quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

O SINO - CONTOS DE ANDERSEN

Isto se passou em uma grande cidade de ruas estreitas.
  À hora do lusco-fusco, em que as nuvens brilhavam como ouro entre as chaminés, algumas pessoas ouviam um som singular, como o de um sino de igreja; ora um ora outro o  ouvia, mas sempre durava apenas um momento, porque era tanto o estrépito dos carros e o barulho das vozes , que os ruídos mais leves eram abafados. E o povo dizia:
   _ O sino da tarde está tocando; o sol vai entrar.
    Os que andavam pelos arredores da cidade, onde as casas eram mais raras e tinham jardins e quintaizinhos de permeio, podiam apreciar melhor a beleza e a amplidão do céu à hora do crepúsculo e ouvir o sino muito mais distintamente. O som parecia vir de uma igreja escondida nas profundezas da floresta, e o povo olhava naquela direção, sentindo que a hora era solene.
    Passou-se algum tempo; e as pessoas diziam muitas vezes:
    - Haverá alguma igreja no meio do mato? O sino tem um som tão suave e tão lindo... E se fossemos escutá-lo de mais perto?
     E foram . Os ricos iam de carro, os pobre a pé; mas parecia-lhes que o caminho não acabava nunca. E quando alcançaram um grupo de salgueiros que ficavam na orla da mata, sentaram-se para descansar, e, olhando para aqueles longos galhos pendentes, pensavam que já  estavam no coração da floresta. Um confeiteiro da cidade foi também, e armou ali uma tenda ; veio um rival e armou também a sua, pendurando no alto uma sineta, previamente alcatroada, por causa da chuva - mas não tinha badalo. E quando toda aquela gente voltou para casa dizia que tudo era muito romântico e que não era apenas um piquenique; era uma coisa muito melhor do que tomar chá no campo, simplesmente. Três pessoas declararam que tinham explorado a floresta até o outro lado, e que sempre ouviam o som peculiar daquele sino, mas que agora parecia vir da cidade. Um deles escreveu um poema; aí dizia que o sino parecia a voz de uma mãe falando a um filho bem-amado; e que não havia no mundo melodia mais suave do que o som daquele sino.
     Até o imperador começou a interessar-se por aquele caso, e declarou que daria o título de "Sineiro Universal" a quem quer que descobrisse de onde procedia o estranho som, ainda que não houvesse sino algum no caso.
     Muita gente correu para a floresta, na esperança de obter a nomeação; mas só um apresentou uma espécie de explicação do mistério. Nenhum deles tinha ido até o interior do mato- nem ele próprio ; ainda assim, podia dizer que o som provinha de uma grande coruja que vivia no oco de uma árvore. Era  uma coruja sábia, que batia continuamente a cabeça na árvore; agora se o som resultante vinha da cabeça da ave ou do tronco oco, era coisa que ele não pudera distinguir. Foi, contudo, nomeado "Sineiro Universal": e todos os anos escrevia um tratado sobre a coruja. mas ninguém se achou mais esclarecido com isso.
        Chegara o dia da confirmação. O pastor falou com muita eloquência e os que se confirmaram ficaram muito impressionados - porque era um dia solene para todos  eles. Era como se aquelas crianças se tivessem transformado de repente em gente grande; como se se  dissesse que seus espíritos infantis assumiam de um instante para outro os atributos de pessoas de juízo maduro. Transformava-se assim em seres responsáveis.
     Era um dia de sol ardente. Os jovens que se haviam confirmado foram dar um passeio fora da cidade, e ouviram o som do grande sino desconhecido que vinha da floresta: tinha um cunho de solenidade excepcional. Sentiram-se as crianças tomadas do desejo de ouvi-lo de mais perto, e assim resolveram ir lá -todas , menos três. Uma destas tinha de ir para casa para provar o vestido de baile, porque o único motivo que  a levara à confirmação fora justamente esse: a festa e o traje de baile. A não ser isso, não teria tomado parte na cerimonia desta vez. Outro- um menino pobre - tinha pedido emprestados o casaco e os sapatos do filho do senhorio, para a confirmação, e tinha de devolvê-los a uma hora determinada. O terceiro declarou que nunca ia a lugares estranhos sem os pais; que sempre fora menino obediente, e agora , que estava confirmado, assim queria permanecer; e que ninguém devia rir dele por isso - o que não impediu, afinal, que todos os outros se divertissem à sua custa.
     Houve três, portanto, que desistiram de ir; mas os outros empreenderam a jornada fatigante. O sol brilhava no firmamento: os passarinhos cantavam, e as crianças recém- confirmadas também cantavam, e   iam indo, de mãos dadas,porque nenhuma delas tinha ainda emprego importante, e todas eram de igual categoria aos olhos de Deus.
    Aconteceu, porém, que dois dos meninos menores cansaram e voltaram para cidade. Duas meninas sentaram-se para tecer grinaldas e não continuaram a viagem . E quando os outros chegaram aos salgueiros, onde ficava a tenda do confeiteiro, disseram:
     - Chegamos à floresta! Não há aqui sino nenhum era apenas ilusão daquela gente!
    Mas naquele mesmo instante o sino tangeu no mais profundo da floresta; e o som era tão lindo, tão solene, que cinco ou seis crianças resolveram penetrar mais a dentro. As árvores eram tão copadas e tão juntas que se tornava difícil andar entre elas; os narciso e as anêmonas cresciam a grande altura, e as ipomeias floridas e as framboesas pendiam em longos festões, unindo entre si as árvores, em cujos galhos brincavam os raios do sol e cantavam os rouxinóis. Era muito lindo, tudo aquilo, sim - mas não era lugar para  as meninas, que iriam rasgar os vestidos a cada passo. Grandes blocos  de pedra cobertos de musgo de variadas cores, surgiram por toda a parte; e o fresco arroio murmurava, parecendo cantarolar um gorjeio.
      - Será isto o sino, afinal? - disse uma das crianças, deitando-se para escutar. - Creio que vale a pena estudar isto!
       E ali ficou, enquanto os outros continuavam a andar .
       Chegaram a uma cabana , feita de galhos e de casca de árvores. Uma grande macieira silvestre estendia os galhos por cima do chalezinho, como se quisesse chover bençãos sobre o teto, coberto por uma roseira em flor. Os galhos floridos enroscavam-se no beiral, onde estava amarrada uma sineta.
     - Seria aquele o sino que as pessoas ouviam? Sim; todos concordaram, exceto um, que achou a sineta muito pequena e muito frágil para ser ouvida a tão grande distância. E disse ainda que o som era muito diferente daquele outro, que tocava, que tocava tão profundamente o coração humano. Era um princepezinho o que falara; e os outros disseram que aquela espécie de gente sempre quer ser mais entendida do que as outras pessoas.
    Deixaram-no , pois, prosseguir sozinho; e quanto mais se internava na floresta, tanto mais o impressionava aquela solidão. Mas ainda ouvia a sineta que tanto tinha agradado aos outros. De vez em quando o vento soprava do lado da tenda do confeiteiro, ouvia, também os cantos dos que ficara lá tomando chá. Mas o som profundo do sino elevava-se, mais alto; parecia que havia um órgão a acompanhá-lo. E aqueles sons vinham do lado esquerdo, quer dizer, do lado em que fica o coração.
    Ouviu-se um rumor nos arbustos e um menino parou na frente do filho de rei; um menino de tamanquinhos e com um  casaco tão curto, que deixava aparecer todo o punho da camisa.   Ambos se conheciam: o que trajava modestamente era aquele que não pode reunir-se aos outros. porque tinha  de voltar para restituir  o casaco e os sapatos que lhe emprestara o filho do dono da casa. Feito isto, voltara, com seus tamanquinhos e a roupa surrada, porque o sino estava tocando com um som tão profundo e com tamanho poder que ele não pode resistir.
     - Pois então- disse o filho de rei podemos agora ir juntos.
     Mas o menino pobre estava muito envergonhado; olhou para os pés, puxou as mangas da jaqueta e disse que talvez não pudesse caminhar mais longe; além disso achava que o sino devia ser procurado para o lado direito, porque naquela direção ficava a parte mais bela da floresta.
     - Então provavelmente não tornaremos a nos encontrar - disse o filho de rei, cumprimentando o menino pobre.
      Este entranhou-se nas profundezas do mato, onde os espinhos lhe rasgavam a roupinha pobre, arranhando-lhe o rosto, as mãos e os pés, até fazer sangue. O filho de rei também não se livrou de algum arranhão, mas o sol brilhava no caminho ; e nós vamos segui-lo, porque é um rapaz excelente e resoluto.
    - Eu tenho de achar - e hei de achar o sino! - disse ele. - Nem que precise ir ao fim do mundo!
     Uns macacos muito feios, que estavam encarrapitados nas árvores, fizeram-lhe caretas, dizendo uns para os outros:
     - Nós não vamos dar-lhe pancadas? Não vamos dar nele? É o filho de rei!
       Mas ele continuou a andar, destemeroso, cada vez mais para o interior da floresta, onde vicejavam as mais estranhas flores. Ali havia lírios alvos, com estames vermelhos como sangue; tulipas da cor do céu, que brilhavam , quando a brisa as roçava; e macieiras, cujas frutas pareciam grandes e brilhantes bolhas de sabão. Imagine-se como não cintilavam aquelas árvores ao sol! Ao redor de lindos prados verdes, onde os veados brincavam , erguiam-se carvalhos e faias magníficos; e nas fendas da casca das mais antigas brotavam trepadeiras e aninhavam-se musgo. Haviam ainda lagos serenos, onde nadavam cisnes brancos, que batiam as asas no ar. O filho de rei parou muitas vezes, ficando quieto, a escutar. Julgava que o som do sino vinha daqueles lagos, mas verificou então que procedia de muito mais longe, do fundo da mata.
       Já o sol declinava. O ar era agora flamejante e a floresta profundamente silenciosa; ele caiu de joelhos, fez a sua oração da noite e disse:
       - Nunca acharei o que procuro! A noite , a noite escura se aproxima. Mas...quem sabe se ainda poderei ver por um instante o sol vermelho antes que se suma no horizonte! Vou subir aquele rochedo, que é tão alto como as árvores mais altas.
     Segurou-se, conforme pode, às raízes e trepadeiras, e foi escalando as pedras escorregadias; viu ali cobras-d'água enroladinhas e sapos do mato que pareciam coaxar para ele. Mas alcançou o pico antes  que o sol mergulhasse no horizonte.
     E que vista magnífica, daquela altura! O mar, o mar imenso, sem limites, que atirava suas ondas à praia, estendia-se diante dele. E além, no ponto onde mar e céu se encontram, o sol, como um grande altar resplandecente, fundia tudo quanto o cercava em cores maravilhosas. A floresta cantava, o oceano cantava, e o coração do menino juntou também o seu cântico aqueles hinos de louvor.
      Toda a natureza era como um vasto templo sagrado : pilares eram as árvores; e as nuvens flutuantes, o musgo e as flores , magníficas tapeçarias de veludo; abóbada , o céu sem limites. Agora as cores brilhantes iam desmaiando; mas milhões de estrelas se acendiam- milhões de lâmpadas de diamante, iluminado a cúpula gloriosa.
     E o filho de rei estendeu os braços para o céu, e para o mar, e para a floresta.
    Justamente nesse instante , do caminho que ficava à direita, surgia o rapaz pobre, o das mangas curtas e dos tamanquinhos. Viera por outro caminho, mas chegara ao mesmo tempo que o filho de rei.
     Correram então um para o outro; e ali ficaram, de mãos dadas, no vasto templo da natureza e da poesia. E acima deles, e por toda a parte , soava o sino invisível e solene. Espíritos sagrados flutuavam ao redor deles, erguendo suas vozes em um cântico de aleluia!
 
 

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