Nenhum pudor. Alguém me estendeu uma coberta sobre a nudez. Como é grande o calor, descobri-me, embora estivessem muitas pessoas na sala. E não me envergonhei quando a enfermeira me ensaboou e raspou os pelos do ventre.
Ao deitar-me na padiola, deixei os chinelos junto da cama; ao voltar da sala de operações, não os vi.
O médico se dirige em linguagem técnica a uma mulher nova, e ela me examina friamente, como se eu fosse um pouco de substância inerte, diz que os meus sofrimentos vão ser grandes.
Por enquanto estou apenas atordoado. Aquela complicação, ferros tinindo, máscaras curvadas sobre a mesa, e cheiro dos desinfetantes, as minhas pernas imobilizando-se, mãos enluvadas movendo-se em gestos rápidos, um traço na pele escura de iodo, nuvens de algodão, tudo me dança na cabeça. Não julguei que a incisão tivesse sido profunda. Uma reta na superfície. Considerava-me quase defunto, mas no começo da operação esta ideia foi substituída por lembranças da aula primária. Um aluno riscava figuras geométricas no quadro negro.
Morto da barriga para baixo. O resto do corpo iria morrer também, no dia seguinte descansaria no mármore do necrotério, seria esquartejado, serrado..
Fechei os olhos, tentei sacudir a cabeça presa. Uma cara me perseguia, cara que surgira pouco antes da enfermaria dos indigentes. Eu ia na padiola, os serventes tinham parado em frente a uma porta aberta- a grade alvacenta parecera, feita de tiras de esparadrapo, e, por detrás da grade, manchas amarelas, um nariz purulento, o buraco negro duma boca, buracos negros de órbitas vazias. Esse tabuleiro de xadrez não me deixava, era mais horrível que as visões ferozes do longo delírio.
O trabalho dos médicos iria prolongar-se, cacete, meses e meses, ou findaria vinte e quatro horas depois no necrotério? Cortado em pedaços, uma salmoura esbranquiçada cheirando a formol o atestado de óbito redigido à pressa, um cirurgião de mangas arregaçadas, lavando as mãos, extraordinariamente distante de mim.
Agora espero os sofrimentos anunciados. Um gemido fanhoso de relógio fere-me os ouvidos e fica vibrando. Insensível, imóvel, olho as pernas compridas A dobra que entre ela se forma na coberta. Outras pancadas vagarosas tremem abafando os cochichos que fervilham na sala. Parecem-me virem juntas à primeira: a meia hora decorrida perdeu-se completamente.
Inércia, um vácuo enorme, o prognostico da mulher nova ameaçando-me. Sono fadiga, desejo de ficar só. Alguém se debruça na cama, encosta a orelha ao meu coração. Fura-me o braço, uma agulha procura lentamente a veia.
Escuridão, silêncio. Depois um instrumento de música a tocar, a sombra adelgaçando-se, telhados, árvores e igrejas esboçando-se a distância. Tenho a sensação de estar descendo e subindo, balançando-me como um brinquedo na extremidade dum cordel.
A dormência prolongada pouco a pouco se extingue. Os dedos dos pés mexem-se, em seguida os pés, as pernas - e enrosco-me como um verme. Uma angústia me assalta, a convicção de que me aleijaram. Esta ideia é tão viva que, apesar de terem voltado os movimentos, afasto a coberta, apalpo-me para certificar-me de que não me amputaram as pernas. Estão aqui, mas ainda meio entorpecidas, e é como se não fossem minhas.
As idas e vindas, as viagens para cima a para baixo, cansam-me demais, penso que uma delas será a última, que o cordel vai quebrar-se a deixar-me eternamente parado.
Noite. A treva chega de repente, entra pelas janelas, vence a luz da lâmpada. uma friagem doce. A chuva açoita as vidraças. Durmo uns minutos, acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio de ruídos espaçados - rolar de automóveis, um canto de bêbedo, lamentações dos outros doentes - avultam as pancadas fanhosas do relógio. Um som arrastado, encatarrado e descontente, gorgolejo de sufocação. Nunca houve relógio que tocasse de semelhante maneira. Deve ser um mecanismo estragado, velho, friorento, com rodas gastas e desdentadas. Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar os pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia. O relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e a máquina decrépita vai descansar.
Bem. Daqui a meia hora não ouvirei as notas roucas e trêmulas. Vultos amarelos curvam-se sobre a cama, que sobe e desce, levantam-me, enrolam-me em pastas de algodão e ataduras, esforçam-se por salvar os restos deste outro maquinismo arruinado. Um líquido acre molha-me os beiços. Serventes e enfermeiros deslocam-se, com movimentos vagarosos de sonâmbulos, a luz esmorece, dá aos rostos parados feições cadaverosas.
Impossível saber se é esta a primeira noite que passo aqui. Desejo pedir os meus chinelos. mas tenho preguiça, a voz saí-me flácida, incompreensível. E esqueci o nome dos chinelos. Apesar de saber que eles são inúteis, desgosta-me não conseguir pedi-los. Se estivessem ao pé da cama, sentir-me-ia próxima da realidade, as pessoas que me cercam não seriam espectrais e absurdas. Enfadando-me, quero que me deixem. Acontecendo isto, porém, julgar-me-ei abandonado, rebolar-me-ei com raiva, pensarei na enfermaria dos indigentes, no homem que tinha uma grade de esparadrapos na cara?
Silêncio. Porque será que esta gente não fala e o relógio se aquietou? Uma ideia acabrunha-me. Se o relógio parou, com certeza o homem dos esparadrapos morreu. Isto é insuportável. Por que fui abrir os olhos diante da amaldiçoada porta? Um abalo na padiola, uma parada repentina - e a figura sinistra começara a aperrear-me, a boca desgovernada, as órbitas vazias negrejando por detrás da grade alvacenta. Por que se detiveram junto àquela porta? Dois passos aquém, dois passos além - e eu estaria livre da obsessão.
O relógio bate de novo. Tento contar as horas, mas isto é impossível. Parece que ele tenciona encher a noite com a sua gemedeira irritante.
Dr. Nogueira, principiando a falar, não acaba; é um palavreado infinito que nos enjoa, deixa-nos embrutecido, mudos, mastigando um sorriso besta de cumplicidade.
Felizmente o homem dos esparadrapos vive. Repito que ele vive e caio num marasmo agoniado. No silêncio as notas compridas enrolam-se como cobras, estiram-se pela casa, invadem a sala, arrastam-se devagar nos cantos, sobem à cama onde me agito apavorado. Que fim levaram as pessoas que me cercava? Agora só há bichos, formas rastejantes que se torcem com lentidão de lesmas. Arrepio-me o som penetrante no sangue, percorre-me as veias, gelado.
As vidraças, a chuva os ruídos, sumiram-se. Há uma noite profunda, um céu pesado que chega até a beira da minha cama. As coisas pegajosas engrossam, vão enlaçar-se nos seus anéis. tento esquivar-me ao abraço medonho, revolvo-me no colchão, grito.
Aparecem de novo as figuras atentas, lívidas. A beberagem acre umedece-me a língua seca, dura como língua de papagaio.
- Obrigado.
Puxo a coberta para o queixo, o frio diminui. Há um frio enorme, precipícios sem fundo - seguro-me a ramos frágeis para não cair neles.
Ouço trovões imensos. Volto a ser criança, pergunto a mim mesmo que seres misteriosos fazem semelhante barulho. Meus irmãos pequenos iam deitar-se com medo, minhas tias ajoelhavam-se diante do oratório, a chama das velas tremia, as contas dos rosários chocavam-se como bilros de almofadas, um sussurro de preces enchia o quarto dos santos.
Por que estão chiando aqui perto de mim? Estarão rezando? Não houve trovões. Nuvens brandas e altas correm por cima das árvores, das igrejas, do telhado da penitenciária. Olho os tipos que me rodeiam. Afastam-se, falam em voz baixa, presumo que me espiam desconfiados. Acham-me com certeza muito mal, pensam que vou morrer, procuram decifrar as palavras incoerentes que larguei no delírio. envergonho-me. terei dito segredos e inconveniências?
Desejo atraí-los, conversar, mostrar que sou um indivíduo razoável e as maluqices do sonho findaram. Mas a linguagem foge. Procuro chamá-los com um gesto, a mão tomba-me sobre sobre o peito, uma fraqueza paralisa-me.
Certamente estou ha dias entre a vida e a morte. Agora a febre diminuiu e os monstros que me perseguiam se desmancharam. As dores do ferimento são intoleráveis. Inclino-me para um lado e para outro, certifico-me de que não me trouxeram os chinelos, imagino que vou aguentar uma eternidade de martírios.
Gritos agudos de crianças rasgam-me os ouvidos como pregos.
Querem ver que a minha operação foi ontem e ficarei aqui amarrado semanas ou meses?
Uma balada corta-me o pensamento. Estremeço: parece que ela me chegou aos nervos através da ferida aberta, entrou-me a na carne com lâmina de navalha.
Aqueles soluços desenganados devem vir da enfermaria dos indigentes, talvez o homem dos esparadrapos esteja chorando. Com esforço consigo encostar as palmas das mãos nas orelhas. Desejo ficar assim, mas a posição é incomoda, os braços fatigam-se, o choro escorrega-me entre os dedos. Se não fosse isto, distrair-me-ia vendo as árvores, o céu, os telhados, falaria aos enfermeiros e aos serventes.
Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança, recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose, a pernas trotas como paus de cangalhas. talvez estejam consertando uma daquelas pernas.
Os gritos baixam, transforma-se num estertor.
- Por que bolem com aquela criança?
A enfermeira avizinha-se, espera que eu repita a pergunta. Aborreço-me por não me haver feito compreender, viro-me com dificuldade e minutos depois ouço os passos da mulher, que se afasta nas pontas dos pés.
Fará somente vinte e quatro horas que me deixaram aqui derreado? Somo: vinte e quatro, quarenta e oito, setenta e duas. Talvez uns três dias. Isto, setenta e duas horas. Os chinelos despareceram: ficarei provavelmente um mês, dois meses. Multiplico: sessenta dias, mil quatrocentos e quarenta horas. Fatigo-me, e a conta se complica, ora apresenta um resultado, ora outro. Convenço-me afinal de que são mil quatrocentos e quarenta horas. É bom que a ferida se agrave e me mate logo. Dois meses de tortura, um tubo de borracha atravessando-me as entranhas, visões pavorosas, os queixumes dos indigentes que se acham junto ao homem dos esparadrapos. Duas mil, oitocentas e oitenta vezes o relógio caduco de peças gastas rosnará, ameaçando-me com acontecimentos funestos. Sessenta dias de imobilidade, o pensamento a emaranhar-se em cipoais obscuros.
Os gritos da criança elevam-se , o calor aumenta, as árvores e os telhados aproximam-se.
Lá estão novamente as horas a pingar do corredor como duma torneira, gotas pesadas escorrendo lentas.
Gargalhadas na rua, barulho de automóvel, pregão dum vendedor ambulante. Talvez o automóvel seja do médico que me vem fazer o curativo. Não é, passou com um ronco de buzina. Agora o que há são rufos de tambor, vozes de comando.
O berro do vendedor ambulante caiu na sala de supetão e ficou rolando, misturando ao choro dos indigentes e ao rumor de ferros na autoclave.
- Porcaria, tudo uma porcaria.
Zango-me. Não me tratam, deixam-me acabar à míngua, apodrecer como um corpo morto. Um silêncio demorado. Penso na criança e no homem que se esconde por detrás da máscara de esparadrapos.
- Como vai o menino?
A enfermeira responde-me que vai bem, mas certamente procura iludir-me. Há um cadáver miúdo perto daqui, vão despedaçá-lo, na mesa do necrotério, os servente levarão a roupa suja para lavanderia. Um colchão pequeno dobrado na cama estreita.
As vozes de comando, os rufos de tambor, o pregão do vendedor ambulante, o rumor dos ferros na autoclave, fazem-me falta. Convenço-me de que o silêncio é de mau agouro. Quando ele se quebrar, uma infelicidade surgirá de repente, então poderei livrar-me dela, O suor corre-me na cara. O primeiro som que vier anunciará desgraça, esta ideia desarrazoada não me larga. Reprimo um acesso de tosse, acredito que ele é indício de hemoptises abundantes.
Começo a perceber um toque-toque surdo, tropel de cavalo cansado. Naturalmente é o sangue batendo-me nos ouvidos. Um coração quase inútil finda tarefa maçadora.
O cadáver pequeno vai ser transformado em peças anatômicas.
Toque-toque. Não é o sangue, é qualquer coisa que vem de fora, provavelmente do corredor. Duas pancada próximas, uma distanciada, andadura irregular de bicho que salta em três pés. Ainda há pouco estava tudo calmo. De repente o relógio velho começou a mexer-se e a viver. Cerro os olhos, digo a mim mesmo que me fatigo à toa, bocejo, tento lembrar-me de fatos que julgo importantes e logo se torna mesquinhos.Afinal não veio a desgraça. Vou restabelecer-me em pouco dias. Vou restabelecer-me, passear nas ruas, entrar nos cafés. Se não tivessem levado os chinelos, convencer-me-ia de que não estou muito doente.
Procuro dormir, esquecer tudo, mas o relógio continua a martelar-me a cabeça dolorida. Espero em vão o fonfonar dum automóvel, a cantiga dum bêbedo, as vozes de comando, o rumor dos ferros na autoclave. Tenho a impressão de que a pêndula caduca oscila dentro de mim, ronceira e e desaprumada.
Os infelizes calaram-se, todos os sofrimentos esmoreceram, fundiram-se naquela voz áspera e metálica.
Os meus braços descarnados movem-se como braços de velho. Passo os dedos no rosto, sinto a dureza dos pelos, as faces cavadas, rugas. Se tivesse um espelho, veria esta fraqueza e esta devastação.
Velhinho, trocando as pernas bambas nas calçadas. Olho as pernas finas como cambitos. A vista escureceu. Velhinho, arrimado a um cacete, balbuciando, tropeçando. Toque-toque - o cajado a bater nos paralelepípedos.
O pensamento escorrega dum objeto para outro. A barba crescida deve ter ficado branca, o pescoço engelhou como um pescoço de galinha.
A mulher desapertava a roupa, despia-se cantando, e eu me conservava distante, encabulado, tentando desamarrar o cordão do sapato, que tinha dado um nó. Não podia descalçar-me e olhava estupidamente um despertador que trabalha muito depressa. Os ponteiros avançavam, e o laço do sapato não queria desatar-se.
O professor explicava a lição comprida numa via dura de matraca, falava como se mastigasse pedras.
O político influente entregava-me a carta de recomendação. Eu gaguejava um agradecimento difícil, atrapalhava-me por causa da dactilógrafa bonita, descia a escada perseguindo pelos óculos dum secretário e pelo tique-taque da máquina de escrever.
Tudo se confunde. A rapariga que se despia, o professor, o político, misturam-se. A criança doente, os enfermeiros, os médicos, o homem dos esparadrapos, não se distinguem das árvores, dos telhados, do céu, das igrejas.
Vou diluir-me, deixar as cobertas, subir na poeira luminosa dos réstias, perdr-me nos gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas, nas pancada medonhas do relógio velho.
Fim
estertor
/ô/
substantivo masculino
MEDICINA
- 1.respiração ruidosa dos moribundos; agonia.
- 2.inspiração ruidosa como a que é percebida no coma ou no sono profundo.
DERREADO
adjetivo Que não se pode endireitar por fadiga, efeito de pancadas ou peso demasiado. Pop Descadeirado. Etimologia (origem da palavra derreado). Particípio de derrear.
Significado de engelhou. O que é engelhou: Do verbo engelhar.1. Encarquilhar, enrugar.2. Fazer gelha (prega ou dobra casual num tecido).3. Murchar ou ..
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