A terra que cerca a cidadezinha de Kjoege, na Ilha de Seeland, é toda nua. A cidade fica à beira do oceano. O panorama do mar é sempre uma bela coisa: mas a praia de Kjoege bem podia ser mais bonita. Onde quer que a vista se estenda, não acha mais que uma planície lisa; nada mais que campos sem nenhuma árvore. E o mato mais próximo fica bastante longe.
Contudo, quem ama o recanto onde nasceu, descobre sempre nele alguma coisa encantadora, que mais tarde há de desejar rever, mesmo que venha a morar nas mais belas regiões.
E há, de fato, em Kjoege, no extremo da cidadezinha, costeando o regato que vai lançar-se no mar, alguns jardinzinhos singelos, onde, no verão, a gente pode, com alguma boa vontade, imaginar-se no paraíso.
E era isso mesmo que pensavam duas crianças sozinhas, que iam lá brincar, atravessando a sebe de groselheiras que separavam os jardins de seus pais. Em um deles havia um sabugueiro, no outro um velho salgueiro. E era à sombra do salgueiro que as crianças gostava de estar. Tinham licença de brincar debaixo do salgueiro, apesar de ficar na água; mas o olho de Deus vela sobre as criança. A não ser assim , elas seriam dignas de lástima.
Alias, as duas crianças evitavam aproximar-se do regato. O menino tinha mesmo tanto medo da água , que não havia meio de conseguir, no verão entrar no mar, onde as crianças gostavam tanto de patinhar. Debalde os outros riam dele; tinha de suportar os motejos com paciência.
Mas Joana, sua pequena companheira, sonhou um dia que ia vogando em um barco, acima das ondas, e que o menino, o pequeno Knoud, lhe vinha ao encontro. A água subia-lhe já até o pescoço, depois cobriu-lhe a cabeça, e ele acabou por desaparecer. E quando Knoud ouviu isso, não quis mais suportar as caçoadas dos outros rapazinhos. Ele tinha estado dentro d'Água; Joana o vira em sonho. Em realidade, jamais se arriscou a afrontá-la; mas como se sentia orgulhoso do que tinha feito no sonho da sua amiguinha!
Os pais, que eram pobres, viam-se seguidamente. Knoud e Joana brincavam juntos nos dois jardins e na estrada, cujas bordas eram plantadas de salgueiros. Não tinham estes lá grande aparência, com a cabeça descoroada; também não estavam lá ostentação, mas para proveito. O velho salgueiro do jardim, esse sim, era mais bonito; os longos ramos formavam um berço, onde as duas crianças gostavam de se aninhar.
Há na cidadezinha uma grande praça. No tempo da feira viam-se ali longas ruas formadas de tendas e barracas, onde eram expostas fitas, brinquedos, calçados, e tudo o que se possa desejar. E era uma multidão de gente em roda das tendas.
Entre as lojas havia uma muito grande, de pão-de-mel. E, o que era fortuna sem igual, o mercador de pão-de-mel costumava hospedar-se, durante a feira, em casa dos pais do menino. Por isso Knoud ganhava, de vez em quando, um bom pedaço daquele bolo, e Joana recebia, naturalmente, a sua parte.
Mas o que era talvez mais encantador ainda é o que o mercador sabia toda a espécie de contos, sobre todas as coisas imagináveis, até sobre seu pão-de-mel. Uma noite contou ele uma história que fez tão profunda impressão nas duas crianças, que elas não a esqueceram jamais. E o melhor é contá-la agora, tanto mais que longa.
"Eu tinha na vitrina da minha loja - disse ele- duas figurinhas de pão-de- mel: uma era um homem de chapéu, a outra uma mocinha sem chapéu. Não tinham figura humana senão de um lado: do outro, era melhor não olhar. Afinal, os homens também são assim: não é bom olhá-los do avesso. O rapaz tinha à altura do peito uma amêndoa amarga : era o coração. A senhorita era toda amassada com mel. Estavam na vitrina para amostra; ficaram lá tanto tempo que acabaram por se enamorar um do outro. Mas não deram demonstração desse sentimento. Entretanto, se queriam que aquele amor desse algum resultado, deviam dizer alguma coisa.
"A ele, como homem, competia dizer a primeira palavra, na opinião da jovem, que só desejaria saber se ele lhe pagava a ternura na mesma moeda.
"Quanto as ideias do moço, eram mais vastas, como são em geral as do sexo varonil. Sonhava que era um moleque da rua, como via tantos que passavam por ali, e que possuía um níquel, com o qual compraria a senhorita e a comeria.
"Continuaram assim por dias e semanas, na minha vitrina. Por fim foram secando. As ideias da jovem iam ficando cada vez mais ternas, mais dignas de uma mulher:
"- Já sou muito feliz - suspirava ela - por ter passado tempo ao pé dele!
"E crac! Eia-la que se parte ao meio e morre.
"Enquanto isso, dizia o outro:
"- Ah! Se ela tivesse sabido do meu amor, teria provavelmente suportado melhor a existência "E aí está a história e aqui estão os dois heróis -- conclui o mercador. - Estes não são pães-de- mel sem eira nem beira: são personagens notáveis, que dão testemunho de que o amor mudo jamais dá resultado. Aqui estão eles: são para vocês. "
Deu a Joana o homenzinho, ainda perfeito; e Knoud recebeu os dois pedaços que outrora tinham formado a senhorita. Mas as crianças ficaram tão comovidas com essa história tocante que não tiveram coragem de comer os dois namorados.
No dia seguinte levaram ao cemitério os dois bonecos. Sentaram-se na grama, perto da parede da igreja que, inverno e verão, estava sempre coberta de viçosas grinaldas de hera. Colocaram os pães-de-mel em um nicho, no meio da verdura, em pleno sol, e começaram a contar as outras crianças que lá estavam a história do amor, mudo, que não vale nada.
Todas acharam a história encantadora; mas quando quiseram ver outra vez o par infeliz, verificou-se que a moça tinha desaparecido: um rapaz já grandinho a devorara, de pura malvadez. Knoude e Joana chegaram a chorar! Depois, certamente para não deixar o moço sozinho no mundo, comeram-no; mas a história, essa não a esqueceram jamais.
Continuaram a brincar juntos à sombra do sabugueiro e do salgueiro. A meninazinha cantava as canções mais belas do mundo com uma voz tão clara como o som de um sino de prata; Knoude não tinha voz para cantar, mas sabia de cor as palavras, o que já é alguma coisa. Os habitantes de Kjoege, até a mulher do fabricante de brinquedos, que já morara na capital, pararam para escutar o canto de Joana.
- Essa menina - dizia a dama - tem na verdade uma linda voz!
Eram dias felizes, aqueles. mas pouco duraram. As duas famílias separaram-se. Morreu a mãe de Joana, e o pai, que tinha a intenção de casar de novo, resolveu mudar-se para a capital. Lá, segundo lhe diziam, poderia ganhar melhor o pão, empregando-se como mensageiro em uma boa casa - emprego lucrativo, que lhe haviam prometido.
À despedida, os vizinhos derramaram muitas lágrimas. As crianças, essas, desataram em soluços. Houve promessas de cartas, uma vez por ano.
II
Knoud entrou de aprendiz na casa de um sapateiro. estava muito crescido para andar correndo os campos, sem nada fazer. Nunca tinha visto a capital, apesar de ficar distante apenas cinco milhas da cidadezinha. Quando o dia era bem claro podia avistar, para além do golfo, as altas torres de Copenague. Como seus pensamentos voava então para Joana!...
Lembrar-se-ia ainda dele? Sim: pelo Natal chegou uma carta do pai, anunciando que iam muito bem em Copenague, e que Joana, principalmente, por causa da sua bela voz, podia vir a ter uma boa sorte. Tinha já um emprego na Comédia, naquela onde se canta; ganhava algum dinheiro e enviava aos caros vizinhos de Kjoege um escudo para se divertirem no dia de Natal. Pedia-lhes que bebessem à sua saúde; isso vinha num pós-escrito pela própria mão de Joana, que rematava: "muitas saudades a Knoud."
À leitura dessa carta toda a família chorou. Eram, contudo, boas notícias; mas é que choraram de alegria. Joana ocupava os pensamentos de Knoud o dia inteiro; agora ela dera prova de que também pensava nele.
Quanto mais se aproximava o termo da sua aprendizagem, tanto mais evidente lhe parecia que ela devia ser sua esposa. A essa ideia um alegre sorriso lhe aflorava aos lábios.O rapaz puxava o fio com força redobrada; e mais de uma vez, apoiando-se com toda a violência no tira-pé, enterrou profundamente a sovela no dedo! Mas isso não impressionou. Dizia consigo que não havia de fazer o papel de mudo, como tinha acontecido com os namorados de pão-de-mel. Aquela história lhe servira de lição.
Passou, enfim, a oficial. Lá vai ele, de saco às costas; dirige-se pela primeira vez à capital, onde já está contratado para a casa de um mestre. Como Joana vai ficar surpreendida e alegre! Terá agora dezessete anos, e ele já fizera dezenove.
Queria comprar em Kjoege um anel para ela; mas refletiu melhor: acharia em Copenague um muito mais bonito. Despediu-se dos pais , e num dia de outono chuvoso, deixou sua cidade natal. Ia a pé. Caíam as folhas das árvores. Chegou à capital todo molhado e dirigiu-se logo à casa do seu novo patrão.
No primeiro domingo preparou-se para fazer uma visita ao pai de joana. Vestiu a roupa nova e um belo chapéu, que comprara em Kjoege e que lhe ficava muito bem; até então só usura boina.
Achou a casa e subiu muitas escada. Parecia-lhe que ia ter uma vertigem. Considerava, não sem espanto, como se empoleiravam as pessoas, umas famílias sobre as outras, naquela grande e terrível capital!
Na sala tudo respirava bem-estar. Recebeu-o o pai de Joana muito amistosamente. Sua nova esposa não conhecia Knoud; mas isso não a impediu de lhe dar um aperto de mão e de lhe oferecer uma boa taça de café.
- Joana vai ficar muito contente de te tornar a ver - disse o pai. - Estás, na verdade, um belo rapagão! Vais vê-la. É uma filha que me dá muita alegria, e que, com o favor de Deus, ainda me dará venturas maiores.
Joana tem ali um quarto só para si, e é ela mesma quem paga aluguel.
O bom homem bateu discretamente à porta, como um estranho e entraram. Como tudo era encantador naquele quartinho! Knoud pensava consigo que não se poderia ver nada mais belo em casa da rainha; era impossível! Havia tapetes,cortinas que desciam até o chão, uma cadeira coberta de veludo; flores tão grande que até corria perigo de se bater com o pé: era um espelho do tamanho de uma porta.
Knoude viu todas essas maravilhas num relance; não tinha olhos senão para Joana, que estava diante dele. Era uma senhorita, muito outra, muito diferente do que Knoud imaginava, mas muito mais bela. Em toda a cidade de Kjoege não havia nem uma só moça que se lhe igualasse; tinha um ar tão distinto que até parecia imponente. Olhou para Knoud, admirada, mas somente por um momento: precipitou-se depois para ele, como se fosse beijá-lo; não o fez, mas chegou quase a fazê-lo. Sim, regozijava-se de todo o coração de rever seu amigo de infância. Não tinha olhos molhados de lágrima? E quantas perguntas lhe fez! Pediu notícias de todo o mundo, dos pais de Knoud, do pai Salgueiro e da mãe Sabugueira, como chamavam outrora às suas queridas árvores, como se fossem seres viventes.
- E afinal -disse ela- por que não seriam dotados de vida, uma vez que até os pães-de-mel naquele tempo se animavam?
Joana lembrava-se dos bonecos do negociante da feira, do seu amor mudo, do longo tempo que ficaram juntos na vitrina, até que um deles se quebrou em dois pedaços. Ria, à recordação dessa história. Quanto a Knoud, sentia o sangue lhe subir ao rosto e o coração bater-lhe duas vezes mais depressa. e dizia consigo:
- Não! Deus seja louvado! Ela não ficou orgulhosa! E foi ela, notou-o bem, foi ela quem fez os pais convidá-lo para passar com eles o serão. Mais tarde Joana tomou um livro e leu-o em voz alta. Pareceu-lhe que o que ela lera tinha relação com o seu amor, de tal modo as ideias do autor se assemelhavam às suas. Depois a moça cantou uma canção muito simples, mas para Knoud aqueles versos tão curtos eram todo um poema em que , supunha ele, o coração da jovem transbordava. Certamente ela o amava, não havia dúvida alguma. A esse pensamento as lágrimas corriam, pelas faces do moço, sem que ele pudesse retê-las. também já não era capaz de dizer uma só palavra. Pareceu-lhe que se tornara completamente estúpido; mas Joana apertou-lhe a mão, dizendo:
- Tens um coração sensível, Knoud; fica sempre tal como és.
E que serão, aquele! Dormir, depois de uma noite assim? Nem falar nisso! E Knoud, é claro, não conciliou o sono a noite inteira.
À despedida, dissera-lhe o pai de Joana:
- E agora não nos esqueças; não deixes passar o inverno inteiro sem vir aqui.
Pareceu-lhe que, depois daquelas palavras, podia muito bem voltar lá no domingo seguinte; era essa a sua intenção, mas isso não o impedia de ir dar um passeio, depois de acabado o trabalho - posto que este se prolongasse com a luz acesa - passando sempre pela rua onde morava Joana. Olhava para as janelas do seu quarto, quase sempre iluminadas. Uma vez percebeu distintamente a sombra da moça, que se projetava na cortina. Que bela noite foi aquela!
A senhora do patrão não gostava nada daquelas saídas contínuas, a tardias horas; sacudia a cabeça em sinal de mau presságio. Mas o patrão dizia, sorrindo:
- Ora, ele é moço; é preciso aproveitar a mocidade.
- No domingo ver-nos-emos! - pensava Knoud .- Dir-lhe-ei que ela é dona de minha alma e que deve casar comigo. Não sou mais que um pobre oficial de sapateiro; mas dentro em breve serei mestre. Hei de trabalhar, hei de suportar tudo o que for preciso. Sim: vou falar-lhe francamente. O amor mudo de nada serve. A história dos pães-de-mel provou-me isso há muito tempo.
Chegou domingo. Knoud apresentou-se na casa da moça: mas que pena! Estavam todos convidados para uma reunião na cidade. E como Knoud não se despedia, foi preciso dizer-lho. Joana apertou-lhe a mão e perguntou:
- Já foste ao teatro? É preciso ires uma noite. Canto na quarta-feira, e se estiveres livre nesse dia, mando-te uma entrada. Meu pai sabe onde mora o teu patrão.
Que lembrança afetuosa, a dela! Na quarta-feira, ao meio-dia, recebia ele, de fato, um envelope fechado, sem uma palavra escrita; mas o bilhete de entrada lá estava. Foi naquela noite, pela primeira vez, ao teatro, e lá viu Joana. Como estava graciosa! É verdade que em cena casara com um estranho, mas aquilo era só comédia, que não passa de fingimento, bem o sabia ele. Senão ela não teria certamente coragem de lhe enviar um bilhete para ele fosse ver com seus próprios olhos semelhante coisa...Todo o mundo bateu palmas e se extasiava, falando em altas vozes. Knoud gritou:
- Viva!
Sim, o próprio rei sorria para Joana, mostrando quanto lhe agradava ouvi-la! E Knoud se sentia tão pequenino! Contudo, dizia consigo:
- Mas eu a amo tanto e ela também me ama muito: isso nivela tudo. Entretanto, compete ao homem pronunciar a primeira palavra: é o que pensava a mocinha de pão-de- mel. Sua história encerra mais de uma lição.
No domingo seguinte Knoud voltou à casa dos seus amigos. Joana estava sozinha e recebeu-o; não podia ser melhor ocasião.
- Foi bom que aparecesses- disse ela. - Pensava em pedir a meu pai para te procurar, mas tinha um pressentimento de que virias hoje. Porque queria comunicar-te que parto para a França; é preciso, para que eu chegue a ser alguma coisa na vida.
Foi como se tudo no quarto dançasse em roda de Knoud. Pareceu que o coração se lhe ia despedaçar. Nem uma lágrima lhe subiu aos olhos, mas via-se bem quão profundo era o seu desgosto.
- Como és meu amigo! - disse ela.
E aquelas palavras desataram a língua do moço. Disse-lhe com que ardor a amava e que era preciso que casasse com ele.
Mas assim que pronunciou essas palavras, viu que Joana mudava de cor, tornado-se muito pálida. Retirou a mão e respondeu, com expressão séria e aflita:
- Não te tornes infeliz, Knoud, e não me faças infeliz também. Serei para ti uma boa irmã, em quem podes ter confiança, mas nada mais.
E depois continuou:
- Deus dá-nos a força precisa para vencer os momentos dificieis, contanto que tenhamos a vontade e a coragem de enfrentá-los.
Naquele momento entrava na sala sua madrasta, e Joana disse-lhe:
- Knoud está fora de si porque vou partir. tem coragem, meu amigo!
E ela punha a mão no ombro dele, fingindo que não se tinha falado senão da viagem. E continuou ainda:
- És uma criança. Mas é preciso que sejas agora bom e razoável, como dantes, à sombra do salgueiro quando éramos pequenos.
Parecia a Knoud que o mundo saíra fora dos eixos. Seus pensamentos eram como um fio solto que esvoaçava ao vento. E ele ali estava, indeciso; não sabia mais se o tinham convidado a ficar; mas Joana e sua madrasta foram muito amáveis e compassivas. A moça serviu-lhe chá e cantou. Sua voz já não soava como antigamente, mas era incomparavelmente bela. E o coração do moço dilatava-se ao ouvi-la. Quando se separaram, ele não estendeu a mão a Joana, que o compreendeu e disse-lhe:
- Mas deves apertar a mão de tua irmã, na despedida, meu velho camarada de infância!
E sorria por entre as lágrimas que lhe molhavam as faces, repetindo aquele nome de irmã. Sim, era uma bela consolação!
E foi assim que se separaram.
III
Joana embarcou para França. Todos os dias knoud errava longo tempo nas ruas de Copenague. Os outros aprendizes da oficina perguntavam-lhe por que passeava assim, sempre mergulhando nas suas reflexões. E incitavam-no a partilhar os seus prazeres:
- É preciso que a gente se divirta enquanto é jovem!
Foi com eles à sala de dança. Havia lá muitas moças bonitas. Nenhuma era, porém, tão linda como Joana. E ali, onde julgava poder esquecê-la, tinha , ao contrário, sua imagem mais presente no pensamento.
-Deus nos dá forças -dissera ela - contanto que tenhamos vontade e coragem.
E ele se lembrava daquelas palavras, que deviam fortalecer-lhe o ânimo. Os violinos ressoaram naquele momento e as moças dançaram uma ronda. Ele estremeceu de espanto. Parecia-lhe que estava em um lugar onde não teria podido levar Joana. Entretanto ela lá estava pois que a levava no coaração. Saiu e foi correndo pelas ruas. Passou diante da casa onde a moça tinha vivido; estava tudo escuro ali; tudo vazio e deserto. O mundo seguia seu caminho.
Veio o inverno e as águas gelaram. A natureza mudou de aspecto; parecia que por toda a parte só se viam preparativos fúnebres. Mas quando a primavera voltou e o primeiro barco a vapor saiu do mar, Knoud se viu tomado de desejo ardente de viajar, de ir longe, longe, de ir para outra parte.
Afivelou o saco de viagem e foi-se, através da Alemanha, de cidade em cidade, sem parar em nenhuma. Quando porém, entrou na antiga e curiosa Cidade de Nuremberg, pareceu-lhe que tornava a ser senhor de seus pés; e então decidiu ficar ali.
Nuremberg é uma cidade singular; parece uma figura recortada de alguma velha crônica histórica.
As ruas vão serpenteando ao sabor do seu capricho. As casa, sobrecarregada de esculturas bizarras, ostentam estátuas nas fachada. E do alto dos tetos, de estrutura singular, surgem gárgulas em forma de dragão, de lebre, de cão de pernas compridas.
De saco às costas, Knoud parou na Praça do Mercado. Ali ficou junto de uma fonte antiga, ornada de soberbas estátuas de bronze. Uma bonita rapariga aparava água justamente naquele instante. Knoud, fatigado da marcha, sentia uma sede devoradora; ela lhe deu de beber e ofereceu-lhe também uma rosa que trazia na mão. Isso pareceu de bom augúrio ao viajante.
De uma igreja próxima vinham harmoniosos sons de órgão, familiares ao seu ouvido. Pareciam-lhe iguais aos que ressoavam na igreja de Kjoege... Entrou no vasto santuário. O sol penetrava pelos vitrais de cor, iluminando as filas de pilares altos e imponentes. o moço sentiu a piedade tomar-lhe os pensamentos, e a paz e o repouso lhe voltarem ao coração.
Procurou e achou em Nuremberf um bom patrão. Ficou na sua casa e aprendeu a língua alemã.
Os antigos fossos que cercavam as fortificações da cidade foram divididos e convertidos em hortas; mas as altas muralhas com suas forças maciças ainda estão de pé. E ainda existe o caminho coberto. E lá que o cordoeiro torce suas cordas. Nas fendas das velhas muralhas crescem os sabugueiros em moitas espessas, estendendo os galhos por cima das casinhas baixas em que se encostam às fortificações. Em uma dessas casinhas morava o patrão de Knoud. Acima da mansarda onde o moço se sentava, um belo sabugueiro estendia sua folhagem.
Ficou ele lá um verão e um inverno; mas veio depois a primavera e Knoud não pode mais conter-se. O sabugueiro floresceu; encheu o ar de perfume. Recordava a Knoud outro sabugueiro e ele se sentia transportado para o jardinzinho de Kjoege. Deixou então o mestre sapateiro e foi procurar outro no interior da cidade, onde não cresciam sabugueiros.
Sua nova oficina ficava perto de uma ponte velha; abaixo dela rolava rápidas as águas de um regato, que faziam girar ruidosamente uma roda de moinho. As águas passavam entre casas de empenas tão estragadas, que pareciam a todo o instante se despenhar no arroio.
Ali não vicejava nenhum sabugueiro, mas bem em frente a oficina seguia-se um salgueiro velho, que se segurava pelas raízes à casa para não ser arrastado pela torrente. E, como o salgueiro do jardim de Kjoege, mergulhava parte da sua ramagem no regato.
Sim: Knoud passara de mãe Sabugueira para o pai Salgueiro. Nas noites de luar o salso tinha alguma coisa que lhe ia direito ao coração, enternecendo-o e desanimando-o. Não pode ficar ali. Por que? que o diga o salgueiro; que o diga o sabugueiro em flor.
Despediu-se do patrão e deixou a Cidade de Nuremberg. A ninguém falava de Joana. Enterrara seu desgosto no fundo do próprio ser. Vinha-lhe muitas vezes à memória a história dos pães-de-mel, cujo sentido profundo compreendia melhor agora. Sabia por que o homenzinho tinha uma amêndoa amarga à altura do peito. Seu coração estava também cheio de amargura. Joana, ao contrário, sempre tão doce e afetuosa, não era ela toda açúcar e mel como a mocinha da ingênua narração?
Esses pensamentos deixaram-no oprimido. Mal podia respirar. Atribui isso à correira do saco e desafivelou-a. Mas nada lhe serviu. Para ele havia agora dois mundos diferentes, nos quais vivia: o mundo exterior, que o cercava, e o que trazia
Ao avistar porém, as altas montanhas, seu espirito se desprendeu desses pensamentos melancólicos, começando então a dar atenção ao que o cercava. Diante daquele espetáculo grandioso sentiu os olhos cheios de lágrimas.
Apareciam-lhe os Alpes como as asas desdobradas da terra.
- Que sucederia se ela distendesse de repente essas asas imensas, com suas florestas sombrias, suas torrentes, suas massas de neve? Sem dúvida a terra, no dia do juízo, se elevará assim, erguida para o infinito, e, como uma bolha de sabão ao sol, se dispersará em milhões de átomos, aos raios dos relâmpagos divinos...
E concluiu, suspirando:
- Quem dera que fosse hoje o dia do juízo!
Atravessou uma região que lhe aparecia como um pomar magnifico. Do alto dos balcões dos chalés as moças que batiam o cânhamo o cumprimentavam; respondia-lhes simplesmente, sem jamais acrescentar uma palavra amável, como costumam fazer os outros moços.-------------------
Quando vistou, através da espessa folhagem, os grandes lagos de águas esverdeadas, lembrou-se do mar que banha a praia onde nascera e da baía de Kjoege. Sentia uma profunda melancolia, mas já não era mais a dor.
Viu o Reno precipitar-se em cheio do alto de um rochedo, dispersando-se em milhões de partículas, que formam uma massa branca e brumosa, através da qual brincam as cores do arco-íris, como uma fita esvoaçante no ar. Aquele espetáculo imponente lembrou-lhe a cascata rumorosa e espumejante do regato que agita as rodas do moinho de Kjoege. por toda a parte o perseguia a saudade do lugar onde nascera.
Gostaria de ficar em uma daquelas tranquilas cidade das margens do Reno; mas cresciam lá muitos sabugueiros, muitos sabugueiros. Continuou a viajar. Atravessou altas montanhas, andando por caminhos que costeavam rochas cortada a pique, como uma goteira que guarnece a beirada do teto. Via-se acima das nuvens, que lhe flutuavam abaixo dos pés; ouvia a uma profundidade prodigiosa o fragor das torrentes que rolavam no fundo dos vales. Nada o espantava, nada o assombrava. por sobre os vértices nevados onde florescia a rosa dos Alpes ia andando para os países do sol. Disse adeus às regiões do Norte, e chegou, à sombra de alamedas de castanheiros enlaçados de vinhas, aos campos de milho. montes escarpados o separavam, como uma muralha imensa, dos lugares que tinham deixado tão tristes recordações. e dizia consigo:
- É bom que assim seja!
IV
Diante dele estava uma grande e magnífica cidade; os habitantes chamavam-na Milão. Encontrou um patrão alemão que lhe deu trabalho. Era um homem bom e sua mulher também era boa e piedosa. Os dois velhos tomaram afeição ao operário estrangeiro que falava pouco, mas por isso mesmo trabalhava e levava vida honesta e cristã.
Parecia a Knoud que Deus lhe livrara o coração do pesado fardo que o oprimia. Seu maior prazer era subir à Catedral, de mármore tão alvo como a neve do seu país. Andava por entre as torrinhas pontudas, as agulhas e as arcadas. Em cada recanto, em cada ogiva, sorria-lhe uma estátua branca. Acima, o céu azul; abaixo, a cidade; depois, para além, a planície imensa da verde Lombardia, e, mais ao longe, altas montanhas. pensava na igreja de Kjoege, nas suas paredes vermelhas cobertas de hera: que diferença entre ela e a catedral milanesa! Não tornaria a vê-la. não desejava mais voltar. Aqui, atrás daquelas montanhas, é que queria ser enterrado.
Fazia já um ano que estava naquela cidade e três que deixara a pátria. Um dia o patrão, para o distrair, levou-o- não ao circo, para os execícios equestres - mas à Opera. A sala era na verdade digna de ser vista. Tem sete ordens de camarotes, todos guarnecidos de belas cortinas de seda. Da primeira fila até a última, no topo do edifício, estavam sentadas damas elegantes, adornadas como se fossem a um baile. Os cavalheiros vestiam também trajes de cerimônia; muitos deles tinham vestimentas recamadas de ouro e de prata. Era tão claro lá dentro como o dia; e soava uma música magnífica. era muito mais belo do que a Comédia de Copenague. Sim, mas lá estava Joana!
Parecia um encantamento! Subiu o pano e eis que aparece Joana, coberta de sedas e pedrarias, tendo à cabeça uma cora de ouro. Ela cantou como só os anjos do céu sabem cantar. Avançava até a borda do proscênio e sorria como só Joana sabia sorrir. Olhava justamente para Knoud. O pobre rapaz pegou na mão do patrão, gritando alto:
- Joana!
Mas apenas o velho o ouviu: a música abafou-lhe a voz. E o patrão, fazendo a cabeça um sinal afirmativo, disse:
- Sim, sim, ela se chama mesmo Joana.
Tirou do bolso um papel impresso e mostrou o nome que ali estava...todo o nome de Joana.
Não, não era sonho os espectadores estavam transportados de entusiamo. Lançavam-lhe flores, ramalhetes, coroas. cada vez que Joana deixava o palco, tornavam a chamá-la; ela vinha, desaparecia, tornava a voltar.
Terminado o espetáculo, as pessoas se amontoavam ao redor da sua carruagem. Desatrelaram os cavalos para conduzi-la. knoud lá estava, na frente , mais alegre, mais excitado que os outros. quando a carruagem parou, diante de uma casa esplendidamente iluminada, ele foi colocar-se ao pé da portinhola. Joana desceu. Caía-lhe a luz sobre sobre o rosto. ela sorria, agradecia a todo o mundo com uma graça suave. knoud olhou-a nos olhos e ela também o olhou; mas, comovida como estavam não o reconheceu. Um moço com uma estrela resplandecente de diamantes no peito ofereceu-lhe o braço, enquanto diziam na multidão:
- São noivos.
Knoud volta apressadamente ao seu quarto e prepara o saco de viagem. Queria - era-lhe agora absolutamente necessário - voltar para sua terra, para o sabugueiro, para o salgueiro. Ah! à sombra do salgueiro, em uma hora, um homem pode repassar em espírito sua vida inteira.
As pessoas da casa onde morava instaram com ele para ficar, mas não conseguiram retê-lo. observaram-lhe que o inverno se aproximava, que já caía a neve na montanha. Mas Knoud retrucou:
- As caruagens terão de abrir passagem na neve; no sulco que elas deixaram, saberei achar meu caminho.
V
Tomou o saco e o bastão e encaminhou-se para as montanhas. Subiu montanha e desceu montanha. Iam-lhe diminuindo as forças e ainda não avistava nem aldeia nem casa. Seguia para o Norte. As estrelas cintilavam ao redor dele. Vacilavam-lhe as pernas, andavam-lhe a cabeça à roda. No fundo do vale brilhavam também estrelas, como se houvessem outro céu lá embaixo. Sentia-se doente. Os pontos luminosos lá de baixo aumentavam sem cessar e se moviam para um lado e para outro. Era uma cidadezinha. quando knoud o reconheceu, procurou reunir as forças que lhe restavam a fim de chegar a um albergue humilde.
Passou ali a noite e o dia seguinte. Tinha necessidade de repouso e de cuidados. Já começara o degelo; chovia no vale. Na manhã seguinte chegou ao albergue um homem com uma sanfona e tocou uma ária muito semelhante a uma melodia dinamarquesa. Então foi impossível a knoud ficar ali mais tempo; pôs-se a caminho para o Norte. Caminhou dias e dias, com pressa, como se receasse que todos morressem na sua terra antes que lá chegasse.
Não falava a ninguém sobre o que o impelia. Pessoa alguma suspeitava a causa do seu desgosto. Uma dor assim não interessa o mundo, nem mesmo os nossos amigos, e em verdade Knoud não tinha amigos. Como estrangeiro, atravessava os países estrangeiros, marchando sempre para o Norte.
Sobreveio a noite. Seguia ele pela estrada real. Sentia de novo a neve a cair. A região ia ficando plana. Viam-se campos , pastagens. À beira da estrada erguia-se um grande salso. Tudo aquilo recordava a Knoud a sua terra. Sentou-se debaixo da árvore; estava tão fatigado....curvou a cabeça e o olhos se lhe fecharam: ia dormir.
Não deixou de observar, entretanto que o salgueiro se abaixava e estendia os galhos acima dele. Aparecia-lhe aquela árvore como um ser grandioso. Sim, era o pai Salgueiro; erguera-o nos braços e o levara, aquele filho cansado e esgotado, para a pátria, para a praia lisa de Kjoege. Sim, era o pai Salgueiro em pessoa, que tinha percorrido o mundo, em busca do seu knoud, que o achara e o transportara para o jardim, à beira do regato; e lá estava Joana em todo o seu esplendor, com a coroa de ouro à cabeça, tal como ele a vira pela última vez. e ela lhe gritou de longe:
- Bem-vindo sejas!
Diante dele se erguiam também duas figuras singulares. Conhecia-as desde a infância; tinham, porém, muito melhor aspecto do que então. Haviam mudado muito, e com vantagem. Eram os dois pães-de-mel, o homem e a mulher; ele os via do lado bem-feito, e pareciam, na verdade, muito bem dispostos.
- Nós te agradecemos - disseram-lhe ele; - tu nos prestaste um grande serviço : desamarraste nossa língua; ensinaste que não devemos calar nossos pensamentos - senão eles de nada servem. Foi assim que atingimos nosso fim e agora somos noivos.
Dito isso, atravessaram as ruas de Kjoege, de mãos dadas. Tinham um ar muito digno. Encaminharam-se para a igreja: Knoud e Joana seguiram-nos, também de mãos dadas. A igreja lá estava , como outrora, com as paredes cobertas de hera verdejante, A grande porta abriu-se de par em par. Ouviu-se o som do órgão.
Entraram na nave. Abrindo lugar para ele, disseram os pães-de-mel:
- Os amos vão adiante.
E Knoud e Joana ajoelharam-se diante do altar.
knoud despertou e achou-se sentado à sombra do velho salgueiro, em país estrangeiro, numa noite fria de inverno. Das nuvens caíam granizos que lhe fustigavam o rosto gelado.
- Foi esta a hora mais bela de toda a minha vida! - exclamou ele. - E foi um sonho... Meu Deus! Fazei-me sonhar sempre assim!
Fechou de novo os olhos, adormeceu e sonhou.
De manhã caiu neve. O vento lançou-se sobre o moço adormecido. E ele continuava a dormir. Moradores das aldeias vizinhas que se dirigiam para a igreja, passaram ali e viram uma pessoa estendida à beira da estrada. Era um operário . Estava morto.
Morrera de frio. à sombra do salgueiro.
Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
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