Natural de Pelotas, RGS,escritor regionalista que melhor soube imprimir"cor local! à suas obras. Tanto espelhando os traços mais característicos do gaúcho, como revelando seu folclore ou dando forma definida a algumas das mais belas lendas, conseguiu sempre e m todos os casos manter-se num elevado nível artístico,
CONTRABANDISTA
Batia nos noventa anos, o corpo magro mas sempre têso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandista que fez cancha nos banhados do Ibirocaí.
Esse gaúcho desabotinado levou a existência a cruzar os campos da fronteira; à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!....
Conhecia as querências, pelo faro; aqui o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui cancha de grachains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo/ adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areião. Até pelo gosto ele sizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobras e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo.
Tinha vindo das guerra do outro tempo; foi um dos que pelearam na batalha de Ituzaingó; foi do esquadrão do General José de Abreu. E sempre que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe.
Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser muito de mãos abertas.
Se numa mesas de primeira ganhava uma ponchada de basastracas,( Antiga moeda de 400 réis. Patacão argentino ou uruguaio. )...reunia a gurizada da casa, fazia- pi!pi!pi! - como pra galinha e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro.
Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas deses laçaços de apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num -caim! caim! caim! - de desespero. outras vezes dava-lhe para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado( Ficar tonto; desnortear-se. Envergonhar-se. ), puxava por uma ponta da toalha e lá vinha de tirão seco, toda a traquitana dos pratos e copos e garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!....
Depois garganteava a chuspa(Rio Grande do Sul] Bolsinha feita com a pele do papo da avestruz, ou de outro couro, ou de pano, ... e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento .
Era um pagodista!
Aqui há poucos anos - coitado! - pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito estava afamiliado. Não nos víamos desde muito tempo.
A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem-parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três malotes já emplumados e uma mocinha - pró caso, uma moça - que era o Santo-Antoninho-onde-te-porei! - daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.
E a noiva, casadeira, já era.
E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.
O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o enxoval da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga,mas como cada um manda no que é seu....
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro.
Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões. Naqueles tempo o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar( desassossegar(-se), inquietar(-se), incomodar(-se).as guardas do inimigo; uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços.. 1. Que ou aquele que trata de cavalgaduras. 2. Diz-se do muar que procede de égua e burro.) abanava o poncho e vinha à meia-rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; o resto; os de lá faziam conosco a mesma coisa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados.
Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do mesmo jeito. só se cuidava de negacear as guardas do Serro Largo, em Santa-Tecla, do Haedo...O mais era várzea!
Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias* e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda quem pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!...
Quem governa aqui o continente era um chefe que se chamava o Capitão-General; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros...
Vancê tome tenência e vá vendo como as coisas, por si mesmas, se explicam.
Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...
Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralhos de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!
Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos renóis...
Agora imagine vancê si a gente lá dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!...O tal rei nosso senhor não se enxergava, mesmo!...
E logo com quem...! Com a gauchada!...
Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios...; e ninguém pagava dízimos dessas coisas.
Às vezes, lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão da pólvora; doutras, uma partida de milicianos saía de atravessado e tomava conta de todo, a coice da arma; isso foi ensinando a escaramuçar com as golas de couro.
Nesse serviço foram-se aficcionando alguns gaúchos; recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Bahia, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.
Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se entendiiam.
Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.
Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados.
A coisa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato; bastava ser campeiro e destrocido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo...
Não se lidava com papéis nem contas de coisas; era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!...
Quanta fauchagem leviana aparecia, encontrava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai.
O dinheiro do Brasil ficou muito caro; uma onça de ouro, que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil-reis!...Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!....
Começou-se a cargueirar de um tudo; panos, água de cheiro, armas,
minigâncias, remédios, o diabo a quatro! ... Era só por boca!
Apareceram também as mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui....
Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletorias uma papeladas cheias de Benzeduras e rabiscas....
Ora...ora... Passar bem, paisano!....A semente grelou e está a árvore ramalhuda, que você sabe, do contrabando de hoje.
O jango Jorge foi maioral nesses estrupícios. Desde moço, até a hora da morte. Eu vi.
Como disse, na madrugada, véspera do casamento,o Jango Jorge saiu para buscar o enxoval da filha.
Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.
As vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.
Surdiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seu sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeiras, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava chorando;; fizeram uma algazarra e ela- tão boazinha! - veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chita de andar em casa, epôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente.
A rir, sim rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar dos olhos prestanudos...
E rindo e chorando estava, sem saber por que... sem saber por que, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:
- Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...
Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber por que...pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva....
Era já lusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo.
E o mesmo silêncio foi fechado todas as bocas e abrindo todos os olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém informou nada; todos entenderam tudo... que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
- A guarda nos deu em cima...tomou os cargueiros...E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto...e ainda o amarrou no corpo. Aí foi que o crivaram de balas...parado. Os ordinários!...Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!
A sia dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-a.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, e seu véu branco, as flores de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue...tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas coisas bonitas como que bordada de colorado, num padrão esquisito, de feitios estrambóticos como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!...
Então rompeu o choro na casa toda.
FIM
Sesmaria era um lote de terras distribuído a um beneficiário, em nome do rei de Portugal, com o objetivo de cultivar terras virgens. Originada como medida administrativa nos períodos finais da Idade Média em Portugal, a concessão de sesmarias foi largamente utilizada no período colonial brasileiro.
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