- disse o irmão mais novo, mostrando-lhe o seu quarto.
- Deus permita que eu possa sonhar com o meio de libertá-los! - disse ela.
E, possuída daquele pensamento, orou fervorosamente, pedindo auxílio; e até no sono continuou a rezar. Pareceu-lhe então que ia voando muito alto, para o palácio da Fada Morgana. E a fada saiu-lhe ao encontro, linda e radiante. E mesmo assim , a fada era exatamente como aquela velha que lhe dera frutinhas no mato, e lhe falara nos cisnes coroados de ouro.
- Teus irmãos podem ser libertados - disse ela. - Mas tens coragem e perseverança? A água é sem dúvida mais branda do que tuas mãos delicadas, e contudo ela muda a forma das pedras; mas a água não sente as dores que teus dedos hão de sentir. A água não tem coração, e não podes sofrer a agonia e os tormentos que terás de suportar. Vês estas urtigas bravas? Pois ao redor da caverna em que dormes há muitas desta espécie; só essas, e as que nascem nos túmulos do cemitério é que servem: não te esqueças disto. Deves colhê-las, ainda que te queimem as mãos até fazer bolhas. Tens de quebrar a urtiga com os pés, e verás que depois de bem pisoteada ela dá uns fios; desses fios tecerás onze camisas de mangas compridas: atira-as sobre os onze cisnes, e estará quebrado o encanto. Mas lembre-se bem: desde o momento em que começares este trabalho, até que o terminares, não deves falar, nem que leves anos a tecer. A primeira palavra que pronunciares atravessará o coração dos teus irmãos, como um punhal envenenado. A vida deles depende da tua língua. Lembra-te bem de tudo isto!
Tocou a mão de Elisa com a urtiga: ardia como fogo e a menina acordou com a dor. Era dito; e perto do lugar onde dormira estava uma urtiga semelhante à que vira no sonho. Caiu de joelhos e deu graças: e saiu logo da caverna, para começar o trabalho.
Com as mãos delicadas arrancou as urtigas terríveis. Queimava como fogo, abrindo-lhe grandes bolhas nos braços e nas mãos. Mas a menina achava que devia suportar tudo com alegria, se com isso podia libertar os irmãos. Depois espicaçou as urtigas, haste por haste, com os pés nus, e obteve uma fibra verde.
Ao sol posto chegaram os irmãos, que ficaram muito assustados de a encontrar muda. Pensaram em algum novo feitiço da malvada madrasta; mas quando lhe viram as mãos, compreenderam o que ela estava fazendo para salvá-los, e mais moço chorou. E onde caíram as suas lágrimas ela não sentia mais dores, e as bolhas secaram.
Passou a noite inteira trabalhando, porque não poderia dormir enquanto não libertasse os irmãos. No dia seguinte, enquanto os cisnes estavam longe, ela, na sua solidão, continuava a trabalhar; mas nunca o tempo correra tão rapidamente como agora!
Já estava pronta uma camisa de malha, e ela começou a segunda.
Foi então que entre o rochedos retiniu uma trompa de caça. O som vinha cada vez mais perto; ela ouvia o latido dos cães, e entrou , receosa, na caverna; reuniu em um montão as urtigas que colhera e preparara, e sentou-se sobre o fardo. No mesmo instante um grande cão saiu aos saltos dos barrancos; e mais outro, e outros ainda seguiram. Latiam furioso, e recuavam, e tornavam avançar. Dentro de poucos minutos estavam diante da caverna todos os caçadores, e o mais belo de todos era o rei do país. Aproximou-se de Elisa, porque nunca vira donzela mais formosa.
- Como viste parar aqui, linda menina?- perguntou ele.
Ela sacudiu a cabeça, porque não podia falar- isso custaria a liberdade e a vida dos irmãos. E escondia as mãos debaixo do avental, para que o rei não visse o que padecia.
- Vem comigo- disse ele. - Não podes ficar aqui. Se és tão boa como bela, dar-te-ei vestidos de veludo e de seda, e uma coroa de ouro; ficarás morando no meu castelo, e serás rainha.
E ele a levantou do chão e colocou-a sobre o seu cavalo. Elisa chorava e torcia as mãos; mas o rei disse:
- Eu só desejo a tua felicidade; um dia me agradecerás.
E se foi a galope, por entre as montanhas, levando-a consigo; e os caçadores galopavam atrás dele.
Quando o sol desceu aparecia diante deles a cidade realenga, linda, com suas igrejas e cúpulas. E o rei levou-a para o castelo, onde grandes fontes esguichavam água nos altos vestíbulos de mármore, e todas as paredes e tetos era cobertos de formosas pinturas. Mas Elisa não tinha olhos para nada disso...Só o que fazia era chorar e suspirar. Deixou, passivamente, que as criadas lhe vestissem os trajes reais, e entretecessem de pérolas seus cabelos, e enfiassem ricas luvas nas suas mãos empoladas.
E, quando ela se apresentou, em traje de gala, estava tão deslumbrante de beleza que toda corte lhe fez as mais profundas reverencias. E o rei escolheu-a para noiva, a despeito do Conselheiro, que sacudia a cabeça, dizendo em cochichos que a lindíssima e jovem donzela era certamente alguma feiticeira, que cegara os olhos e desencaminhara o coração do rei.
Mas o rei não lhe deu ouvidos; ordenou que rompesse a música, e fossem servidos os mais deliciosos pratos, e que as mais lindas moças dançassem diante deles. E, atravessando com ela jardins perfumados, conduziu-a aos seus salões magníficos; e ainda assim nem sequer um sorriso lhe descerrou os lábios, nem iluminou os olhos: ela permanecia de pé, estátua viva da tristeza. Então o rei abriu uma porta, junto aos apartamentos que lhe tinha destinado; e ela viu um quartinho todo forrado de magníficas tapeçarias verdes, e muito parecido com a caverna onde ele a encontrara. No chão estava o feixe de fibras de urtiga que ela preparara para as camisas, e pendia da parede a camisa que já estava pronta. Um dos caçadores trouxera aqueles objetos, como curiosidade.
- Aqui poderás imaginar que estás na tua antiga morada- disse-lhe o rei. - Aqui está também o trabalho em que te ocupavas lá; talvez te pareça divertido recordar aquele tempo.
Vendo todas aquelas coisas, tão chegada ao seu coração, um sorriso veio brincar nos lábios de Elisa, e subiu-lhe a cor às faces. Pensou na libertação dos irmãos e beijou a mão do rei. Ele abraçou-a com carinho e determinou que a festa do casamento fosse anunciada pelos sinos de todas as igrejas. A linda moça muda achada no bosque ia tornar-se rainha daquele país.
Então o Conselheiro murmurou ao ouvido do rei palavras maldosas; mas essas palavras não lhe penetraram no coração. E fez-se o casamento. A coroa que puseram na cabeça de Elisa pesava sobre a sua fronte; mas um peso maior lhe oprimia o peito e ela não sentia a dor física. Seus lábios estavam mudos, porque uma só palavra poderia custar a vida àqueles que tanto amava; mas os seus olhos testemunhavam profundo amor ao belo e bom rei que fazia tudo para lhe ser agradável. Cada dia o amava mais. Oh, se pudesse falar-lhe, contar-lhe seu tormento! Devia continuar muda, porém, e muda devia terminar a sua obra. Por isso, todas as noites saía mansamente da cama e corria para o quartinho decorado como a caverna, e tecia uma camisa após outra. Mas quando chegou à sétima terminaram-se as fibras.
Ela sabia que no cemitério havia daquela urtiga, mas tinha de colhê-la por suas mãos. como poderia fazê-lo?
"Ora, que é a dor dos meus dedos, comparada com o tormento que sofro no coração?- pensou.- É preciso que eu tenha coragem. Nosso Senhor não me abandonara´."
Angustiada como se estivesse cometendo uma ação má, desceu silenciosamente ao jardim numa noite de luar, percorreu as longas avenidas que separavam os canteiros, saiu para as ruas solitárias e chegou ao cemitério. Lá, sobre uma das grandes lousas, viu um grupo de bruxas horrendas que se despojaram de seus andrajos como se quisessem banhar-se e começaram a cavar com os dedos compridos e magros as sepulturas recentes, para retirar os cadáveres. Elisa ateve de passar muito perto delas. Fitaram-na com os olhos malignos, mas a jovem rainha rezou as suas orações, colheu um punhado de urtigas e voltou para o castelo.
Somente uma pessoa a tinha visto; o Conselheiro, que ficara acordado enquanto os outros dormiam. Sua opinião estava agora confirmada; a rainha não era o que devia ser; era uma feiticeira, e por isso tinha seduzido o rei e todo o povo.
O Conselheiro disse ao rei o que vira e o que temia; e quando aquelas duras palavras saíram de sua boca, duas grossas lágrimas correram pelas faces do rei, que voltou para os seus aposentos com a dúvida no coração. À noite, o rei fingiu dormir, mas o sono não lhe vinha, e ele viu quando Elisa se levantou; o mesmo aconteceu nas outras noites, e cada vez ele a seguia silenciosamente e a via desaparecer no quartinho ao lado.
Dia a dia o seu rosto se anuviava mais. Elisa o percebeu mas não compreendia a razão daquela mudança, e a dor que ela lhe causava somou-se à que sofria por causa de seus irmãos. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto e caíam sobre a púrpura real; e ali ficavam, como diamantes esparso. E todas as que viam aquele esplendor desejavam também ser rainhas.
Entretanto, o seu trabalho estava quase no fim. Faltava acabar apenas uma das camisas, quando verificou que a fibra não chegava. Mas uma vez- a última- tinha de ir ao cemitério para colher algumas urtigas. Lembrava-se com terror daquela excursão solitária, e das medonhas visões que tinha tido, mas sua vontade era firme, porque confiava na Providência.
E saiu; mas o rei e o Conselheiro a seguiram. Viram-na entrar pelo portão do cemitério, e o rei, mortalmente triste, supôs também que ela fosse uma feiticeira.
- O povo é que há de julgá-la! - disse ele.
E o povo condenou-a à fogueira.
E a rainha foi arrancada do suntuoso palácio do rei, e encerrada em uma cela escura e úmida, onde ululava o vento, entrando pelas grades da janela. Para substituir os veludos e as sedas, deram-lhe o feixe de urtigas que tinha colhido; seria o seu travesseiro; por cobertor teria as duras e ásperas camisas que tinha tecido. Não poderiam, na verdade, ter-lhe dado coisa alguma que tivesse mais valor a seus olhos! Recomeçou a tecer e continuou a rezar. Lá fora, os moleques cantavam canções escarninhas em frente à sua janela; e nem uma única alma a consolava com uma palavra de amor.
À tardinha ouviu Elisa um zunido de asas perto da janela- era um cisne, era o irmão mais novo. Descobrira-a afinal, e ela soluçava de alegria, posto que seria aquela sem dúvida a última noite de sua vida. Mas é que agora seu trabalho estava quase acabado, e seus irmãos aparecera ali!
Não era ainda dia; antes de uma hora não nasceria o sol. Os onze irmãos apresentaram-se diante do portão do castelo, pedindo uma audiência ao rei. Mas isso era impossível, segundo lhes disseram: o rei dormia, e ninguém iria acordá-lo, pois que ainda era noite. Os irmãos pediram, ameaçaram, vieram as sentinelas do palácio real, até o próprio rei veio saber que discussão era aquela. Mas nesse momento o sol nasceu, e o irmãos se sumiram: apenas se viam onze cisnes voando por sobre o castelo.
Todo o povo acorreu às portas da cidade para ver queimar a bruxa. Um cavalo velho e magro puxava a carroça onde ia Elisa. Tinham-na vestido com uma túnica de pano grosseiro, e seus lindos cabelos pendiam soltos em redor da bela cabeça; as faces de Elisa estavam pálidas, seus lábios moviam-se de leve numa oração muda enquanto tecia com os dedos a fibra verde. Nem a caminho da morte deixava de continuar a tarefa começada. As dez camisas já feitas estavam a seus pés e ela tecia a última. O populacho a insultava:
- Olhem a bruxa, como resmunga! Não é um livro de orações que ela tem na mão, é a sua bruxaria infame. Tirem-lha!
E se lançavam contra a carroça, tentando destruir o trabalho da rainha. Então vieram voando onze cisnes brancos, que pousaram em círculo ao redor dela na carroça, batendo as asas. A multidão recuou assombrada.
- É sinal do céu. Sem dúvida ela é inocente! - murmuraram alguns, mas não se atreviam a dizê-lo em voz alta.
Nesse momento o carrasco agarrou-a pela mão. E foi então que ela jogou, a toda presa, as onze camisas por cima dos cisnes, que se transformaram imediatamente em onze garbosos príncipes; mas o mais moço deles tinha uma asa de cisne no lugar de um dos braços, porque faltava uma manga na sua camisa. A rainha não pudera terminá-la.
- Agora sim, posso falar- disse ela. - Sou inocente!
E o povo, ao ver o que sucedera, inclinou-se diante dela como diante duma santa; mas Elisa caiu sem sentidos nos braços de seus irmãos, de tal modo a espera, a angústia e a dor a haviam extenuado.
- Sim, ela é inocente!- disse o irmão mais velho.
E contou toda a história. Enquanto falava, espalhava-se pelo ar um perfume como de milhões de rosas, pois cada um dos troncos da fogueira tinha lançado raízes e galhos. Formara-se ali uma moita embalsamada, alta e grande, com rosas vermelhas; no alto, uma flor de alvura deslumbrante brilhava como uma estrela. O rei colheu a flor e a depôs sobre o peito de Elisa. Então ela voltou a si com o coração tranquilo e cheio de felicidade.
E todos os sinos da cidade replicaram sem que ninguém os tocasse, e o ar se encheu de pássaros. O regresso ao castelo foi um cortejo nupcial tão esplêndido como nenhum rei jamais tivera.
FIM
-Não - replicou a velha - mas vi ontem onze cisnes nadando no rio que fica próximo daqui. Todos eles tinham na cabeça coroas de ouro.
E levou Elisa para mostrar-lhe o rio, que corria li perto, abaixo do alto barranco. Os extensos galhos enfolhados das árvores que cresciam nas margens encontravam-se por cima do rio; e onde eles não alcançavam, as próprias raízes, saindo da terra, tinham entrelaçado as fibras por cima das águas.
Despediu-se Elisa da velha e foi seguindo pela margem, até a embocadura do rio.
O vasto mar brilhante abria-se diante dos olhos da jovem, mas nem uma única vela aparecia na superfície; não se via um só bote. Que havia ela de fazer? Olhou para as pedrinhas inumeráveis que cobriam a praia; a água as alisara, arredondando-as. Vidro, minério de ferro, tudo o que ali havia, recebera forma ao contato da água, muito mais branda, no entanto, do que a sua delicada mãozinha.
- Ela rola sobre as coisas, incansavelmente, e o que é áspero vai-se alisando. Eu serei também assim incansável. Obrigada por esta lição, claras ondas maravilhosas, que alisam as asperezas! Diz-me o coração que algum dia vocês me hão de levar para meus caros irmãos!
Espalhadas sobre as algas cobertas de nevoeiro viu ela onze penas de cisne, muito alvas; juntou-as e viu que havia nelas gotinhas d'água - agora se eram gotas de orvalho, ou se seriam lágrimas, ninguém podia dizer.
A praia era solitária, mas Elisa não notava, porque o mar estava sempre variando de aspecto - modificava-se mais em algumas horas do que os mais belos lagos em um ano inteiro.
Apareceu então uma grande nuvem negra; e era como se o mar dissesse:
-Também posso mostrar cólera!----------------
E soprou o vento, e as ondas voltaram para fora o seu lado branco. Mas o vento adormeceu, e as nuvens ficaram rosadas - e o mar parecia agora todo cor-de- rosa. Ora ficava esverdeado, ora branco outra vez. Mas por mais quieto que parecesse, havia sempre um leve movimento na beira da praia: a água arfava brandamente, como o peito de uma criança adormecida.
À hora de se pôr o sol, viu Elisa onze cisnes selvagens, todos coroados de ouro, que voavam para terra; voavam em fila, um atrás do outro, como uma longa fita branca. Elisa subiu ao barranco e ocultou-se atrás de uma moita: os cisnes vieram pousar perto dela, batendo as grandes asas brancas.
No momento em que o sol se escondia embaixo das águas, as penas dos cisnes caíram todas, e em vez de cisnes apareceram onze belos príncipes, os irmãos de Elisa. Ela soltou um grande grito: apesar de estarem muito diferentes, reconhecera-os - sentia que deviam ser seus irmãos, sabia que eram eles. E caiu-lhes nos braços, chamando-os pelos nomes. E os príncipes sentiram-se sumamente felizes de retornar a ver sua irmãzinha; e reconhecera-na, mesmo alta e tão formosa como estava agora. Riram e choraram; e logo ficaram sabendo de todas as crueldades da madrasta. Então disse o mais velho:
- Nós, teus irmãos, voamos feito cisnes selvagens enquanto o sol está no firmamento; mas assim que ele desaparece retomamos nossa forma humana. Por isso temos de vigiar sempre, de modo que tenhamos um ponto onde por os pés no momento em que o sol entra, porque se estivermos voando perto das nuvens, cairemos na terra, feito homens. Não moramos aqui; para além do mar há uma terra tão linda como esta. Mas o trajeto para lá é longo; temos de atravessar o mar imenso, e no caminho não há ilha alguma onde possamos passar a noite: apenas um pequeno rochedo emerge das vagas, mas dá somente para pousarmos nele, e bem juntos.Quando o mar está revolto, a espuma rebenta por cima de nós, mas damos graças a Deus por termos aquele rochedo. Ali passamos a noite na nossa forma humana; se não fosse aquele providencial rochedo nunca poderíamos visitar a bem-amada terra natal, porque são precisos dois dias - e os mais longos do ano- para a viagem. É pois somente uma vez ao ano que conseguimos ver nossa terra. Podemos ficar aqui onze dias, e voar por sobre o bosque imenso, de onde avistamos o palácio em que nascemos e no qual vive nosso pai; e a alta torre da igreja, a cuja sombra está enterrada nossa mãe. Aqui parece que as moitas e as árvores são os nossos parentes: aqui os cavalos selvagens atravessam a galope a planície, como no tempo de nossa infância; aqui os carvoeiros ainda cantam as velhas árias, ao som das quais dançávamos na meninice; aqui é a terra de nossos antepassados; para aqui nos sentimos atraídos, e aqui te encontramos, querida irmãzinha! Ainda podemos estar juntos dois dias. Depois temos de atravessar o mar, em busca de uma terra cheia de encantos, mas que não é o nosso berço. Como havemos de te levar? Porque não temos navio, nem bote...
- De que maneira poderia libertá-los, meus irmãos?- indagou ela.
E passaram quase toda a noite conversando- mal cochilaram um pouquinho.
Elisa foi despertada pelo ranger das asas dos cisnes acima da sua cabeça. Estavam os irmãos de novo encantados, e voavam em largos círculos. Afinal, foram-se; mas um deles, o mais novo, ficou para trás , e deitou a cabeça no colo dela. Elisa passava-lhe a mão nas asas; e ficaram juntos o dia inteiro. Ao escurecer voltaram os outros, e quando o sol se pôs, ali estavam na sua forma natural.
- Amanhã temos de ir embora, e não voltaremos antes que tenha passado uma ano inteiro. e não, podemos deixar-te assim! Tens coragem de ir conosco? Meu braço é bastante forte para te carregar na mata; e nossas asas, todas juntas, não terão também força bastante para voar contigo sobre o mar?
- Sim, levem-me! - disse Elisa.
Passaram a noite tecendo uma rede da casca flexível do salgueiro e de caniços duros; era uma rede vasta e forte. Nela deitou-se Elisa; e quando o sol nasceu, e seus irmãos se transformaram em cisnes selvagens, apanharam a rede com o bico e voaram com a irmã, ainda adormecida, para o alto, para a nuvens. Como os raios do sol lhe caíram exatamente sobre o rosto, um dos cisnes voava por sobre a cabeça da irmã, fazendo-lhe sombra com as asas.
Estavam longe da praia quando Elisa acordou: julgava sonhar ainda, tão estranho lhe parecia ser assim levada pelos ares, e por sobre o mar. A seu lado achou um cacho de bagas maduras e um punhado de raízes doces. Puseram-as ali para ela o irmão mais jovem, e ela sorriu-lhe , agradecida, porque o reconhecera: era aquele que voava mais acima, para lhe fazer sombra com as asas.
Voavam tão alto que o maior navio que descobriam lá embaixo parecia uma gaivota, pousada na água. Atrás deles elevava-se uma grande nuvem - uma montanha perfeita; e nela viu a moça desenhada a sua sombra e a dos onze cisnes, em tamanho gigantesco: era o quadro mais belo que já vira. Mas quando o sol subiu mais anida, e a nuvem foi ficando para trás, o retrato sombrio e flutuante foi diminuindo, e desapareceu.
Voaram assim o dia inteiro, como uma seta que vai zunindo, mas seu voo era mais baixo do que de costume, porque carregava a irmã. Aproximava-se uma tempestade: e a tarde ia adiantada: Elisa olhava ansiosa para o sol, porque o rochedo solitário não aparecia no oceano. Parecia-lhe agora que os cisnes batiam com força as asas. Ai! Era a causa daquela demora! Quando o sol entrasse eles se transformariam em homens e cairiam ao mar - e morreriam afogados! Começou então a rezar; rezou do mais íntimo do coração, mas ainda não avistava o rochedo. Aproximava-se cada vez mais as nuvens escuras, em uma massa imensa, negra e ameaçadora; aquele bloco de chumbo rolou para adiante e os relâmpagos se sucediam, um após outro.
Já o sol ia tocando a orla do mar! O coração de Elisa bateu descompassado. Então os cisnes começaram a descer tão suavemente que ela pensou que iam caindo, mas pararam outra vez. Já o sol estava meio oculto debaixo da água. E pela primeira vez ela viu o pequeno rochedo abaixo deles- e não aprecia maior do que uma foca, com a cabeça fora da água. O sol ia afundando rapidamente: por fim não parecia mais que uma estrela - e o seu pé tocou a terra firme. O sol extingui-se como a última faísca de um papel em chamas; os irmãos estavam de pé ao redor dela, de braços dados: não havia ali mais lugar do que o exatamente necessário para todos ele. O mar batia no rochedo e caía sobre Elisa, como um chuvisqueiro; o céu ardia em fogo, e o trovão ribombava constantemente; eles, porém, de mãos dadas, cantavam salmos, que lhes traziam consolação e coragem.---------------------------
De madrugada o ar era puro e tranquilo. Assim que o sol nasceu os cisnes voaram com a irmã , deixando a ilhota. As vagas erguiam-se ainda muito alto, e quando eles pairavam lá nas nuvens, parecia-lhes que a branca espuma era feita de milhões de cisnes que nadavam no mar.
Quando o sol subiu mais no céu, Elisa viu lá adiante uma região montanhosa que parecia flutuar no ar, com massas brilhantes de gelo boiando na água; no meio erguia-se um castelo talvez com uma milha de extensão, com colunatas esplêndidas que se erguiam umas sobre as outras, e enquanto lá embaixo ondulavam bosques de palmeiras, e flores brilhantes, grandes como rodas de moinho. Perguntou aos cisnes se era aquele o país a que se dirigiam, mas eles sacudiram a cabeça, porque o que ela via era o esplêndido palácio aéreo, sempre cambiante, da Fada Morgana, onde mortal algum podia entrar. Enquanto ela olhava para a montanha, castelo, bosques, tudo desapareceu, e o que surgiu diante dala foram vinte igrejas, todas muito semelhantes entre si, com suas torres altaneiras e janelas em ogiva. Chegou a imaginar que ouvia o som do órgão- mas era o marulho das vagas. E quando se aproximavam das igrejas, elas se transformaram em uma frota que navegava lá embaixo; e ao olhar novamente para baixo; era apenas um nevoeiro que brilhava sobre o oceano. E assim teve Elisa uma contínua mudança diante dos olhos, até que afinal avistou a verdadeira terra à qual iam aportar. Erguiam-se la belíssimas montanhas azuis, e florestas de cedros, e cidades, e palácios. Muito antes que o sol chegasse ao ocaso sentava-se ela sobre o rochedo, em frente de uma grande caverna, diante da qual se estendia um delicado tapete verde, formado de plantas rasteiras.
-Vamos ver com que vais sonhar esta noite- disse o irmão mais novo, mostrando-lhe o seu quarto.
- Deus permita que eu possa sonhar com o meio de libertá-los! - disse ela.
E, possuída daquele pensamento, orou fervorosamente, pedindo auxílio; e até no sono continuou a rezar. Pareceu-lhe então que ia voando muito alto, para o palácio da Fada Morgana. E a fada saiu-lhe ao encontro, linda e radiante. E mesmo assim , a fada era exatamente como aquela velha que lhe dera frutinhas no mato, e lhe falara nos cisnes coroados de ouro.
- Teus irmãos podem ser libertados - disse ela. - Mas tens coragem e perseverança? A água é sem dúvida mais branda do que tuas mãos delicadas, e contudo ela muda a forma das pedras; mas a água não sente as dores que teus dedos hão de sentir. A água não tem coração, e não podes sofrer a agonia e os tormentos que terás de suportar. Vês estas urtigas bravas? Pois ao redor da caverna em que dormes há muitas desta espécie; só essas, e as que nascem nos túmulos do cemitério é que servem: não te esqueças disto. Deves colhê-las, ainda que te queimem as mãos até fazer bolhas. Tens de quebrar a urtiga com os pés, e verás que depois de bem pisoteada ela dá uns fios; desses fios tecerás onze camisas de mangas compridas: atira-as sobre os onze cisnes, e estará quebrado o encanto. Mas lembre-se bem: desde o momento em que começares este trabalho, até que o terminares, não deves falar, nem que leves anos a tecer. A primeira palavra que pronunciares atravessará o coração dos teus irmãos, como um punhal envenenado. A vida deles depende da tua língua. Lembra-te bem de tudo isto!
Tocou a mão de Elisa com a urtiga: ardia como fogo e a menina acordou com a dor. Era dito; e perto do lugar onde dormira estava uma urtiga semelhante à que vira no sonho. Caiu de joelhos e deu graças: e saiu logo da caverna, para começar o trabalho.
Com as mãos delicadas arrancou as urtigas terríveis. Queimava como fogo, abrindo-lhe grandes bolhas nos braços e nas mãos. Mas a menina achava que devia suportar tudo com alegria, se com isso podia libertar os irmãos. Depois espicaçou as urtigas, haste por haste, com os pés nus, e obteve uma fibra verde.
Ao sol posto chegaram os irmãos, que ficaram muito assustados de a encontrar muda. Pensaram em algum novo feitiço da malvada madrasta; mas quando lhe viram as mãos, compreenderam o que ela estava fazendo para salvá-los, e mais moço chorou. E onde caíram as suas lágrimas ela não sentia mais dores, e as bolhas secaram.
Passou a noite inteira trabalhando, porque não poderia dormir enquanto não libertasse os irmãos. No dia seguinte, enquanto os cisnes estavam longe, ela, na sua solidão, continuava a trabalhar; mas nunca o tempo correra tão rapidamente como agora!
Já estava pronta uma camisa de malha, e ela começou a segunda.
Foi então que entre o rochedos retiniu uma trompa de caça. O som vinha cada vez mais perto; ela ouvia o latido dos cães, e entrou , receosa, na caverna; reuniu em um montão as urtigas que colhera e preparara, e sentou-se sobre o fardo. No mesmo instante um grande cão saiu aos saltos dos barrancos; e mais outro, e outros ainda seguiram. Latiam furioso, e recuavam, e tornavam avançar. Dentro de poucos minutos estavam diante da caverna todos os caçadores, e o mais belo de todos era o rei do país. Aproximou-se de Elisa, porque nunca vira donzela mais formosa.
- Como viste parar aqui, linda menina?- perguntou ele.
Ela sacudiu a cabeça, porque não podia falar- isso custaria a liberdade e a vida dos irmãos. E escondia as mãos debaixo do avental, para que o rei não visse o que padecia.
- Vem comigo- disse ele. - Não podes ficar aqui. Se és tão boa como bela, dar-te-ei vestidos de veludo e de seda, e uma coroa de ouro; ficarás morando no meu castelo, e serás rainha.
E ele a levantou do chão e colocou-a sobre o seu cavalo. Elisa chorava e torcia as mãos; mas o rei disse:
- Eu só desejo a tua felicidade; um dia me agradecerás.
E se foi a galope, por entre as montanhas, levando-a consigo; e os caçadores galopavam atrás dele.
Quando o sol desceu aparecia diante deles a cidade realenga, linda, com suas igrejas e cúpulas. E o rei levou-a para o castelo, onde grandes fontes esguichavam água nos altos vestíbulos de mármore, e todas as paredes e tetos era cobertos de formosas pinturas. Mas Elisa não tinha olhos para nada disso...Só o que fazia era chorar e suspirar. Deixou, passivamente, que as criadas lhe vestissem os trajes reais, e entretecessem de pérolas seus cabelos, e enfiassem ricas luvas nas suas mãos empoladas.
E, quando ela se apresentou, em traje de gala, estava tão deslumbrante de beleza que toda corte lhe fez as mais profundas reverencias. E o rei escolheu-a para noiva, a despeito do Conselheiro, que sacudia a cabeça, dizendo em cochichos que a lindíssima e jovem donzela era certamente alguma feiticeira, que cegara os olhos e desencaminhara o coração do rei.
Mas o rei não lhe deu ouvidos; ordenou que rompesse a música, e fossem servidos os mais deliciosos pratos, e que as mais lindas moças dançassem diante deles. E, atravessando com ela jardins perfumados, conduziu-a aos seus salões magníficos; e ainda assim nem sequer um sorriso lhe descerrou os lábios, nem iluminou os olhos: ela permanecia de pé, estátua viva da tristeza. Então o rei abriu uma porta, junto aos apartamentos que lhe tinha destinado; e ela viu um quartinho todo forrado de magníficas tapeçarias verdes, e muito parecido com a caverna onde ele a encontrara. No chão estava o feixe de fibras de urtiga que ela preparara para as camisas, e pendia da parede a camisa que já estava pronta. Um dos caçadores trouxera aqueles objetos, como curiosidade.
- Aqui poderás imaginar que estás na tua antiga morada- disse-lhe o rei. - Aqui está também o trabalho em que te ocupavas lá; talvez te pareça divertido recordar aquele tempo.
Vendo todas aquelas coisas, tão chegada ao seu coração, um sorriso veio brincar nos lábios de Elisa, e subiu-lhe a cor às faces. Pensou na libertação dos irmãos e beijou a mão do rei. Ele abraçou-a com carinho e determinou que a festa do casamento fosse anunciada pelos sinos de todas as igrejas. A linda moça muda achada no bosque ia tornar-se rainha daquele país.
Então o Conselheiro murmurou ao ouvido do rei palavras maldosas; mas essas palavras não lhe penetraram no coração. E fez-se o casamento. A coroa que puseram na cabeça de Elisa pesava sobre a sua fronte; mas um peso maior lhe oprimia o peito e ela não sentia a dor física. Seus lábios estavam mudos, porque uma só palavra poderia custar a vida àqueles que tanto amava; mas os seus olhos testemunhavam profundo amor ao belo e bom rei que fazia tudo para lhe ser agradável. Cada dia o amava mais. Oh, se pudesse falar-lhe, contar-lhe seu tormento! Devia continuar muda, porém, e muda devia terminar a sua obra. Por isso, todas as noites saía mansamente da cama e corria para o quartinho decorado como a caverna, e tecia uma camisa após outra. Mas quando chegou à sétima terminaram-se as fibras.
Ela sabia que no cemitério havia daquela urtiga, mas tinha de colhê-la por suas mãos. como poderia fazê-lo?
"Ora, que é a dor dos meus dedos, comparada com o tormento que sofro no coração?- pensou.- É preciso que eu tenha coragem. Nosso Senhor não me abandonara´."
Angustiada como se estivesse cometendo uma ação má, desceu silenciosamente ao jardim numa noite de luar, percorreu as longas avenidas que separavam os canteiros, saiu para as ruas solitárias e chegou ao cemitério. Lá, sobre uma das grandes lousas, viu um grupo de bruxas horrendas que se despojaram de seus andrajos como se quisessem banhar-se e começaram a cavar com os dedos compridos e magros as sepulturas recentes, para retirar os cadáveres. Elisa ateve de passar muito perto delas. Fitaram-na com os olhos malignos, mas a jovem rainha rezou as suas orações, colheu um punhado de urtigas e voltou para o castelo.
Somente uma pessoa a tinha visto; o Conselheiro, que ficara acordado enquanto os outros dormiam. Sua opinião estava agora confirmada; a rainha não era o que devia ser; era uma feiticeira, e por isso tinha seduzido o rei e todo o povo.
O Conselheiro disse ao rei o que vira e o que temia; e quando aquelas duras palavras saíram de sua boca, duas grossas lágrimas correram pelas faces do rei, que voltou para os seus aposentos com a dúvida no coração. À noite, o rei fingiu dormir, mas o sono não lhe vinha, e ele viu quando Elisa se levantou; o mesmo aconteceu nas outras noites, e cada vez ele a seguia silenciosamente e a via desaparecer no quartinho ao lado.
Dia a dia o seu rosto se anuviava mais. Elisa o percebeu mas não compreendia a razão daquela mudança, e a dor que ela lhe causava somou-se à que sofria por causa de seus irmãos. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto e caíam sobre a púrpura real; e ali ficavam, como diamantes esparso. E todas as que viam aquele esplendor desejavam também ser rainhas.
Entretanto, o seu trabalho estava quase no fim. Faltava acabar apenas uma das camisas, quando verificou que a fibra não chegava. Mas uma vez- a última- tinha de ir ao cemitério para colher algumas urtigas. Lembrava-se com terror daquela excursão solitária, e das medonhas visões que tinha tido, mas sua vontade era firme, porque confiava na Providência.
E saiu; mas o rei e o Conselheiro a seguiram. Viram-na entrar pelo portão do cemitério, e o rei, mortalmente triste, supôs também que ela fosse uma feiticeira.
- O povo é que há de julgá-la! - disse ele.
E o povo condenou-a à fogueira.
E a rainha foi arrancada do suntuoso palácio do rei, e encerrada em uma cela escura e úmida, onde ululava o vento, entrando pelas grades da janela. Para substituir os veludos e as sedas, deram-lhe o feixe de urtigas que tinha colhido; seria o seu travesseiro; por cobertor teria as duras e ásperas camisas que tinha tecido. Não poderiam, na verdade, ter-lhe dado coisa alguma que tivesse mais valor a seus olhos! Recomeçou a tecer e continuou a rezar. Lá fora, os moleques cantavam canções escarninhas em frente à sua janela; e nem uma única alma a consolava com uma palavra de amor.
À tardinha ouviu Elisa um zunido de asas perto da janela- era um cisne, era o irmão mais novo. Descobrira-a afinal, e ela soluçava de alegria, posto que seria aquela sem dúvida a última noite de sua vida. Mas é que agora seu trabalho estava quase acabado, e seus irmãos aparecera ali!
Não era ainda dia; antes de uma hora não nasceria o sol. Os onze irmãos apresentaram-se diante do portão do castelo, pedindo uma audiência ao rei. Mas isso era impossível, segundo lhes disseram: o rei dormia, e ninguém iria acordá-lo, pois que ainda era noite. Os irmãos pediram, ameaçaram, vieram as sentinelas do palácio real, até o próprio rei veio saber que discussão era aquela. Mas nesse momento o sol nasceu, e o irmãos se sumiram: apenas se viam onze cisnes voando por sobre o castelo.
Todo o povo acorreu às portas da cidade para ver queimar a bruxa. Um cavalo velho e magro puxava a carroça onde ia Elisa. Tinham-na vestido com uma túnica de pano grosseiro, e seus lindos cabelos pendiam soltos em redor da bela cabeça; as faces de Elisa estavam pálidas, seus lábios moviam-se de leve numa oração muda enquanto tecia com os dedos a fibra verde. Nem a caminho da morte deixava de continuar a tarefa começada. As dez camisas já feitas estavam a seus pés e ela tecia a última. O populacho a insultava:
- Olhem a bruxa, como resmunga! Não é um livro de orações que ela tem na mão, é a sua bruxaria infame. Tirem-lha!
E se lançavam contra a carroça, tentando destruir o trabalho da rainha. Então vieram voando onze cisnes brancos, que pousaram em círculo ao redor dela na carroça, batendo as asas. A multidão recuou assombrada.
- É sinal do céu. Sem dúvida ela é inocente! - murmuraram alguns, mas não se atreviam a dizê-lo em voz alta.
Nesse momento o carrasco agarrou-a pela mão. E foi então que ela jogou, a toda presa, as onze camisas por cima dos cisnes, que se transformaram imediatamente em onze garbosos príncipes; mas o mais moço deles tinha uma asa de cisne no lugar de um dos braços, porque faltava uma manga na sua camisa. A rainha não pudera terminá-la.
- Agora sim, posso falar- disse ela. - Sou inocente!
E o povo, ao ver o que sucedera, inclinou-se diante dela como diante duma santa; mas Elisa caiu sem sentidos nos braços de seus irmãos, de tal modo a espera, a angústia e a dor a haviam extenuado.
- Sim, ela é inocente!- disse o irmão mais velho.
E contou toda a história. Enquanto falava, espalhava-se pelo ar um perfume como de milhões de rosas, pois cada um dos troncos da fogueira tinha lançado raízes e galhos. Formara-se ali uma moita embalsamada, alta e grande, com rosas vermelhas; no alto, uma flor de alvura deslumbrante brilhava como uma estrela. O rei colheu a flor e a depôs sobre o peito de Elisa. Então ela voltou a si com o coração tranquilo e cheio de felicidade.
E todos os sinos da cidade replicaram sem que ninguém os tocasse, e o ar se encheu de pássaros. O regresso ao castelo foi um cortejo nupcial tão esplêndido como nenhum rei jamais tivera.
FIM
A CORRIDA - CONTOS DE ANDERSEN
Havia um prêmio , ou antes, dois prêmios, um grande outro menor, para quem desenvolvesse maior velocidade. Esta, porém, devia ser comprovada não em uma única corrida, mas durante o ano inteiro.
- Eu ganhei o primeiro prêmio- disse o esquilo. É claro que há de haver justiça, quando temos no júri parentes e bons amigos. Mas o que me parece quase insultante é que a tartaruga tenha obtido segundo!
- Não, senhor- declarou o poste que assistira à distribuição dos prêmios. - Deve-se considerar também o esforço, a boa vontade. Esta é pelo menos a opinião de muitas pessoas respeitáveis. E eu compreendo perfeitamente isso. É verdade que a tartaruga levou seis meses para atravessar o portal da casa, mas também é certo que se mutilou nessa passagem: na precipitação - porque para ela aquilo foi precipitação - em que ia, quebrou a rótula. Ela se dedicou de corpo e alma a essa corrida, e até correu com a casa nas costas. Ora, tudo isso é muito interessante, e por isso mesmo ela obteve o segundo prêmio.
- Pois podiam bem ter-me contemplado - disse a andorinha. - Creio que ninguém ainda se mostrou nem mais veloz nem mais impetuosa no vôo. Além disso, quanto tenho viajado, e como vou longe!
- É mesmo, e é isso que a prejudica - retrucou logo o poste. - A senhora é muito volúvel. Toca sempre a viajar pelo estrangeiro, mal aponta aqui o frio. é uma falta de patriotismo. Por isso não foi possível incluí-la na lista.
- Então, se eu ficasse o inverno inteiro metida no brejo, se eu dormisse ali todo esse tempo, teria sido considerada no concurso?
- Se a senhora nos trouxer um atestado da Velha do Brejo, dizendo que dormiu metade do tempo em território da pátria, será tomada em consideração, sim.
Foi quando se ouviu a queixa da tartaruga:
- Acho que eu devia ter tido o primeiro prêmio e não o segundo. Sei que o esquilo correu mas foi de puro medo, receando sempre algum perigo. Eu cá fiz da corrida o objetivo da minha vida, e fiquei aleijada em serviço. Se alguém mereceu o primeiro prêmio, fui eu! Mas isso pouco importa; não ando procurando publicidade, nem costumo gabar-me; pelo contrário, desprezo o elogio em boca própria, que até é vitupério.( É o ato de vituperar e significa insultar, censurar, caluniar, difamar ou expor alguém ao insulto, ou a vergonha ...)
- Pois posso dizer-lhe, com muito acerto, que todos os prêmios, pelo menos no que dependeu do meu voto, foram conferidos com equidade- explicou o velho marco divisório do mato, que fazia parte do júri. - Procedo sempre na devida ordem, com circunspeção e critério. Já tive a honra de fazer parte do júri que distribui os prêmios nada menos de quatro vezes, mas só hoje cheguei a impor a minha opinião. Sempre parti de um princípio determinado: para conferir o primeiro prêmio, regulei-me pelo alfabeto, partindo do começo; e para o segundo, começando do fim. Se querem dar-me um pouco de atenção, explicarei o manejo. Já disse que é este o quinto júri de que faço parte: pois bem, a quinta letra a partir do A, é o E, que é inicial do esquilo, como sabem. Eis por que lhe dei o primeiro prêmio. Ora, a quinta letra, contando do fim para o princípio, é o T( porque o W é o mesmo que dois VV, e o Y vale tanto como um I); veio a suceder, pois, que coube o segundo lugar à tartaruga. no próximo concurso, o F terá o primeiro prêmio, enquanto o segundo lugar tocará ao S. Todas as coisas devem ser feitas com ordem, pois a gente precisa saber sempre a que se ater.
Foi quando falou a mula, e falou assim:
- Eu teria votado em mim mesma, se não fizesse parte do júri. Não devemos levar em conta apenas a velocidade, mas também outras qualidades do indivíduo, como a força de tração, por exemplo. Não era isso, contudo, o que eu queria salientar, nem tampouco a inteligencia do esquilo na fuga, nem a astúcia com que engana os seus perseguidores.Não! Há outro ponto, que não deve ser desdenhado, e ao qual muita gente liga grande importância; refiro-me ao que chamamos estética. Eu tenho em vista, antes de tudo, a beleza. Olhei para as orelhas do esquilo,tão lindas, tão bem conformadas...Dá prazer, na verdade, ver aquelas orelhas- sem falar na cauda! Tive a impressão de me ver a mim mesma nos tempos da infância. E foi assim que dei o meu voto ao esquilo.
- Zzzz...- disse a mosca. - Eu cá quero fazer discurso. Só o que pretendo é dizer uma coisa. Só o que pretendo é dizer que já alcancei mais de um esquilo na corrida. Ainda há pouco tempo esmaguei as pernas traseiras de um esquilo novo, ainda filhote. ia sentada na locomotiva, na frente do trem. Costumo viajar assim, porque é como a gente controla melhor a própria velocidade. Durante o certo tempo ia um esquilo ainda novo correndo diante da locomotiva. Nem de leve imaginava a minha presença ali. Mas afinal, teve de interromper a corrida e sair dos trilhos. foi quando a locomotiva lhe esmigalhou as pernas traseiras, só porque eu ia sentada ali. O esquilo lá ficou deitado, mas eu continuei a corrida. E isso é o que eu entendo por vencer. Mas conto só por contar: não faço caso do prêmio; nem preciso dele!
E enquanto isso, a roseira brava ia falando de si consigo. Ela não dizia nada em voz alta, porque é contrário à sua natureza dar opinião; ia, pois, dizendo lá consigo:
- No meu entender, quem merece o primeiro premio é o raio de sol. O primeiro e também o segundo. O raio de sol voa em um abrir e fechar de olhos, percorrendo todo o imenso espaço que nos separa do firmamento, e chega ao pé de nós ainda com tanta força, que desperta a natureza inteira. E a sua beleza dá cor e perfume às rosas. Ao que parece, os membros do júri nem deram tino disso...Ah! Se eu fosse o raio de sol, havia de aquece-los, até que ficassem torrados! Mas afinal, isso só serviria para os deixar pretos e, se quiserem, que fiquem pretos de outra maneira. O melhor é não dizer nada...Na mata reina a paz.É uma coisa esplendida estar em flor, perfumar, e viver em cânticos e lendas! Seja como for, o raio de sol, pelo menos, há de sobreviver a todos nós.
Nisto a minhoca, que estivera todo o tempo do julgamento a dormir, chegou e perguntou:
- Mas afinal, de que consta o primeiro prêmio?
- Consta do acesso livre a uma horta onde há também aveleiras e nogueiras - respondeu a mula. - Foi minha a proposta. Como o esquilo tinha de ganhar, eu, como membro sisudo e ponderado do júri, considerei a utilidade que teria esse prêmio para o vencedor, Tem ele agora aquilo do que precisa. Quanto à tartaruga, terá o direito de ficar perto do portão, e de saborear o musgo, e gozar a luz do sol. Além disso, ela foi nomeada juiz de corridas. É de muita utilidade ter a gente um perito nessas coisas a que os homens chamam comissão. Eu, por mim, espero muito do futuro, pois que tivemos um excelente começo!
FIM
A MAIS FELIZ- CONTOS DE ANDERSEN
- Que magníficas rosas! - disse a luz do sol. - E cada botãozinho vai desabrochar, e há de ficar tão bonito como estas flores...São as minhas filhas, que despertei para a vida com o meu beijo.
- São minhas filhas - disse o orvalho. - Alimentei-as com minhas lágrimas.
- Pois acho que eu é que sou a mãe - declarou a roseira. - Vocês são apenas os padrinhos: deram-lhes de boa vontade, e cada um conforme seus recursos, esses presentes.
E os três diziam. desejando que cada flor alcançasse a maior felicidade:
- Minhas maravilhosas rosinhas!
Mas somente uma delas poderia obter a máxima felicidade; outra teria de ser a menos feliz de todas. E qual seria a mais feliz?
O vento declarou logo:
- Vou verificá-lo. Andejo por toda parte, vou muito longe, entro pelas frestinhas mais estreitas, conheço o mundo por dentro por fora! Vou ver isso.
E todas as rosas já desabrochadas ouviram essa conversa; cada botãozinho túmido escutou essas palavras.
Nisto atravessou o jardim uma senhora, toda coberta de luto. Colheu uma das rosas - a que lhe pareceu mais bela, a meio desabrochada, fresca e cheia de viço. Levou a flor para o quartinho miserável, silencioso e sombrio onde, ainda há poucos dias, a filha cheia de vida se movia, na maior atividade; e agora ali estava ela, estendida no caixão, branca e imóvel. A mãe beijou a menina morta, beijou a flor entreaberta e pousou-a sobre o peito da filha. Diria que esperava que aquele beijo e a frescura da flor fizesse o coração frio pulsar de novo.
E a rosa parecia crescer. Cada pétala estremecia de íntima alegria. E ela dizia consigo:
- Foi-me reservado um caminho cheio de amor! Chego a ser igual à criaturas humanas: tenho a minha parte no beijo de uma mãe, na sua benção, e hei de entrar no reino desconhecido, sonhando, pousada o peito da morta! Sou, eu, sem nenhuma dúvida , a mais feliz de todas as minhas irmãs!
Andava passeando pelo jardim a velha que arrancava a ervas daninhas dos canteiros e dos caminhos. Também ela contemplou a magnificência da roseira e notou a maior das rosas desabrochadas. Mais uma orvalhada matutina, mais um dia de sol, e as pétalas iam desprender-se. A mulher achou que agora ela devia servir para alguma coisa útil. Apanhou a rosa e embrulhou-a em um pedaço de jornal: em casa havia outras, já desfolhadas, às quais juntaria aquela. Ia misturar tudo aquilo, mais os rapazinhos - a alfazema de flor azul - e faria um pot-pourri, embalsamando tudo com sais. Embalsamado, dissera a velha! Só se embalsamam os reis - e as rosas!
Entraram depois no jardim dois moços: um pintor e um poeta. Cada um deles colheu uma rosa.
- Assim viverá ela, passando de geração em geração- disse ele- enquanto milhões e milhões de rosas murcharem e desaparecerem.
E a rosa dizia consigo:
- Sou mais favorecida que as outras. Eu é que tive o mais belo destino.
Enquanto isso o poeta, olhando para a sua flor, escreveu um poema. Era a biografia da rosa. Ele dizia tudo quanto nela decifrara, pétala por pétala: tudo quanto descobrira naquela rosa. Era um "álbum de amor", uma obra imortal.
- Sim, eu sou imortal! - dizia a rosa. - Sou eu a mais feliz!
No meio daquela pompa toda de rosas, havia uma que ficava quase encoberta pelas outras; estava assim escondida por um acaso feliz, pois era defeituosa: ficara presa de esguelha à haste, e de um lado as pétalas não se tinham desenvolvido completamente: mesmo no centro da flor brotara uma folhinha verde, pequenina e aleijada - coisa que acontece às vezes nas rosas.
- Pobre filhinha! - disse o vento, beijando-lhe a face.
Mas a rosa supunha que aquilo era uma saudação que o vento lhe dirigia, com uma homenagem; sentia-se diferente das outras rosas, e achava que era uma distinção aquela folhinha verde que lhe brotara do interior. Veio pousar-lhe no cálice uma borboleta, que lhe beijou as pétalas, mas a rosa mandou embora aquele pretendente. Apareceu então um grande gafanhoto, que foi acomodar-se em outra rosa, esfregando nela, com empenho, a canela- é assim que os gafanhotos fazem, quando querem dar sinal de vida. Não entendeu a rosa em que pousara, mas compreendeu-o muito bem a outra, a que tinha aquele símbolo de distinção, a folhinha verde. É que o gafanhoto a encarava, e o seu olhar exprimia claramente:
- Amo-te tanto, que desejaria devorar-te!
Certamente era essa aprova mais eloquente de amor que poderia dar o gafanhoto; mas a rosa não desejava ser assim devorada pelo saltão pretensioso: o rouxinol cantava na noite estrelada.
-É para mim, somente para mim que ele canta- dizia ela. - E sou certamente a mais feliz! Pois não me foi conferido este sinal particular, que me distingue logo de todas as minhas irmãs? Sim, sou eu a mais feliz de todas!
Nesse instante entraram no jardim dois cavaleiros, fumando charutos. Conversavam sobre o fumo e as rosas. Dizem que as rosas não suportam a fumaça do tabaco; mudam de cor, e ficam verdes, e aqueles dois homens queriam verificar o fenômeno.
Não tinham, porém, coragem de fazer a experiência em uma daquelas rosas esplêndida, que floresciam na roseira: escolheram, pois, a que tinha um defeito- ou era qualidade?
- Quanta distinção! - pensou a rosa. - Sou extremamente feliz, sou a mais feliz de todas!
E, tanto pela fumaça do charuto como por convicção, ela foi ficando verde.
Outra rosa, ainda quase em botão, talvez a mais bela de toda a roseira, obteve o lugar de honra no ramalhete artístico que o jardineiro arranjou. levou-a assim ao jovem dono da casa, e com ele entrou na carruagem. Como era a mais bela, ostentava-se no meio das outras flores, e da magnífica folhagem verde. Foi tomar parte em festas e esplendores. Lá estavam homens e mulheres, em trajes da gala, iluminados por milhares de lâmpadas. E a música ressoava.---------------------
No meio daquele mar de luzes, quando a jovem dançarina preferida adejava no palco, em meio da alegria delirante do público, caiu-lhe aos pés uma chuva de flores- ramalhetes e mais ramalhetes. entre eles estava aquele que levava engastada no centro, como uma gema. a rosa magnífica. Sentiu-se então feliz, indizivelmente feliz! Viera voando, no esplendor daquela honra sem par, e, mal tocando o solo, entrou no turbilhão da dança. E saltava, e esvoaçava sobre o palco, embora separada da haste, que se partira no momento da queda.
Contudo não chegou às mãos da dançarina festejada: rolou para trás dos bastidores, onde um mecânico a ergueu do chão. Notou-lhe a beleza e o aroma, mesmo assim decepada. Meteu-a no bolso e quando, noite alta, chegou a casa, colocou-a em um copo que encheu d'água.
E a rosa passou o resto da noite boiando na água. de manhã cedo ele a depôs diante da avózinha, já sentada na sua cadeira de enfermeira. E, vendo a rosa magnifica, embora já sem haste, a velhinha impotente alegrou-se, aspirando-lhe o perfume. E disse:
- Em vez de ir ter à morada da moça bela e rica, vieste dar em casa de uma pobre velha...mas para mim és como uma roseira inteira.
E mirava a rosa com uma alegria infantil. Recordava, talvez, a própria mocidade, há tanto tempo esvaída...
- Havia um buraco na vidraça- disse o vento.
- Entrei facilmente por ali, e vi o brilho que luzia nos olhos da anciã. E vi também a rosa de haste partida, no copo cheio d'água- a mais feliz , e é a fé que dá a bem- aventurança. A última rosa achava que nenhuma das outras poderia ter sido mais feliz do que ela.
- Sobrevivo a todas elas. Sou a derradeira; sou a única, a mais querida da mãe-roseira.
E a roseira, por vez dizia:
- Sou a mãe das rosas!
- Não! Sou eu! - dizia a luz do sol.
- Sou eu! Eu! - exclamava o orvalho.
Mas o vento interveio:
- A cada um de nós a sua parte. E a cada um tocará também alguma coisa na recompensa.
E, assim dizendo, espalhou as pétalas, que foram para longe da roseira, lá para onde repousavam as gotas de orvalho e brilhavam os raios do sol.
- Eu também tive o meu quinhão- continuou ele a murmurar. - Tocou-me a história das rosas, que espalharei por todos os cantos do mundo...
Qual foi, afinal, a mais feliz de todas?
Dize-o tu, leitor: eu já contei o que sabia.
FIM
- São minhas filhas - disse o orvalho. - Alimentei-as com minhas lágrimas.
- Pois acho que eu é que sou a mãe - declarou a roseira. - Vocês são apenas os padrinhos: deram-lhes de boa vontade, e cada um conforme seus recursos, esses presentes.
E os três diziam. desejando que cada flor alcançasse a maior felicidade:
- Minhas maravilhosas rosinhas!
Mas somente uma delas poderia obter a máxima felicidade; outra teria de ser a menos feliz de todas. E qual seria a mais feliz?
O vento declarou logo:
- Vou verificá-lo. Andejo por toda parte, vou muito longe, entro pelas frestinhas mais estreitas, conheço o mundo por dentro por fora! Vou ver isso.
E todas as rosas já desabrochadas ouviram essa conversa; cada botãozinho túmido escutou essas palavras.
Nisto atravessou o jardim uma senhora, toda coberta de luto. Colheu uma das rosas - a que lhe pareceu mais bela, a meio desabrochada, fresca e cheia de viço. Levou a flor para o quartinho miserável, silencioso e sombrio onde, ainda há poucos dias, a filha cheia de vida se movia, na maior atividade; e agora ali estava ela, estendida no caixão, branca e imóvel. A mãe beijou a menina morta, beijou a flor entreaberta e pousou-a sobre o peito da filha. Diria que esperava que aquele beijo e a frescura da flor fizesse o coração frio pulsar de novo.
E a rosa parecia crescer. Cada pétala estremecia de íntima alegria. E ela dizia consigo:
- Foi-me reservado um caminho cheio de amor! Chego a ser igual à criaturas humanas: tenho a minha parte no beijo de uma mãe, na sua benção, e hei de entrar no reino desconhecido, sonhando, pousada o peito da morta! Sou, eu, sem nenhuma dúvida , a mais feliz de todas as minhas irmãs!
Andava passeando pelo jardim a velha que arrancava a ervas daninhas dos canteiros e dos caminhos. Também ela contemplou a magnificência da roseira e notou a maior das rosas desabrochadas. Mais uma orvalhada matutina, mais um dia de sol, e as pétalas iam desprender-se. A mulher achou que agora ela devia servir para alguma coisa útil. Apanhou a rosa e embrulhou-a em um pedaço de jornal: em casa havia outras, já desfolhadas, às quais juntaria aquela. Ia misturar tudo aquilo, mais os rapazinhos - a alfazema de flor azul - e faria um pot-pourri, embalsamando tudo com sais. Embalsamado, dissera a velha! Só se embalsamam os reis - e as rosas!
Entraram depois no jardim dois moços: um pintor e um poeta. Cada um deles colheu uma rosa.
- Assim viverá ela, passando de geração em geração- disse ele- enquanto milhões e milhões de rosas murcharem e desaparecerem.
E a rosa dizia consigo:
- Sou mais favorecida que as outras. Eu é que tive o mais belo destino.
Enquanto isso o poeta, olhando para a sua flor, escreveu um poema. Era a biografia da rosa. Ele dizia tudo quanto nela decifrara, pétala por pétala: tudo quanto descobrira naquela rosa. Era um "álbum de amor", uma obra imortal.
- Sim, eu sou imortal! - dizia a rosa. - Sou eu a mais feliz!
No meio daquela pompa toda de rosas, havia uma que ficava quase encoberta pelas outras; estava assim escondida por um acaso feliz, pois era defeituosa: ficara presa de esguelha à haste, e de um lado as pétalas não se tinham desenvolvido completamente: mesmo no centro da flor brotara uma folhinha verde, pequenina e aleijada - coisa que acontece às vezes nas rosas.
- Pobre filhinha! - disse o vento, beijando-lhe a face.
Mas a rosa supunha que aquilo era uma saudação que o vento lhe dirigia, com uma homenagem; sentia-se diferente das outras rosas, e achava que era uma distinção aquela folhinha verde que lhe brotara do interior. Veio pousar-lhe no cálice uma borboleta, que lhe beijou as pétalas, mas a rosa mandou embora aquele pretendente. Apareceu então um grande gafanhoto, que foi acomodar-se em outra rosa, esfregando nela, com empenho, a canela- é assim que os gafanhotos fazem, quando querem dar sinal de vida. Não entendeu a rosa em que pousara, mas compreendeu-o muito bem a outra, a que tinha aquele símbolo de distinção, a folhinha verde. É que o gafanhoto a encarava, e o seu olhar exprimia claramente:
- Amo-te tanto, que desejaria devorar-te!
Certamente era essa aprova mais eloquente de amor que poderia dar o gafanhoto; mas a rosa não desejava ser assim devorada pelo saltão pretensioso: o rouxinol cantava na noite estrelada.
-É para mim, somente para mim que ele canta- dizia ela. - E sou certamente a mais feliz! Pois não me foi conferido este sinal particular, que me distingue logo de todas as minhas irmãs? Sim, sou eu a mais feliz de todas!
Nesse instante entraram no jardim dois cavaleiros, fumando charutos. Conversavam sobre o fumo e as rosas. Dizem que as rosas não suportam a fumaça do tabaco; mudam de cor, e ficam verdes, e aqueles dois homens queriam verificar o fenômeno.
Não tinham, porém, coragem de fazer a experiência em uma daquelas rosas esplêndida, que floresciam na roseira: escolheram, pois, a que tinha um defeito- ou era qualidade?
- Quanta distinção! - pensou a rosa. - Sou extremamente feliz, sou a mais feliz de todas!
E, tanto pela fumaça do charuto como por convicção, ela foi ficando verde.
Outra rosa, ainda quase em botão, talvez a mais bela de toda a roseira, obteve o lugar de honra no ramalhete artístico que o jardineiro arranjou. levou-a assim ao jovem dono da casa, e com ele entrou na carruagem. Como era a mais bela, ostentava-se no meio das outras flores, e da magnífica folhagem verde. Foi tomar parte em festas e esplendores. Lá estavam homens e mulheres, em trajes da gala, iluminados por milhares de lâmpadas. E a música ressoava.---------------------
No meio daquele mar de luzes, quando a jovem dançarina preferida adejava no palco, em meio da alegria delirante do público, caiu-lhe aos pés uma chuva de flores- ramalhetes e mais ramalhetes. entre eles estava aquele que levava engastada no centro, como uma gema. a rosa magnífica. Sentiu-se então feliz, indizivelmente feliz! Viera voando, no esplendor daquela honra sem par, e, mal tocando o solo, entrou no turbilhão da dança. E saltava, e esvoaçava sobre o palco, embora separada da haste, que se partira no momento da queda.
Contudo não chegou às mãos da dançarina festejada: rolou para trás dos bastidores, onde um mecânico a ergueu do chão. Notou-lhe a beleza e o aroma, mesmo assim decepada. Meteu-a no bolso e quando, noite alta, chegou a casa, colocou-a em um copo que encheu d'água.
E a rosa passou o resto da noite boiando na água. de manhã cedo ele a depôs diante da avózinha, já sentada na sua cadeira de enfermeira. E, vendo a rosa magnifica, embora já sem haste, a velhinha impotente alegrou-se, aspirando-lhe o perfume. E disse:
- Em vez de ir ter à morada da moça bela e rica, vieste dar em casa de uma pobre velha...mas para mim és como uma roseira inteira.
E mirava a rosa com uma alegria infantil. Recordava, talvez, a própria mocidade, há tanto tempo esvaída...
- Havia um buraco na vidraça- disse o vento.
- Entrei facilmente por ali, e vi o brilho que luzia nos olhos da anciã. E vi também a rosa de haste partida, no copo cheio d'água- a mais feliz , e é a fé que dá a bem- aventurança. A última rosa achava que nenhuma das outras poderia ter sido mais feliz do que ela.
- Sobrevivo a todas elas. Sou a derradeira; sou a única, a mais querida da mãe-roseira.
E a roseira, por vez dizia:
- Sou a mãe das rosas!
- Não! Sou eu! - dizia a luz do sol.
- Sou eu! Eu! - exclamava o orvalho.
Mas o vento interveio:
- A cada um de nós a sua parte. E a cada um tocará também alguma coisa na recompensa.
E, assim dizendo, espalhou as pétalas, que foram para longe da roseira, lá para onde repousavam as gotas de orvalho e brilhavam os raios do sol.
- Eu também tive o meu quinhão- continuou ele a murmurar. - Tocou-me a história das rosas, que espalharei por todos os cantos do mundo...
Qual foi, afinal, a mais feliz de todas?
Dize-o tu, leitor: eu já contei o que sabia.
FIM
O GARGALO- CONTOS DE ANDERSEN
Na viela estreita e tortuosa, entre outras casas pobres, havia uma casinha de taipa, estreitinha e de considerável altura; maltratara-a tanto o tempo, que já estava se desconjuntando por todos os lados. Abrigava gente pobre, e certamente era a água-furtada (Sotao que abra a janelas para as águas do telhado)parte mais miserável. Ali, mesmo debaixo do telhado, junto da única janelinha, pendia uma gaiola velha e também desconjuntada; e apanhava os raios do sol um passarinho que nem sequer possuía um bebedouro: serviam-lhe a água num gargalo de garrafa, voltado com a boca para baixo, e fechado com uma rolha.
A solteirona que estava ao pé da janela pusera alpiste na gaiola, e o pequenino pintarroxo saltitava de um poleiro para o para o outro, cantando alegremente.
- Sim- disse o gargalo- tu, sim podes cantar...
Cumpre notar que o gargalo não se exprimia como nós: um gargalo não pode falar. Ele pensava lá de si consigo, no seu íntimo, como nós, homens, falamos com os nossos botões. Mas continuou:
- É, tu podes cantar, tens intatos todos os teu membros...Queria que visses o que é a gente perder a parte inferior, e ficar somente com pescoço e boca, e ainda assim com ela fechada por uma rolha, como eu! Isso sim, que não cantarias! E, contudo, é bom que haja gente alegre no mundo. Eu cá não tenho motivos para cantar, e nem posso cantar, mesmo. Mas quando era uma garrafa sã, costumava cantar, quando me esfregavam com uma rolha. Então chamava-se "calhandra(cotovia), uma verdadeira calhandra", e "grande calhandra". Foi quando fiz o piquenique no mato com a família do curtidor, e a filha contratou casamento. Lembro-me como se fosse hoje! Já passei muitos trabalhos na vida; já estive no fogo e na água, no fundo escuro da terra e em lugares mais altos do que a maioria das pessoas pode alcançar...E agora aqui estou, no canto desta gaiola, exposto ao ar e à luz do sol. Sim: acho que valeria a pena ouvir a minha história.
E o gargalo começou a contar a sua história, que era bastante estranha, na verdade. Contava-a para si mesmo, recordando-a silenciosamente lá no seu íntimo. O passarinho cantava alegremente a sua canção, e lá embaixo, na rua, era grande o tráfego e a correria. É que lá cada um pensava nas coisas que lhe diziam respeito- ou em coisa nenhuma. Só o gargalo não deixava de meditar. Lembrou-se da fábrica, do cadinho em brasa onde, com um sopro, o tinham chamado à vida. Lembrava-se ainda que sentira então muito calor, e que deitara olhares para o grande fogão sibilante, que era o seu berço, e sentira um grande desejo de voltar para ali em um pulo. Mas, ao passo que ia resfriando, ia-se sentindo mais à vontade, no sítio onde o tinham deixado. Via-se alinhado em uma fila, com um regimento inteiro de irmãos e irmãs, todos saídos do mesmo fogão; é certo que algumas tinham a forma de garrafas de champanha, outras de cerveja- e isso traz sempre alguma diferença. Mais tarde, lá no mundo, pode acontecer que uma garrafa de cerveja venha a conter o mais delicioso Lacrima Christi, e a champanha se veja cheia de graxa de sapatos; mas ao menos se verá, pelo feitio, para o que a gente nasceu. Nobreza é sempre nobreza, ainda que só contenha graxa no bojo.
Todas as garrafas foram encaixotadas, e com elas a nossa conhecida. Naquela época não lhe passara pela cabeça que havia de terminar a sua carreira reduzida a um gargalo, elevado pelo esforço próprio à categoria de bebedouro, o que é , afinal, uma existência honrosa, pois que sempre a gente representa alguma coisa.
A garrafa só tornou a ver a luz do dia quando, na adega do negociante de vinhos, foi desencaixotada com as companheiras, e lavada pela primeira vez. E que coisa curiosa! Ali estava ela, vazia e sem tampa, com a estranha sensação de que lhe faltava alguma coisa, embora não soubesse o que era. Afinal encheram-na de vinho, e de um vinho excelente. Deram-lhe também uma rolha, e selaram-na. Colaram-lhe no bojo um rótulo que dizia: "Primeira qualidade"; e ela se sentia como se tivesse tirado o primeiro lugar em um exame, Mas o vinho era na verdade bom, e a garrafa também era boa. A gente moça tem queda para a poesia, e ela sentia vibrarem e ressoarem dentro de si coisas que nem sequer conhecia, e que falavam de verdes colinas iluminadas pelo sol, onde cantam e se namoram alegres vinhateiros e vinhateiras. Ah! Como é bela a vida! Pois tudo isso ressoava e cantava dentro da garrafa, tal e qual como se passa com os jovens poetas, que muita vez nem compreendem o que é que canta dentro deles.
Um dia foi comprada. o aprendiz de curtidor viera buscar uma garrafa de vinho, " do melhor". Meteram-na no cesto do farnel, ao lado do presunto, do queijo e do salame. E com ela iam também a manteiga mais fina, o pão mais fofo. A própria filha do curtidor arranjava a merenda no cesto. Era moça e bela, e brincava-lhe o sorriso nos olhos e nos lábios. tinha as mãos macias e brancas- não tão brancas como o pescoço e o peito. Via-se logo que era uma das moças mais lindas da cidade, e, ainda assim, não tinha noivo.
Achava-se o cesto de provisões no colo da moça, quando o carro que levava a família partiu para o mato. O gargalo da garrafa espiava por entre as pontas do guardanapo branco. Na rolha havia um verniz vermelho. A garrafa olhou bem para o rosto da moça; encarou também o jovem marinheiro que ia sentando ao lado dela. Era um amigo de infância, filho de um retratista. Saíra-se muito bem, ainda há pouco tempo, no exame que fizera para primeiro piloto, e no dia seguinte devia partir em um navio que ia para longe, para um país exótico. Enquanto arrumavam o cesto, falavam nisso, e a alegria parecia então desaparecer dos olhos e da boca da bela filha do curtidor.
Passeava os jovens pela floresta verde, e conversavam. O que diriam não o ouvira a garrafa, que ficara no cesto da merenda. Só depois de muito tempo é que ela foi retirada dali, mas já então tinha havido muita alegria. Riam todos, e também a filha do curtidor; mas a moça falava menos que antes, e nas faces brilhavam-lhe duas rosas vermelhas.
O pai pegou na garrafa cheia e no saca-rolhas. Sim, é coisa esquisita, quando desarrolham uma garrafa pela primeira vez, e o gargalo nunca pode esquecer aquele momento solene. Alguma coisa, lá no seu peito, dissera "poc! quando saltou a rolha. E que estranho glu-glu-glu fazia o vinho, ao ser deitado nas taças!
- Vivam! Vivam os noivos! - disse o velho pai.
E os copos foram esvaziados, e o jovem piloto beijou sua bela noiva.
- Sejam muito felizes! - disseram os pais.
O moço encheu de novo, as taças, dizendo:
- Regresso e casamento daqui a um ano!
Esvaziados os copos, apanhou a garrafa, ergueu-a bem alto, e disse:
- Tu, que estiveste presente no dia mais belo da minha vida, não tornarás a servir a mais ninguém!
E atirou-a para o ar.
Naquele instante ,mal poderia a filha do curtidor imaginar que havia de ver outra vez voar aquela garrafa. E contudo, havia de ser assim!
Mas naquele momento a garrafa foi cair no denso caniçal que havia à beira do lago do bosque. O gargalo ainda tinha bem viva recordação do tempo que ali passara, pensando:
- Dei-lhes vinho, e eles me dão água do pantanal. Mas a intenção era boa, isso era....
Agora já não via os noivos, nem os alegre velhos, mas durante muito tempo ainda ouvira seus cantos de regojizo. Finalmente apareceram ali dois filhos de um camponês, que espiaram pelo juncal; descobriram a garrafa e levaram-na. Agora, estava ela bem guardada.
Em casa do camponês, na mata, o filho mais velho, que era marinheiro, estava preparando-se apra uma longa viajem, e tinha vindo passar o dia com a família, em despedida. Naquele momento a mãe empacotava algumas coisas que ele devia levar; e o pai iria levar-lhe, à noite, o pequeno fardo, quando fosse vê-lo pela última vez, na cidade. Já fora embrulhada uma garrafinha de aguardente, infuso de ervas, quando entraram os meninos com a outra garrafa, maior e mais resistente, que acabavam de achar. Disseram à mãe que naquela caberia mais infusão, e que "aguardente era coisa muito boa para o estômago, porque continha ervas". Achavam pois que era a garrafa grande, e não a pequena, que devia ir.
E foi assim que ela recomeçou a peregrinação. Foi para bordo com Peter Jensen, foi para bordo do mesmo navio em que navegava o jovem piloto. Mas este não viu a garrafa, nem a teria reconhecido, se a visse, e nem sequer imaginar que era a mesma com que tinham celebrado o noivado, e dado vivas ao regresso.
É verdade que ela já não oferecia vinho; mas abrigava agora no bojo uma coisa igualmente boa. Quando Peter Jensen a tirava da mala, os companheiros a chamavam de "farmácia", porque ela sempre lhes oferecia um excelente remédio, o remédio que curava o estômago. Fôra uma quadra cheia de alegria, e a garrafa cantava, quando a acariciavam com a rolha: chamavam-na então a grande calhandra, a calhandra de Peter Jensen.
Passaram-se longos dias, e meses. A garrafa já se achava vazia, em um canto. Aconteceu então - se foi na ida ou na volta, não sabia dizer a garrafa, porque nunca desembarcara - aconteceu, porém, que se levantou uma tempestade. enormes vagalhões se acercavam, pesados e sombrios, e erguiam e sacudiam o navio. Partiu-se o masto grande. Uma vaga rebentou uma da tábuas do costado. As bombas não davam vencimento. E a altas horas da noite o navio afundou. No ultimo instante o jovem piloto escreveu em uma folha de papel:" Em nome de Cristo, estamos naufragando!" Escreveu o nome da noiva, o seu, e o do navio; pôs a folha em uma garrafa que havia enchido, outrora, para ele e para noiva, a taça da alegria e da esperança. E agora anda aquela a garrafa balouçando nas ondas, carregando no bojo a mensagem de despedida e a notícia fatal.
Afundou-se o navio, e com ele a tripulação, enquanto a garrafa voava como uma ave; afinal ela escondia em si um coração, uma carta de amor. O sol nasceu e tornou a se esconder. A garrafa sentia aquele mesmo anseio que experimentava quando nasceu nas brasas do fogão; sentia desejos de voar outra vez para o lugar de onde saíra - tinha saudades.
Passou por calmarias e sofreu novas tempestades. Contudo não bateu em nenhum recife, nem foi devorada por nenhum tubarão. Andou boiando, dias e anos, ora para o lado do Norte, ora para o Sul, ao sabor da corrente. Afinal, ela era livre, senhora de seus atos; mas o certo é que até disso a gente pode sentir-se farta.
A folha escrita, o último adeus do noivo à noiva, levaria somente pesar, se um dia caísse nas mãos da destinatária; mas onde estavam aquelas mãos tão brancas e tão macias, que naquele dia do noivado tinham estendido sobre a fresca relva da mata verde a toalha tão branca? Onde estava a filha do curtidor? Sim, onde estava o país, e qual era, dentre os outros países, o que lhe ficava ao lado? Não o sabia a garrafa; boiava, e continuava boiando, até sentir-se farta daquelas andanças, que não eram afinal, do seu ofício. E, ainda assim, prosseguiu vagando, até que um dia alcançou terra, num país estranho. Não entendia uma palavra do que ali diziam; não era aquele o idioma que ouvira falar outrora. E,quando a gente não entende a língua, muita coisa se perde!
A garrafa foi pescada e examinada por todos os lados. retiraram o bilhete que trazia, e também este foi examinado e virado de todos os lados; mas as pessoas daquele lugar não entendiam o que estava escrito naquele papel. Compreenderam, é claro , que a garrafa tinha sido arrojada ao mar, e que o papel dizia alguma coisa a esse respeito, mas que diria ele? Isso ninguém podia saber. Tornaram pois a colocar o bilhete dentro da garrafa e puseram-na em cima de um grande armário. E ali ficou ela, na vasta sala de um casarão.
Cada vez que aparecia algum forasteiro o bilhete era retirado da garrafa; viravam-no e reviravam-no, e o texto, escrito a lápis, ai ficando de dia a dia menos legível. Afinal já não se via letra alguma no papel. E por mais um ano viveu a garrafa sobre o armário; dali a levaram para o sótão; e foi-se cobrindo de poeira e de teias de aranha.
Como se lembrava agora de dias melhores, do tempo em que, na fresca mata verde, oferecera vinho tinto; e dos anos que levara, dançando nas ondas do mar, guardando no seio um segredo, uma carta, um suspiro de adeus! E lá ficou naquele sótão vinte anos bem contados. Poderia ter ficado mais tempo, se não fora a reforma da casa. Demolindo o telhado, viram a garrafa. Falaram a seu respeito, é verdade; ela, porém, não entendia a língua - isso não se aprende, nem em vinte anos, só pelo fato de ficar lá no sótão.
- Se me tivessem deixado na sala- pensava ela- provavelmente saberia agora o idioma daqui.
Foi então lavada e enxaguada, o que era bem necessário. Viu-se clara e transparente, remoçada, apesar da idade; mas o bilhete que conservara fielmente, perdeu-se na lavagem.
Encheram-na de sementes. Ela não compreendia o que aquilo representava. Foi tampada e embrulhada com cuidado; tanto, que não via mais luz de vela nem da lanterna, e menos ainda o sol ou a lua. Ora, quando se viaja, é preciso ver alguma coisa; mas a garrafa nada viu; contudo, fez o que era mais importante; partiu e chegou ao lugar do seu destino, e lá foi enfim desembrulhada.
- Quanto trabalho tiveram eles, lá no estrangeiro, com esta garrafa! - ouviu ela que alguém dizia. - E agora, hão de ver que está quebrada!...
Não não estava, não. E a garrafa entendia o que diziam: era a língua que ouvira ao pé do fogão, e em casa do negociante de vinhos, e na mata e no navio; a única língua velha e boa, que a gente podia entender! Regressara à sua terra, e aquele idioma era para ela uma saudação de boas-vindas. De tanta alegria, quase saltou das mãos que a desenrolavam. Nem notou que lhe tiravam a rolha, e despejavam o conteúdo; transportaram-na depois para o porão, onde ficou guardada e esquecida. Mas a terra da gente é sempre o melhor lugar do mundo, ainda que seja para viver em um porão!
Nunca lhe passaria pela mente a ideia de verificar quanto tempo passou ali. Ficou bem acomodada, e isso durante anos e anos. Finalmente um dia desceu alguém, que levou todas as garrafas que havia no porão, e ela lá se foi com as outras.
Lá fora, no jardim, havia uma grande festa. Tinham feito fieiras de lâmpadas acesas, suspensas nos galhos; lanternas de papel, postas sobre colunas, pareciam grandes tulipas brilhantes. A noite estava esplêndida, clara e serena. As estrelas cintilavam. Era lua nova, mas avistava-se no céu o disco inteiro, azul-acinzentado, dourado na beira - um belo espetáculo para os que tinham boa vista.
Até os caminhos mais distantes do jardim tinham sido iluminados, de modo que as pessoas podiam andar por toda a parte. Entre a folhagem das sebes havia garrafa com velas acesas, e entre elas estava também aquela que já conhecemos, e que havia de acabar a carreira feito bebedouro. Ela achava tudo aquilo maravilhosamente belo: encontrava-se de novo ao ar livre, via-se outra vez no meio da alegria e da festa, ouvia cantos e música, e a algazarra e o murmúrio de muitas pessoas que passavam, vindo principalmente da parte do jardim onde ardiam as lâmpadas, e as lanterna de papel ostentavam a pompa de suas cores. É verdade que estava em um caminho solitário, mas isso também tinha certo encanto, todo contemplativo: sustentava no gargalo sua vela, pois estava ali para utilidade e prazer dos outros, como é nosso dever. E num momento assim a gente até chega a esquecer os vinte anos passados no sótão, e esquecer também faz bem.
Passou junto dela um casal de namorados, como outrora aqueles noivos na floresta, o piloto e a filha do curtidor. Pareceu-lhe que viva tudo aquilo pela segunda vez. passeavam no jardim não somente os convidados, mas também outras pessoas, às quais fora permitindo olhar para aqueles, e admirar toda aquela pompa. Entre estas andava uma solteirona, que vivia só no mundo, pois não tinha parentes. E passavam-lhe pela cabeça os mesmos pensamentos que acudiam à garrafa; lembrou-se da mata verde, e de um jovem casal de noivos que lhe era muito caro, e cuja sorte muito lhe interessava: tomara parte no passeio, naquela hora - a mais feliz da sua vida. Uma hora assim nunca se esquece, nem mesmo depois da velha solteirona! Contudo , ela não reconheceu a garrafa, e nem esta lhe notou a presença. E é assim que neste mundo vamos passando uns pelos outros - até que um dia se dê o reencontro. E que tornara a se encontrar é certo, pois viviam ambas na mesma cidade.
Do jardim foi mais uma vez a garrafa levada à casa do negociante de vinhos; e venderam-na ao aeronauta que no domingo seguinte pretendia subir em um balão.
Grande era multidão que se reunira para "ver aquilo". Muitos preparativos tinham sido feitos, até uma banda de música fora contratada. Do cesto, onde se achava ao lado de um coelho vivo, a garrafa via tudo. o coelho estava pasmado, pois bem sabia que ia subir com o aeronauta, para ser lançado em um pára-quedas. A garrafa, essa nada sabia de subidas nem descidas. Via apenas o balão, que se enchia, e ia ficando cada vez maior, maior, e quando não podia já aumentar de volume, ergue-se do chão, ficando cada vez mais inquieto. Foram cortados os cabos que o prendiam, e, levando consigo o aeronauta, o cesto, o coelho e a garrafa, lá subiu o balão, enquanto tocava a música e a multidão gritava:
- Viva! Viva!
- Que viagem esquisita, assim pelos ares! - pensava a garrafa.- É uma nova espécie de viagem à vela...Aqui em cima a gente ao menos não pode esbarrar em nada!
Milhares de pessoas acompanhavam o balão com os olhos, e a velha solteirona também olhou para ele. Estava à janela do seu sótão, sob a qual se via pendurada a gaiola do pintarroxo, que então ainda não possuía bebedouro: tinha de se contentar com uma chícara. No peitoril da janela havia também um vaso com um pé de murta; não fora posto no centro, para que não o deitasse abaixo a solteirona, quando se debruçasse a ver o que se passava na rua. E ela viu nitidamente o aeronauta e o balão, e viu-o descer o coelho no pára-quedas; viu-o, finalmente, atirar a garrafa para o ar. Mas nem um instante lhe veio à lembrança que já tinha visto aquela mesma garrafa a voar assim, e em honra de si própria e do seu noivo, naquele alegre dia, na mata verdejante, no tempo da mocidade.
A garrafa não teve tempo de meditar. Viera-lhe subitamente, da maneira mais inesperada, a sensação de que se achava no apogeu da existência. As torres e telhados ficavam muito distantes, lá embaixo ; e os homens pareciam uns pigmeus.
Mas agora ia caindo, caindo, e com uma velocidade muito diferente da do coelho! Ela dava cambalhotas no ar; sentia-se tão moça, e tão completamente livre!
Ainda continha vinho, até pelo meio, talvez; mas isso não durou muito. Que viagem! O sol fazia luzir, os homens olhavam par ela; o balão já estava longe, e em poucos minutos também a garrafa se sumia; caíra sobre um telhado e despedaçou-se, mas os cacos traziam tamanho impulso que não puderam ficar ali deitados: continuaram a saltar, e assim chegaram ao pátio, onde ficaram enfim parados, mas reduzidos a caquinhos ainda menores. Apenas o gargalo ficou inteiro: parecia cortado a diamante.
- Este dá um excelente bebedouro -disse alguém lá no porão.
Ora eles não possuíam gaiola, nem passarinho, e comprar uma coisa dessas, só porque agora tinham um gargalo que poderia servir de bebedouro, era exigir muito! Mas...e a solteirona, lá do sótão? Quem sabe se ela poderia aproveitá-lo?
E foi assim que o gargalo foi ter às suas mãos. Fecharam-no com uma rolha, e aparte que dantes ficava para cima foi parar embaixo, como acontece muitas vezes, nas revoluções. Deitaram-lhe água fresca, e suspenderam-no na gaiola do passarinho. que gorjeava alegremente.
- É, tu sim, podes cantar! - disse o gargalo.
E é de notar que era um gargalo notável, pois viajara em um balão. Não se sabia mais nada da sua história. mas agora servia de bebedouro, ouvia de lá o zunzum da rua, e a voz da solteirona no quarto.
Fora visitá-la uma velha amiga, e conversaram- não a respeito do gargalo, não: falavam da murta da janela:
- É isso: não precisas gastar um vintém com a grinalda de noiva de tua filha. Eu quero oferecer-lhe um belo ramalhete, bem cheio de flores. Vês como a planta se desenvolveu? Pois ela provém de um raminho que me deste no dia em que contratei casamento: dessa muda eu devia tirar a minha grinalda de noiva, um ano depois. Mas...esse dia nunca chegou! Fecharam-se os olhos que estavam escolhidos para me iluminar a vida, para me trazerem bençãos e alegria. E o meu leal amigo dorme no fundo do oceano...A murta cresceu, era já uma árvore, envelheceu, mas eu envelheci mais ainda, e quando a árvore estava já muito velha tirei o seu último raminho verde e plantei-o. Esse ramo chegou a ser uma grande árvore também; e a murta poderá afinal servir num casamento: será a coroa de noiva de tua filha.
A velha solteirona tinha os olhos cheios de lágrimas. Falou do amigo da infância, do noivado no bosque; vieram-lhe muitos pensamentos, mas nunca teve a menor ideia de que bem perto dela, mesmo ao pé da janela, estava outra recordação daqueles tempos: o gargalo da garrafa que dera um grito de júbilo quando a rolha estourara, na hora do noivado.
Mas o gargalo tampouco a reconheceu: não ouvia o que ela contava, porque só pensava em si próprio.
FIM
A solteirona que estava ao pé da janela pusera alpiste na gaiola, e o pequenino pintarroxo saltitava de um poleiro para o para o outro, cantando alegremente.
- Sim- disse o gargalo- tu, sim podes cantar...
Cumpre notar que o gargalo não se exprimia como nós: um gargalo não pode falar. Ele pensava lá de si consigo, no seu íntimo, como nós, homens, falamos com os nossos botões. Mas continuou:
- É, tu podes cantar, tens intatos todos os teu membros...Queria que visses o que é a gente perder a parte inferior, e ficar somente com pescoço e boca, e ainda assim com ela fechada por uma rolha, como eu! Isso sim, que não cantarias! E, contudo, é bom que haja gente alegre no mundo. Eu cá não tenho motivos para cantar, e nem posso cantar, mesmo. Mas quando era uma garrafa sã, costumava cantar, quando me esfregavam com uma rolha. Então chamava-se "calhandra(cotovia), uma verdadeira calhandra", e "grande calhandra". Foi quando fiz o piquenique no mato com a família do curtidor, e a filha contratou casamento. Lembro-me como se fosse hoje! Já passei muitos trabalhos na vida; já estive no fogo e na água, no fundo escuro da terra e em lugares mais altos do que a maioria das pessoas pode alcançar...E agora aqui estou, no canto desta gaiola, exposto ao ar e à luz do sol. Sim: acho que valeria a pena ouvir a minha história.
E o gargalo começou a contar a sua história, que era bastante estranha, na verdade. Contava-a para si mesmo, recordando-a silenciosamente lá no seu íntimo. O passarinho cantava alegremente a sua canção, e lá embaixo, na rua, era grande o tráfego e a correria. É que lá cada um pensava nas coisas que lhe diziam respeito- ou em coisa nenhuma. Só o gargalo não deixava de meditar. Lembrou-se da fábrica, do cadinho em brasa onde, com um sopro, o tinham chamado à vida. Lembrava-se ainda que sentira então muito calor, e que deitara olhares para o grande fogão sibilante, que era o seu berço, e sentira um grande desejo de voltar para ali em um pulo. Mas, ao passo que ia resfriando, ia-se sentindo mais à vontade, no sítio onde o tinham deixado. Via-se alinhado em uma fila, com um regimento inteiro de irmãos e irmãs, todos saídos do mesmo fogão; é certo que algumas tinham a forma de garrafas de champanha, outras de cerveja- e isso traz sempre alguma diferença. Mais tarde, lá no mundo, pode acontecer que uma garrafa de cerveja venha a conter o mais delicioso Lacrima Christi, e a champanha se veja cheia de graxa de sapatos; mas ao menos se verá, pelo feitio, para o que a gente nasceu. Nobreza é sempre nobreza, ainda que só contenha graxa no bojo.
Todas as garrafas foram encaixotadas, e com elas a nossa conhecida. Naquela época não lhe passara pela cabeça que havia de terminar a sua carreira reduzida a um gargalo, elevado pelo esforço próprio à categoria de bebedouro, o que é , afinal, uma existência honrosa, pois que sempre a gente representa alguma coisa.
A garrafa só tornou a ver a luz do dia quando, na adega do negociante de vinhos, foi desencaixotada com as companheiras, e lavada pela primeira vez. E que coisa curiosa! Ali estava ela, vazia e sem tampa, com a estranha sensação de que lhe faltava alguma coisa, embora não soubesse o que era. Afinal encheram-na de vinho, e de um vinho excelente. Deram-lhe também uma rolha, e selaram-na. Colaram-lhe no bojo um rótulo que dizia: "Primeira qualidade"; e ela se sentia como se tivesse tirado o primeiro lugar em um exame, Mas o vinho era na verdade bom, e a garrafa também era boa. A gente moça tem queda para a poesia, e ela sentia vibrarem e ressoarem dentro de si coisas que nem sequer conhecia, e que falavam de verdes colinas iluminadas pelo sol, onde cantam e se namoram alegres vinhateiros e vinhateiras. Ah! Como é bela a vida! Pois tudo isso ressoava e cantava dentro da garrafa, tal e qual como se passa com os jovens poetas, que muita vez nem compreendem o que é que canta dentro deles.
Um dia foi comprada. o aprendiz de curtidor viera buscar uma garrafa de vinho, " do melhor". Meteram-na no cesto do farnel, ao lado do presunto, do queijo e do salame. E com ela iam também a manteiga mais fina, o pão mais fofo. A própria filha do curtidor arranjava a merenda no cesto. Era moça e bela, e brincava-lhe o sorriso nos olhos e nos lábios. tinha as mãos macias e brancas- não tão brancas como o pescoço e o peito. Via-se logo que era uma das moças mais lindas da cidade, e, ainda assim, não tinha noivo.
Achava-se o cesto de provisões no colo da moça, quando o carro que levava a família partiu para o mato. O gargalo da garrafa espiava por entre as pontas do guardanapo branco. Na rolha havia um verniz vermelho. A garrafa olhou bem para o rosto da moça; encarou também o jovem marinheiro que ia sentando ao lado dela. Era um amigo de infância, filho de um retratista. Saíra-se muito bem, ainda há pouco tempo, no exame que fizera para primeiro piloto, e no dia seguinte devia partir em um navio que ia para longe, para um país exótico. Enquanto arrumavam o cesto, falavam nisso, e a alegria parecia então desaparecer dos olhos e da boca da bela filha do curtidor.
Passeava os jovens pela floresta verde, e conversavam. O que diriam não o ouvira a garrafa, que ficara no cesto da merenda. Só depois de muito tempo é que ela foi retirada dali, mas já então tinha havido muita alegria. Riam todos, e também a filha do curtidor; mas a moça falava menos que antes, e nas faces brilhavam-lhe duas rosas vermelhas.
O pai pegou na garrafa cheia e no saca-rolhas. Sim, é coisa esquisita, quando desarrolham uma garrafa pela primeira vez, e o gargalo nunca pode esquecer aquele momento solene. Alguma coisa, lá no seu peito, dissera "poc! quando saltou a rolha. E que estranho glu-glu-glu fazia o vinho, ao ser deitado nas taças!
- Vivam! Vivam os noivos! - disse o velho pai.
E os copos foram esvaziados, e o jovem piloto beijou sua bela noiva.
- Sejam muito felizes! - disseram os pais.
O moço encheu de novo, as taças, dizendo:
- Regresso e casamento daqui a um ano!
Esvaziados os copos, apanhou a garrafa, ergueu-a bem alto, e disse:
- Tu, que estiveste presente no dia mais belo da minha vida, não tornarás a servir a mais ninguém!
E atirou-a para o ar.
Naquele instante ,mal poderia a filha do curtidor imaginar que havia de ver outra vez voar aquela garrafa. E contudo, havia de ser assim!
Mas naquele momento a garrafa foi cair no denso caniçal que havia à beira do lago do bosque. O gargalo ainda tinha bem viva recordação do tempo que ali passara, pensando:
- Dei-lhes vinho, e eles me dão água do pantanal. Mas a intenção era boa, isso era....
Agora já não via os noivos, nem os alegre velhos, mas durante muito tempo ainda ouvira seus cantos de regojizo. Finalmente apareceram ali dois filhos de um camponês, que espiaram pelo juncal; descobriram a garrafa e levaram-na. Agora, estava ela bem guardada.
Em casa do camponês, na mata, o filho mais velho, que era marinheiro, estava preparando-se apra uma longa viajem, e tinha vindo passar o dia com a família, em despedida. Naquele momento a mãe empacotava algumas coisas que ele devia levar; e o pai iria levar-lhe, à noite, o pequeno fardo, quando fosse vê-lo pela última vez, na cidade. Já fora embrulhada uma garrafinha de aguardente, infuso de ervas, quando entraram os meninos com a outra garrafa, maior e mais resistente, que acabavam de achar. Disseram à mãe que naquela caberia mais infusão, e que "aguardente era coisa muito boa para o estômago, porque continha ervas". Achavam pois que era a garrafa grande, e não a pequena, que devia ir.
E foi assim que ela recomeçou a peregrinação. Foi para bordo com Peter Jensen, foi para bordo do mesmo navio em que navegava o jovem piloto. Mas este não viu a garrafa, nem a teria reconhecido, se a visse, e nem sequer imaginar que era a mesma com que tinham celebrado o noivado, e dado vivas ao regresso.
É verdade que ela já não oferecia vinho; mas abrigava agora no bojo uma coisa igualmente boa. Quando Peter Jensen a tirava da mala, os companheiros a chamavam de "farmácia", porque ela sempre lhes oferecia um excelente remédio, o remédio que curava o estômago. Fôra uma quadra cheia de alegria, e a garrafa cantava, quando a acariciavam com a rolha: chamavam-na então a grande calhandra, a calhandra de Peter Jensen.
Passaram-se longos dias, e meses. A garrafa já se achava vazia, em um canto. Aconteceu então - se foi na ida ou na volta, não sabia dizer a garrafa, porque nunca desembarcara - aconteceu, porém, que se levantou uma tempestade. enormes vagalhões se acercavam, pesados e sombrios, e erguiam e sacudiam o navio. Partiu-se o masto grande. Uma vaga rebentou uma da tábuas do costado. As bombas não davam vencimento. E a altas horas da noite o navio afundou. No ultimo instante o jovem piloto escreveu em uma folha de papel:" Em nome de Cristo, estamos naufragando!" Escreveu o nome da noiva, o seu, e o do navio; pôs a folha em uma garrafa que havia enchido, outrora, para ele e para noiva, a taça da alegria e da esperança. E agora anda aquela a garrafa balouçando nas ondas, carregando no bojo a mensagem de despedida e a notícia fatal.
Afundou-se o navio, e com ele a tripulação, enquanto a garrafa voava como uma ave; afinal ela escondia em si um coração, uma carta de amor. O sol nasceu e tornou a se esconder. A garrafa sentia aquele mesmo anseio que experimentava quando nasceu nas brasas do fogão; sentia desejos de voar outra vez para o lugar de onde saíra - tinha saudades.
Passou por calmarias e sofreu novas tempestades. Contudo não bateu em nenhum recife, nem foi devorada por nenhum tubarão. Andou boiando, dias e anos, ora para o lado do Norte, ora para o Sul, ao sabor da corrente. Afinal, ela era livre, senhora de seus atos; mas o certo é que até disso a gente pode sentir-se farta.
A folha escrita, o último adeus do noivo à noiva, levaria somente pesar, se um dia caísse nas mãos da destinatária; mas onde estavam aquelas mãos tão brancas e tão macias, que naquele dia do noivado tinham estendido sobre a fresca relva da mata verde a toalha tão branca? Onde estava a filha do curtidor? Sim, onde estava o país, e qual era, dentre os outros países, o que lhe ficava ao lado? Não o sabia a garrafa; boiava, e continuava boiando, até sentir-se farta daquelas andanças, que não eram afinal, do seu ofício. E, ainda assim, prosseguiu vagando, até que um dia alcançou terra, num país estranho. Não entendia uma palavra do que ali diziam; não era aquele o idioma que ouvira falar outrora. E,quando a gente não entende a língua, muita coisa se perde!
A garrafa foi pescada e examinada por todos os lados. retiraram o bilhete que trazia, e também este foi examinado e virado de todos os lados; mas as pessoas daquele lugar não entendiam o que estava escrito naquele papel. Compreenderam, é claro , que a garrafa tinha sido arrojada ao mar, e que o papel dizia alguma coisa a esse respeito, mas que diria ele? Isso ninguém podia saber. Tornaram pois a colocar o bilhete dentro da garrafa e puseram-na em cima de um grande armário. E ali ficou ela, na vasta sala de um casarão.
Cada vez que aparecia algum forasteiro o bilhete era retirado da garrafa; viravam-no e reviravam-no, e o texto, escrito a lápis, ai ficando de dia a dia menos legível. Afinal já não se via letra alguma no papel. E por mais um ano viveu a garrafa sobre o armário; dali a levaram para o sótão; e foi-se cobrindo de poeira e de teias de aranha.
Como se lembrava agora de dias melhores, do tempo em que, na fresca mata verde, oferecera vinho tinto; e dos anos que levara, dançando nas ondas do mar, guardando no seio um segredo, uma carta, um suspiro de adeus! E lá ficou naquele sótão vinte anos bem contados. Poderia ter ficado mais tempo, se não fora a reforma da casa. Demolindo o telhado, viram a garrafa. Falaram a seu respeito, é verdade; ela, porém, não entendia a língua - isso não se aprende, nem em vinte anos, só pelo fato de ficar lá no sótão.
- Se me tivessem deixado na sala- pensava ela- provavelmente saberia agora o idioma daqui.
Foi então lavada e enxaguada, o que era bem necessário. Viu-se clara e transparente, remoçada, apesar da idade; mas o bilhete que conservara fielmente, perdeu-se na lavagem.
Encheram-na de sementes. Ela não compreendia o que aquilo representava. Foi tampada e embrulhada com cuidado; tanto, que não via mais luz de vela nem da lanterna, e menos ainda o sol ou a lua. Ora, quando se viaja, é preciso ver alguma coisa; mas a garrafa nada viu; contudo, fez o que era mais importante; partiu e chegou ao lugar do seu destino, e lá foi enfim desembrulhada.
- Quanto trabalho tiveram eles, lá no estrangeiro, com esta garrafa! - ouviu ela que alguém dizia. - E agora, hão de ver que está quebrada!...
Não não estava, não. E a garrafa entendia o que diziam: era a língua que ouvira ao pé do fogão, e em casa do negociante de vinhos, e na mata e no navio; a única língua velha e boa, que a gente podia entender! Regressara à sua terra, e aquele idioma era para ela uma saudação de boas-vindas. De tanta alegria, quase saltou das mãos que a desenrolavam. Nem notou que lhe tiravam a rolha, e despejavam o conteúdo; transportaram-na depois para o porão, onde ficou guardada e esquecida. Mas a terra da gente é sempre o melhor lugar do mundo, ainda que seja para viver em um porão!
Nunca lhe passaria pela mente a ideia de verificar quanto tempo passou ali. Ficou bem acomodada, e isso durante anos e anos. Finalmente um dia desceu alguém, que levou todas as garrafas que havia no porão, e ela lá se foi com as outras.
Lá fora, no jardim, havia uma grande festa. Tinham feito fieiras de lâmpadas acesas, suspensas nos galhos; lanternas de papel, postas sobre colunas, pareciam grandes tulipas brilhantes. A noite estava esplêndida, clara e serena. As estrelas cintilavam. Era lua nova, mas avistava-se no céu o disco inteiro, azul-acinzentado, dourado na beira - um belo espetáculo para os que tinham boa vista.
Até os caminhos mais distantes do jardim tinham sido iluminados, de modo que as pessoas podiam andar por toda a parte. Entre a folhagem das sebes havia garrafa com velas acesas, e entre elas estava também aquela que já conhecemos, e que havia de acabar a carreira feito bebedouro. Ela achava tudo aquilo maravilhosamente belo: encontrava-se de novo ao ar livre, via-se outra vez no meio da alegria e da festa, ouvia cantos e música, e a algazarra e o murmúrio de muitas pessoas que passavam, vindo principalmente da parte do jardim onde ardiam as lâmpadas, e as lanterna de papel ostentavam a pompa de suas cores. É verdade que estava em um caminho solitário, mas isso também tinha certo encanto, todo contemplativo: sustentava no gargalo sua vela, pois estava ali para utilidade e prazer dos outros, como é nosso dever. E num momento assim a gente até chega a esquecer os vinte anos passados no sótão, e esquecer também faz bem.
Passou junto dela um casal de namorados, como outrora aqueles noivos na floresta, o piloto e a filha do curtidor. Pareceu-lhe que viva tudo aquilo pela segunda vez. passeavam no jardim não somente os convidados, mas também outras pessoas, às quais fora permitindo olhar para aqueles, e admirar toda aquela pompa. Entre estas andava uma solteirona, que vivia só no mundo, pois não tinha parentes. E passavam-lhe pela cabeça os mesmos pensamentos que acudiam à garrafa; lembrou-se da mata verde, e de um jovem casal de noivos que lhe era muito caro, e cuja sorte muito lhe interessava: tomara parte no passeio, naquela hora - a mais feliz da sua vida. Uma hora assim nunca se esquece, nem mesmo depois da velha solteirona! Contudo , ela não reconheceu a garrafa, e nem esta lhe notou a presença. E é assim que neste mundo vamos passando uns pelos outros - até que um dia se dê o reencontro. E que tornara a se encontrar é certo, pois viviam ambas na mesma cidade.
Do jardim foi mais uma vez a garrafa levada à casa do negociante de vinhos; e venderam-na ao aeronauta que no domingo seguinte pretendia subir em um balão.
Grande era multidão que se reunira para "ver aquilo". Muitos preparativos tinham sido feitos, até uma banda de música fora contratada. Do cesto, onde se achava ao lado de um coelho vivo, a garrafa via tudo. o coelho estava pasmado, pois bem sabia que ia subir com o aeronauta, para ser lançado em um pára-quedas. A garrafa, essa nada sabia de subidas nem descidas. Via apenas o balão, que se enchia, e ia ficando cada vez maior, maior, e quando não podia já aumentar de volume, ergue-se do chão, ficando cada vez mais inquieto. Foram cortados os cabos que o prendiam, e, levando consigo o aeronauta, o cesto, o coelho e a garrafa, lá subiu o balão, enquanto tocava a música e a multidão gritava:
- Viva! Viva!
- Que viagem esquisita, assim pelos ares! - pensava a garrafa.- É uma nova espécie de viagem à vela...Aqui em cima a gente ao menos não pode esbarrar em nada!
Milhares de pessoas acompanhavam o balão com os olhos, e a velha solteirona também olhou para ele. Estava à janela do seu sótão, sob a qual se via pendurada a gaiola do pintarroxo, que então ainda não possuía bebedouro: tinha de se contentar com uma chícara. No peitoril da janela havia também um vaso com um pé de murta; não fora posto no centro, para que não o deitasse abaixo a solteirona, quando se debruçasse a ver o que se passava na rua. E ela viu nitidamente o aeronauta e o balão, e viu-o descer o coelho no pára-quedas; viu-o, finalmente, atirar a garrafa para o ar. Mas nem um instante lhe veio à lembrança que já tinha visto aquela mesma garrafa a voar assim, e em honra de si própria e do seu noivo, naquele alegre dia, na mata verdejante, no tempo da mocidade.
A garrafa não teve tempo de meditar. Viera-lhe subitamente, da maneira mais inesperada, a sensação de que se achava no apogeu da existência. As torres e telhados ficavam muito distantes, lá embaixo ; e os homens pareciam uns pigmeus.
Mas agora ia caindo, caindo, e com uma velocidade muito diferente da do coelho! Ela dava cambalhotas no ar; sentia-se tão moça, e tão completamente livre!
Ainda continha vinho, até pelo meio, talvez; mas isso não durou muito. Que viagem! O sol fazia luzir, os homens olhavam par ela; o balão já estava longe, e em poucos minutos também a garrafa se sumia; caíra sobre um telhado e despedaçou-se, mas os cacos traziam tamanho impulso que não puderam ficar ali deitados: continuaram a saltar, e assim chegaram ao pátio, onde ficaram enfim parados, mas reduzidos a caquinhos ainda menores. Apenas o gargalo ficou inteiro: parecia cortado a diamante.
- Este dá um excelente bebedouro -disse alguém lá no porão.
Ora eles não possuíam gaiola, nem passarinho, e comprar uma coisa dessas, só porque agora tinham um gargalo que poderia servir de bebedouro, era exigir muito! Mas...e a solteirona, lá do sótão? Quem sabe se ela poderia aproveitá-lo?
E foi assim que o gargalo foi ter às suas mãos. Fecharam-no com uma rolha, e aparte que dantes ficava para cima foi parar embaixo, como acontece muitas vezes, nas revoluções. Deitaram-lhe água fresca, e suspenderam-no na gaiola do passarinho. que gorjeava alegremente.
- É, tu sim, podes cantar! - disse o gargalo.
E é de notar que era um gargalo notável, pois viajara em um balão. Não se sabia mais nada da sua história. mas agora servia de bebedouro, ouvia de lá o zunzum da rua, e a voz da solteirona no quarto.
Fora visitá-la uma velha amiga, e conversaram- não a respeito do gargalo, não: falavam da murta da janela:
- É isso: não precisas gastar um vintém com a grinalda de noiva de tua filha. Eu quero oferecer-lhe um belo ramalhete, bem cheio de flores. Vês como a planta se desenvolveu? Pois ela provém de um raminho que me deste no dia em que contratei casamento: dessa muda eu devia tirar a minha grinalda de noiva, um ano depois. Mas...esse dia nunca chegou! Fecharam-se os olhos que estavam escolhidos para me iluminar a vida, para me trazerem bençãos e alegria. E o meu leal amigo dorme no fundo do oceano...A murta cresceu, era já uma árvore, envelheceu, mas eu envelheci mais ainda, e quando a árvore estava já muito velha tirei o seu último raminho verde e plantei-o. Esse ramo chegou a ser uma grande árvore também; e a murta poderá afinal servir num casamento: será a coroa de noiva de tua filha.
A velha solteirona tinha os olhos cheios de lágrimas. Falou do amigo da infância, do noivado no bosque; vieram-lhe muitos pensamentos, mas nunca teve a menor ideia de que bem perto dela, mesmo ao pé da janela, estava outra recordação daqueles tempos: o gargalo da garrafa que dera um grito de júbilo quando a rolha estourara, na hora do noivado.
Mas o gargalo tampouco a reconheceu: não ouvia o que ela contava, porque só pensava em si próprio.
FIM
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