Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava dobrando-lhe o bigode ríspido como a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:
- Frangos BONS E BARATOS!
Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arames os bichos piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem o direito de continuar ciscando no terreiro amplo e longe.
- Psiu!
Foi o cavalo quem ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o pregão. UM bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.
Quanto? Tanto. Mas puseram-se a discutir exaustivamente o preço. Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio. O comprador, brusco.
- Olhe esta franguinha branca. Então não vale?
- Está gordota....E que bonitos olhos ela tem. Pretotes...Vá lá!
O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar pela rua que despertava:
- Frangos BONS E BARATOS!
Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão.
- Olha, Inácia, o que eu comprei.
A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas. Permaneceu calada.
- Olha os olhos. Pretotes...
É.
- Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha.
-É.
No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as pernas e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava diveritidissimo.
A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas, no alto da colina dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos podiam flanar à vontade e dormir a sesta.
A franga não notou grande diferença entre a sua vida atual e a que levava no seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios a trouxe-mouxe parra um galinheiro sobre todas, comprido e distinto, mas sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro se agitava todo, barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas. Um fogo de artífício como nunca vira. Aliás, ela nunca tinha visto um fogo de artifício . Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna...
Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome.
Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão de natal. Possuía o bastante para a sua felicidade; liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha pertuba-la incompreensivamente. Já la vinha ele, bem elegante, com plumas , forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha...Sujeito cacete.
O galo - có, có, có - có, có, có, - rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida Sem contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo .
*******
- A melhor galinha, Inácia! Boa à bessa!
- Não sei por que.
- Você sempre besta. Pois eu sei...
- Besta! Besta, hein?
- Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto de galinha e fica me amolando.
-Besta é você!
- Eu sei que sou.
Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansavam as suas penas brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos notaram logo a anormalidade. A Branquinha - era o nome que o dono lhe botara - bicava o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma pequena distância de cada bago e repetia o golpe, repetia com desespero até catar um grão que nem sempre era aquele que visava.
O dono correu atrás da sua Branquinha, agarrou-a, examinou-lhe os olhos. Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão desorientadamente. Atirou ainda mais com paciência até que ela se fartasse. Mas não conseguia com o gasto do milho, de que as outras se aproveitaram, atinar com a origem daquela desorientação. Que é que seria quilo, meu Deus do céu! Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai...Nem por sombra pensou que era a cegueira, irremediável que principiava.
Também a galinha, coitada não compreendia nada, absolutamente nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava a sombra das pitangueiras?: Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre tão escuro. Quase que á não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava a sombra.
Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu-os sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. era só ela, pobre indefesa galinha dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pôs o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada. Estava ainda sem sofrimento,porquanto a admirável clarividência dos seus instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando o mundo em redor se havia sumido.
Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão invisível, tocando-o como bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam. Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra. Queria ver, queria ver! para depois cantar.
As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão.
- A coitada está cega, Inácia! Cega!
- É.
Nos olhos raiados de sangue do carroceiro(ele era carroceiro) boiavam duas lágrimas as enormes.
Religiosamente, pela manhâzinha, ele dava milho na mão para a galinha cega. As bicadas tontas, e violentas, faziam doer a palma da mão calosa. E ele sorria. Depois a conduzia ao poço onde ela beba com os pés dentro da água. A sensação direta nos pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a cabeça, mergulhava no líquido, e ela sacudia, assim molhada, no ar. Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto ao poço. Aquela água era como uma benção para ele. Como a água benta, com um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais. Benção, água benta, ou coisa parecida; uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na caricia dos pingos de água, que el não enxugava e lhe secavam lentamente na pele. Impressão, alias , algo confusa, em requintes na pele. Impressão, alías, algo confusa, sem requinte psicológicos e sem literatura.
Depois de satisfeita a sede, levava-a para o pequeno cercado de tela, separado do terreiro, que construíra especialmente par ela( as outras galinhas martirizavam muito a Branquinha). De tardinha dava-lhe outra vez milho e água e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado.
Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. O tal crescimento já lhe atrapalhava os passos, lhe impedia a comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no serzinho desgraçado e querido.
********
Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delicadas lembranças da claridade desaparecida. No terreiro plano, particular, ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame e já se acostumara a abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário. Ainda tinha liberdade - o pouco de liberdade becessário à sua cegueira. E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela. Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas. e não sentir mais o galo perturbá-la com o, seu có-có-có malicioso. O ingrato.
De repente os acontecimentos se precipitaram.
******
- Entra!
- Centra!
A menina ria a maldade atávica no deleite do futebol originalíssimo. A galinha se abandonava sem protesto na sua treva ao léu dos chutes. Ia e vinha. Os meninos não a chutava com tanta força como a uma bola, mas gozavam a brincadeira..
O carroceiro nem quis saber por que é que a sua ceguinha estava no meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola. O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta.
******
Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta. Rubro de raiva impotente. Foi quasse que correndo para casa.
- Onde está a galinha, Inácia?
- Vai ver.
Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue...
Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se esbugalharam de pavor.
- Não fui eu, não! Com certeza um gambá!
- Você não viu?
- Não acordei! Não pude acordar!
Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para a rua gritando:
- Me acudam!
******
Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá. Todo gambá é pau-dágua. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro. Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. GOSTOSAMENTE.
De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas vinte horas o sono chegou e, cansado pela insônia na prisão, ele não lhe resistiu. Mas acordou justamente na hora necessária. À porta do galinheiro, ao luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura que se movia dificilmente.
Foi-se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando em olhares rápidos o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal, para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos espertos e inocentes e começou a rir:
- Kiss! Kiss! Kiss!
( Se o gambá fosse inglês, com certeza estaria pedindo beijos. Mas não era . No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa. Comer galinhas, por exemplo. Bêbedo)
O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece o surto de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas o homem apenas tocou-o de leve com o pé, já simpatizando.
- Vai embora, seu tratante!
O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou olhando para a lua. O bichinho se sentia imensamente feliz e começou a cantarolar imbecilmente como qualquer criatura humana:
- A lua como um balão balança!
- A lua como um balão balança!
A lua como um bal....
E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.
FIM
Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
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