terça-feira, 12 de novembro de 2019

Gaoão Alphosus - GALINHA Cega.

Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava dobrando-lhe o bigode ríspido como  a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:
   - Frangos BONS E BARATOS!
    Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arames os bichos piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem o direito de continuar ciscando no terreiro amplo e longe.
  - Psiu!
  Foi o cavalo quem ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o pregão. UM bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.
  Quanto? Tanto. Mas puseram-se a discutir exaustivamente o preço. Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio. O comprador, brusco.
   - Olhe esta franguinha branca. Então não vale?
   - Está gordota....E que bonitos olhos ela tem. Pretotes...Vá lá!
   O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar pela rua que despertava:
 - Frangos BONS E BARATOS!
 Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão.
  - Olha, Inácia, o que eu comprei.
   A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas. Permaneceu calada.
   - Olha os olhos. Pretotes...
 É.
- Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha.
  -É.
  No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as pernas e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava diveritidissimo.
   A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas, no alto da colina dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos podiam flanar à vontade e dormir a sesta.
   A franga não notou grande diferença entre a sua  vida atual e a que levava no seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios a trouxe-mouxe parra um galinheiro sobre todas, comprido e distinto, mas sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro se agitava todo, barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas. Um fogo de artífício como nunca vira. Aliás, ela nunca tinha visto um fogo de artifício . Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna...
   Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome.
   Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão de natal. Possuía o bastante para a sua felicidade; liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha pertuba-la incompreensivamente. Já la vinha ele, bem elegante, com plumas , forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha...Sujeito cacete.
   O galo - có, có, có - có, có, có, - rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida Sem contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo .

                          *******

     - A melhor galinha, Inácia! Boa à bessa!
   - Não  sei por que.
   - Você sempre besta. Pois eu sei...
   - Besta! Besta, hein?
   - Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto de galinha e fica me amolando.
  -Besta é você!
 - Eu sei que sou.

   Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansavam as suas penas brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos notaram logo a anormalidade. A Branquinha - era o nome que o dono lhe botara - bicava o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma pequena distância de cada bago e repetia o golpe, repetia com desespero até catar um grão que nem sempre era aquele que visava.
   O dono correu atrás da sua Branquinha, agarrou-a, examinou-lhe os olhos. Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão desorientadamente. Atirou ainda mais com paciência até que ela se fartasse. Mas não conseguia com o gasto do milho, de que as outras se aproveitaram, atinar com a origem daquela desorientação. Que é que seria quilo, meu Deus do céu! Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai...Nem por sombra pensou que era a cegueira, irremediável que principiava.
     Também a galinha, coitada não compreendia nada, absolutamente nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava a sombra das pitangueiras?: Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre tão escuro. Quase que á não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava a sombra.
   Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu-os sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. era só ela, pobre indefesa galinha dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pôs o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada. Estava ainda sem sofrimento,porquanto a admirável clarividência dos seus instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando o mundo em redor se havia sumido.
  Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão invisível, tocando-o como bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam. Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra. Queria ver, queria ver! para depois cantar.
   As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão.
   - A coitada está cega, Inácia! Cega!
  - É.
  Nos olhos raiados de sangue do carroceiro(ele era carroceiro) boiavam duas lágrimas as enormes.
   Religiosamente, pela manhâzinha, ele dava milho na mão para a galinha cega. As bicadas tontas, e violentas, faziam doer a palma da mão calosa. E ele sorria. Depois a conduzia ao poço onde ela beba com os pés dentro da água. A sensação direta nos pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a cabeça, mergulhava no líquido, e ela sacudia, assim molhada, no ar. Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto  ao poço. Aquela água era como uma benção para ele. Como a água benta, com um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais. Benção, água benta, ou coisa parecida; uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na caricia dos pingos de água, que el não enxugava e lhe secavam lentamente na pele. Impressão, alias , algo confusa, em requintes na pele. Impressão, alías, algo confusa, sem requinte psicológicos e sem literatura.
   Depois de satisfeita a sede, levava-a para o pequeno cercado de tela, separado do terreiro, que construíra especialmente par ela( as outras galinhas martirizavam muito  a Branquinha). De tardinha dava-lhe outra vez milho e água e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado.
  Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. O tal crescimento já lhe  atrapalhava os passos, lhe impedia a comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no serzinho desgraçado e querido.
                  ********
    Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delicadas lembranças da claridade desaparecida. No terreiro plano, particular, ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame e já se acostumara a abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário. Ainda tinha liberdade -  o pouco de liberdade becessário à sua cegueira. E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela. Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas. e não sentir mais o galo perturbá-la com o, seu có-có-có malicioso. O ingrato.
   De repente os acontecimentos se precipitaram.

        ******

- Entra!
 - Centra!
  A menina ria a maldade atávica no deleite do futebol originalíssimo. A galinha se abandonava sem protesto na sua treva ao léu dos chutes. Ia e vinha. Os meninos não a chutava com tanta força como a uma bola, mas gozavam a brincadeira..
   O carroceiro nem quis saber por que é que a sua ceguinha estava no meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola. O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta.
                                      ******

Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta. Rubro de raiva impotente. Foi quasse que correndo para casa.
  - Onde está a galinha, Inácia?
   - Vai ver.
  Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue...
   Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se esbugalharam de pavor.
  - Não fui eu, não! Com certeza um gambá!
   - Você não viu?
  - Não acordei! Não pude acordar!
   Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para a rua gritando:
   - Me acudam!

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                                ******

   Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá. Todo gambá é pau-dágua. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro. Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. GOSTOSAMENTE.
   De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas vinte horas o sono chegou e, cansado pela insônia na prisão, ele não lhe resistiu. Mas acordou justamente na hora necessária. À porta do galinheiro, ao luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura que se movia dificilmente.
   Foi-se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando em olhares rápidos o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal, para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos espertos e inocentes e começou a rir:
   - Kiss! Kiss! Kiss!
  ( Se o gambá fosse inglês, com certeza estaria pedindo beijos. Mas não era . No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa. Comer galinhas, por exemplo. Bêbedo)
    O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece o surto de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas o homem apenas tocou-o de leve com o pé, já simpatizando.
   - Vai embora, seu tratante!
   O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou olhando para a lua. O bichinho se sentia imensamente feliz e começou a cantarolar imbecilmente como qualquer criatura humana:
   - A lua como um balão balança!
  - A lua como um balão balança!
   A lua como um bal....
   E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.
   FIM

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