terça-feira, 12 de novembro de 2019

Gaoão Alphosus - GALINHA Cega.

Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha, aspirou forte. O ar passava dobrando-lhe o bigode ríspido como  a um milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:
   - Frangos BONS E BARATOS!
    Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arames os bichos piavam num protesto. Não eram bons. Nem mesmo baratos. Queriam apenas que os soltassem. Que lhes devolvessem o direito de continuar ciscando no terreiro amplo e longe.
  - Psiu!
  Foi o cavalo quem ouviu e estacou, enquanto o seu dono terminava o pregão. UM bruto homem de barbas brancas na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o braço enorme.
  Quanto? Tanto. Mas puseram-se a discutir exaustivamente o preço. Não queriam por nada chegar a um acordo. O vendedor era macio. O comprador, brusco.
   - Olhe esta franguinha branca. Então não vale?
   - Está gordota....E que bonitos olhos ela tem. Pretotes...Vá lá!
   O homem de barbas poentas entronou-se de novo e persistiu em gritar pela rua que despertava:
 - Frangos BONS E BARATOS!
 Carregando a franga, o comprador satisfeito penetrou no barracão.
  - Olha, Inácia, o que eu comprei.
   A mulher tinha um eterno descontentamento escondido nas rugas. Permaneceu calada.
   - Olha os olhos. Pretotes...
 É.
- Gostei dela e comprei. Garanto que vai ser uma boa galinha.
  -É.
  No terreiro, sentindo a liberdade que retornava, a franga agitou as pernas e começou a catar afobada os bagos de milho que o novo dono lhe atirava diveritidissimo.
   A rua era suburbana, calada, sem movimento. Mas, no alto da colina dominando a cidade que se estendia lá embaixo cheia de árvores no dia e de luzes na noite. Perto havia moitas de pitangueiras a cuja sombra os galináceos podiam flanar à vontade e dormir a sesta.
   A franga não notou grande diferença entre a sua  vida atual e a que levava no seu torrão natal distante. Muito distante. Lembrava-se vagamente de ter sido embalaiada com companheiros mal-humorados. Carregaram os balaios a trouxe-mouxe parra um galinheiro sobre todas, comprido e distinto, mas sem poleiros. Houve um grito lá fora, lancinante, formidável. As paisagens começaram a correr nas grades, enquanto o galinheiro se agitava todo, barulhando e rangendo por baixo. Rolos de fumo rolavam com um cheiro paulificante. De longe em longe as paisagens paravam. Mas novo grito e elas de novo a correr. Na noitinha sumiram-se as paisagens e apareceram fagulhas. Um fogo de artífício como nunca vira. Aliás, ela nunca tinha visto um fogo de artifício . Que lindo, que lindo. Adormecera numa enjoada madorna...
   Viera depois outro dia de paisagens que tinham pressa. Dia de sede e fome.
   Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão de natal. Possuía o bastante para a sua felicidade; liberdade e milho. Só o galo é que às vezes vinha pertuba-la incompreensivamente. Já la vinha ele, bem elegante, com plumas , forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já lá vinha...Sujeito cacete.
   O galo - có, có, có - có, có, có, - rodeou-a, abriu a asa, arranhou as penas com as unhas. embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela teve a revelação do lado contrário da vida Sem contrariedade a não ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não querendo .

                          *******

     - A melhor galinha, Inácia! Boa à bessa!
   - Não  sei por que.
   - Você sempre besta. Pois eu sei...
   - Besta! Besta, hein?
   - Desculpe, Inácia. Foi sem querer. Também você sabe que eu gosto de galinha e fica me amolando.
  -Besta é você!
 - Eu sei que sou.

   Ao ruído do milho se espalhando na terra, a galinha lá foi correndo defender o seu quinhão, e os olhos do dono descansavam as suas penas brancas, no seu porte firme, com ternura. E os olhos notaram logo a anormalidade. A Branquinha - era o nome que o dono lhe botara - bicava o chão doidamente e raro alcançava um grão. Bicava quase sempre a uma pequena distância de cada bago e repetia o golpe, repetia com desespero até catar um grão que nem sempre era aquele que visava.
   O dono correu atrás da sua Branquinha, agarrou-a, examinou-lhe os olhos. Estavam direitinhos, graças a Deus, e muito pretos. Soltou-a no terreiro e lhe atirou mais milho. A galinha continuou a bicar o chão desorientadamente. Atirou ainda mais com paciência até que ela se fartasse. Mas não conseguia com o gasto do milho, de que as outras se aproveitaram, atinar com a origem daquela desorientação. Que é que seria quilo, meu Deus do céu! Se fosse efeito de uma pedrada na cabeça e se soubesse quem havia mandado a pedra, algum moleque da vizinhança, ai...Nem por sombra pensou que era a cegueira, irremediável que principiava.
     Também a galinha, coitada não compreendia nada, absolutamente nada daquilo. Por que não vinham mais os dias luminosos em que procurava a sombra das pitangueiras?: Sentia ainda o calor do sol, mas tudo quase sempre tão escuro. Quase que á não sabia onde é que estava a luz, onde é que estava a sombra.
   Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu-os sem ver coisa alguma. Tudo em redor dela estava preto. era só ela, pobre indefesa galinha dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pôs o mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do nada. Estava ainda sem sofrimento,porquanto a admirável clarividência dos seus instintos não podia conceber que ela estivesse viva e obrigada a viver, quando o mundo em redor se havia sumido.
  Porém, suprema crueldade, os outros sentidos estavam atentos e fortes no seu corpo. Ouviu que as outras galinhas desciam do poleiro cantando alegremente. Ela, coitada, armou um pulo no vácuo e foi cair no chão invisível, tocando-o como bico, pés, peito, o corpo todo. As outras cantavam. Espichava inutilmente o pescoço para passar além da sombra. Queria ver, queria ver! para depois cantar.
   As mãos carinhosas do dono suspenderam-na do chão.
   - A coitada está cega, Inácia! Cega!
  - É.
  Nos olhos raiados de sangue do carroceiro(ele era carroceiro) boiavam duas lágrimas as enormes.
   Religiosamente, pela manhâzinha, ele dava milho na mão para a galinha cega. As bicadas tontas, e violentas, faziam doer a palma da mão calosa. E ele sorria. Depois a conduzia ao poço onde ela beba com os pés dentro da água. A sensação direta nos pés lhe anunciava que era hora de matar a sede; curvava o pescoço rapidamente, mas nem sempre o bico atingia a água: muita vez, no furor da sede longamente guardada, toda a cabeça, mergulhava no líquido, e ela sacudia, assim molhada, no ar. Gotas inúmeras se espargiam nas mãos e no rosto do carroceiro agachado junto  ao poço. Aquela água era como uma benção para ele. Como a água benta, com um Deus misericordioso e acessível aspergisse todas as dores animais. Benção, água benta, ou coisa parecida; uma impressão de doloroso triunfo, de sofredora vitória sobre a desgraça inexplicável, injustificável, na caricia dos pingos de água, que el não enxugava e lhe secavam lentamente na pele. Impressão, alias , algo confusa, em requintes na pele. Impressão, alías, algo confusa, sem requinte psicológicos e sem literatura.
   Depois de satisfeita a sede, levava-a para o pequeno cercado de tela, separado do terreiro, que construíra especialmente par ela( as outras galinhas martirizavam muito  a Branquinha). De tardinha dava-lhe outra vez milho e água e deixava a pobre cega num poleiro solitário, dentro do cercado.
  Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. O tal crescimento já lhe  atrapalhava os passos, lhe impedia a comer e beber. Ele notou mais essa miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância córnea no serzinho desgraçado e querido.
                  ********
    Entretanto, a galinha já se sentia de novo quase feliz. Tinha delicadas lembranças da claridade desaparecida. No terreiro plano, particular, ela podia ir e vir à vontade até topar a tela de arame e já se acostumara a abrigar-se do sol debaixo do seu poleiro solitário. Ainda tinha liberdade -  o pouco de liberdade becessário à sua cegueira. E milho. Não compreendia nem procurava compreender aquilo. Tinham soprado a lâmpada e acabou-se. Quem tinha soprado não era da conta dela. Mas o que lhe doía fundamente era já não poder ver o galo de plumas bonitas. e não sentir mais o galo perturbá-la com o, seu có-có-có malicioso. O ingrato.
   De repente os acontecimentos se precipitaram.

        ******

- Entra!
 - Centra!
  A menina ria a maldade atávica no deleite do futebol originalíssimo. A galinha se abandonava sem protesto na sua treva ao léu dos chutes. Ia e vinha. Os meninos não a chutava com tanta força como a uma bola, mas gozavam a brincadeira..
   O carroceiro nem quis saber por que é que a sua ceguinha estava no meio da rua. Avançou como um possesso com o chicote que assoviou para atingir umas nádegas tenras. Zebrou carnes nos estalos da longa tira de sola. O grupo de guris se dispersou em prantos, risos, insultos pesados, revolta.
                                      ******

Quando saiu do xadrez, na manhã seguinte, levava um nó na garganta. Rubro de raiva impotente. Foi quasse que correndo para casa.
  - Onde está a galinha, Inácia?
   - Vai ver.
  Encontrou-a no terreirinho, estirada, morta! Por todos os lados havia penas arrancadas, mostrando que a pobre se debatera, lutara contra o inimigo, antes deste abrir-lhe o pescoço, onde existiam coágulos de sangue...
   Era tão trágico o aspecto do marido que os olhos da mulher se esbugalharam de pavor.
  - Não fui eu, não! Com certeza um gambá!
   - Você não viu?
  - Não acordei! Não pude acordar!
   Ele mandou a enorme mão fechada contra as rugas dela. A velha tombou nocaute, mas sem aguardar a contagem dos pontos escapuliu para a rua gritando:
   - Me acudam!

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                                ******

   Quando de novo saiu do xadrez, na manhã seguinte, tinha açambarcado todas as iras do mundo. Arquitetava vinganças tremendas contra o gambá. Todo gambá é pau-dágua. Deixaria uma gamela com cachaça no terreiro. Quando o bichinho se embriagasse, havia de matá-lo aos poucos. GOSTOSAMENTE.
   De noite preparou a esquisita armadilha e ficou esperando. Logo pelas vinte horas o sono chegou e, cansado pela insônia na prisão, ele não lhe resistiu. Mas acordou justamente na hora necessária. À porta do galinheiro, ao luar leitoso, junto à mancha redonda da gamela, tinha outra mancha escura que se movia dificilmente.
   Foi-se aproximando sorrateiro, traiçoeiro, meio agachado, examinando em olhares rápidos o terreno em volta, as possibilidades de fuga do animal, para destruí-las de pronto, se necessário. O gambá fixou-o com os olhos espertos e inocentes e começou a rir:
   - Kiss! Kiss! Kiss!
  ( Se o gambá fosse inglês, com certeza estaria pedindo beijos. Mas não era . No mínimo estava comunicando que houvera querido alguma coisa. Comer galinhas, por exemplo. Bêbedo)
    O carroceiro examinou o bichinho curiosamente. O luar, que favorece o surto de raposas e gambás nos galinheiros, era esplêndido. Mas o homem apenas tocou-o de leve com o pé, já simpatizando.
   - Vai embora, seu tratante!
   O gambá foi indo tropegamente. Passou por baixo da tela e parou olhando para a lua. O bichinho se sentia imensamente feliz e começou a cantarolar imbecilmente como qualquer criatura humana:
   - A lua como um balão balança!
  - A lua como um balão balança!
   A lua como um bal....
   E adormeceu de súbito debaixo de uma pitangueira.
   FIM

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

-Graciliano Ramos- Relógio do Hospital -Graciliano Ramos

 Resultado de imagem para imagens de relogio O médico, paciente como se falasse a uma criança, engana-me asseverando que permanecerei aqui duas semanas. Recebo a notícia com indiferença. Tenho a certeza de que viverei pouco, mas o medo da morte, que  me enchia de pavor, já não existe.  Olho o corpo magro estirado no colchão duro e parece-me que os ossos agudos, os músculos frouxos e reduzidos, não me pertencem .
    Nenhum pudor. Alguém me estendeu uma coberta sobre a nudez. Como é grande o calor, descobri-me, embora estivessem muitas pessoas na sala. E não me envergonhei quando a enfermeira me ensaboou e raspou os pelos do ventre.
  Ao deitar-me na padiola, deixei os chinelos junto da cama; ao voltar da sala de operações, não os vi.
   O médico se dirige em linguagem técnica a uma mulher nova, e ela me examina friamente, como se eu fosse um pouco de substância inerte, diz que os meus sofrimentos vão ser grandes.
  Por enquanto estou apenas atordoado. Aquela complicação, ferros tinindo, máscaras curvadas sobre a mesa, e cheiro dos desinfetantes, as minhas pernas imobilizando-se, mãos enluvadas movendo-se em gestos rápidos, um traço na pele escura de iodo, nuvens de algodão, tudo me dança na cabeça. Não julguei que a incisão tivesse sido profunda. Uma reta na superfície. Considerava-me  quase defunto, mas no começo da operação esta ideia foi substituída por lembranças da aula primária. Um aluno riscava figuras geométricas no quadro negro.
   Morto da barriga para baixo. O resto do corpo iria morrer também, no dia seguinte descansaria no mármore do necrotério, seria esquartejado, serrado..
   Fechei os olhos, tentei sacudir a cabeça presa. Uma cara me perseguia, cara que surgira pouco antes da enfermaria dos indigentes. Eu ia na padiola, os serventes tinham parado em frente a uma porta aberta- a grade alvacenta parecera, feita de tiras de esparadrapo, e, por detrás da grade, manchas amarelas, um nariz purulento, o buraco negro duma boca, buracos negros de órbitas vazias. Esse tabuleiro de xadrez não me deixava, era mais horrível que as visões ferozes do longo delírio.

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   O trabalho dos médicos iria prolongar-se, cacete, meses e meses, ou findaria vinte e quatro horas depois no necrotério? Cortado em pedaços, uma salmoura esbranquiçada cheirando a formol o atestado de óbito redigido à pressa, um cirurgião de mangas arregaçadas, lavando as mãos, extraordinariamente distante de mim.
  Agora espero os sofrimentos anunciados. Um gemido fanhoso de relógio fere-me os ouvidos e fica vibrando. Insensível, imóvel, olho as pernas compridas A dobra que entre ela se forma na coberta. Outras pancadas vagarosas tremem abafando os cochichos que fervilham na sala. Parecem-me virem juntas à primeira: a meia hora decorrida  perdeu-se completamente.
     Inércia, um vácuo enorme, o prognostico da mulher nova ameaçando-me. Sono fadiga, desejo de ficar só. Alguém se debruça na cama, encosta a orelha ao meu coração. Fura-me  o braço, uma agulha procura lentamente a veia.
     Escuridão, silêncio. Depois um instrumento de música a tocar, a sombra adelgaçando-se, telhados, árvores e igrejas esboçando-se a distância. Tenho a sensação de estar descendo e subindo, balançando-me como um brinquedo na extremidade dum cordel.
    A dormência prolongada pouco a pouco se extingue. Os dedos dos pés mexem-se, em seguida os pés, as pernas - e enrosco-me como um verme. Uma angústia me assalta, a convicção de que me aleijaram. Esta ideia é tão viva que, apesar de terem voltado os movimentos, afasto a coberta, apalpo-me para certificar-me de que não me amputaram as pernas. Estão aqui, mas ainda meio entorpecidas, e é como se não fossem minhas.
     As idas e vindas, as viagens para cima a para baixo, cansam-me demais, penso que uma delas será a última, que o cordel vai quebrar-se a deixar-me eternamente parado.
   Noite. A treva chega de repente, entra pelas janelas, vence a luz da lâmpada. uma friagem doce. A chuva açoita as vidraças. Durmo uns minutos, acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio de ruídos espaçados - rolar de automóveis, um canto de bêbedo, lamentações dos outros doentes - avultam as pancadas fanhosas do relógio. Um som arrastado, encatarrado e descontente, gorgolejo de sufocação. Nunca  houve  relógio que tocasse de semelhante maneira. Deve ser um  mecanismo estragado, velho, friorento, com rodas gastas e desdentadas. Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar os pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia. O relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e a máquina decrépita vai descansar.
   Bem. Daqui a meia hora não ouvirei as notas roucas e trêmulas. Vultos amarelos curvam-se sobre a cama, que sobe e desce, levantam-me, enrolam-me em pastas de algodão e ataduras, esforçam-se por salvar os restos deste outro maquinismo arruinado. Um líquido acre molha-me os beiços. Serventes e enfermeiros deslocam-se, com movimentos vagarosos de sonâmbulos, a luz esmorece, dá aos rostos parados feições cadaverosas.
   Impossível saber se é esta a primeira noite que passo aqui. Desejo pedir os meus chinelos. mas tenho preguiça, a voz saí-me flácida, incompreensível. E esqueci o nome dos chinelos. Apesar de saber que eles são inúteis, desgosta-me não conseguir pedi-los. Se estivessem ao pé da cama, sentir-me-ia próxima da realidade, as pessoas que me cercam não seriam espectrais e absurdas. Enfadando-me, quero que me deixem. Acontecendo isto, porém, julgar-me-ei abandonado, rebolar-me-ei com raiva, pensarei na enfermaria dos indigentes, no homem que tinha uma grade de esparadrapos na cara?
    Silêncio. Porque será que esta gente não fala e o relógio se aquietou? Uma ideia acabrunha-me. Se o relógio parou, com certeza o homem dos esparadrapos morreu. Isto é insuportável. Por que fui abrir os olhos diante da amaldiçoada porta? Um abalo na padiola, uma  parada repentina - e a figura sinistra começara a aperrear-me, a boca desgovernada, as órbitas vazias negrejando por detrás da grade alvacenta. Por que se detiveram junto àquela porta? Dois passos aquém, dois passos além - e eu estaria livre da obsessão.
    O relógio bate de novo. Tento contar as horas, mas isto é impossível. Parece que ele tenciona encher a noite com a sua gemedeira irritante.
  Dr. Nogueira, principiando a falar, não acaba; é um palavreado infinito que nos enjoa, deixa-nos embrutecido, mudos, mastigando um sorriso besta de cumplicidade.
    Felizmente o homem dos esparadrapos vive. Repito que ele vive e caio num marasmo agoniado. No silêncio as notas compridas enrolam-se como cobras, estiram-se pela casa, invadem a sala, arrastam-se devagar nos cantos, sobem à cama onde me agito apavorado. Que fim levaram as pessoas que me cercava? Agora só há bichos, formas rastejantes que se torcem com lentidão de lesmas. Arrepio-me o som penetrante no sangue, percorre-me as veias, gelado.
   As vidraças, a chuva os ruídos, sumiram-se. Há uma noite profunda, um céu pesado que chega até a beira da minha cama. As coisas pegajosas engrossam, vão enlaçar-se nos seus anéis. tento esquivar-me ao abraço medonho, revolvo-me no colchão, grito.
   Aparecem de novo as figuras atentas, lívidas. A beberagem acre umedece-me a língua seca, dura como língua de papagaio.
   - Obrigado.
   Puxo a coberta para o queixo, o frio diminui. Há um frio enorme, precipícios sem fundo - seguro-me a ramos frágeis para não cair neles.
  Ouço trovões imensos. Volto a ser criança, pergunto a mim mesmo que seres misteriosos fazem semelhante barulho. Meus irmãos pequenos iam deitar-se com medo, minhas tias ajoelhavam-se diante do oratório, a chama das velas tremia, as contas dos rosários chocavam-se como bilros de almofadas, um sussurro de preces enchia o quarto dos santos.
   Por que estão chiando aqui perto de mim? Estarão rezando? Não houve trovões. Nuvens brandas e altas correm por cima das árvores, das igrejas, do telhado da penitenciária. Olho os tipos que me rodeiam. Afastam-se, falam em voz baixa, presumo que me espiam desconfiados. Acham-me com certeza muito mal, pensam que vou morrer, procuram decifrar as palavras incoerentes que larguei no delírio. envergonho-me. terei dito segredos e inconveniências?
  Desejo atraí-los, conversar, mostrar que sou um indivíduo razoável e as maluqices do sonho findaram. Mas a linguagem foge. Procuro chamá-los com um gesto, a mão tomba-me sobre sobre o peito, uma fraqueza paralisa-me.
   Certamente estou ha dias entre a vida e a morte. Agora a febre diminuiu e os monstros que me perseguiam se desmancharam. As dores do ferimento são intoleráveis. Inclino-me para um lado e para outro, certifico-me de que não me trouxeram os chinelos, imagino que vou aguentar uma eternidade de martírios.
   Gritos agudos de crianças rasgam-me os ouvidos como pregos.
   Querem ver que a minha operação foi ontem e ficarei aqui amarrado semanas ou meses?
   Uma balada corta-me o pensamento. Estremeço: parece que ela me chegou aos nervos através da ferida aberta, entrou-me a na carne com lâmina de navalha.
   Aqueles soluços desenganados devem vir da enfermaria dos indigentes, talvez o homem dos esparadrapos esteja chorando. Com esforço consigo encostar as palmas das mãos nas orelhas. Desejo ficar assim, mas a posição é incomoda, os braços fatigam-se, o choro escorrega-me entre os dedos. Se não fosse isto, distrair-me-ia vendo as árvores, o céu, os telhados, falaria aos enfermeiros e aos serventes.Resultado de imagem para imagens de relogio
   Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança, recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose, a pernas trotas como paus de cangalhas. talvez estejam consertando uma daquelas pernas.
    Os gritos baixam, transforma-se num estertor.
   - Por que bolem com aquela criança?
   A enfermeira avizinha-se, espera que eu repita a pergunta. Aborreço-me por não me haver feito compreender, viro-me com dificuldade e minutos depois ouço os passos da mulher, que se afasta nas pontas dos pés.
   Fará somente vinte e quatro horas que me deixaram aqui derreado? Somo: vinte e quatro, quarenta  e oito, setenta e duas. Talvez uns três dias. Isto, setenta e duas horas. Os chinelos despareceram: ficarei  provavelmente um mês, dois meses. Multiplico: sessenta dias, mil quatrocentos e quarenta horas. Fatigo-me, e a conta se complica, ora apresenta um resultado, ora outro. Convenço-me afinal de que são mil quatrocentos e quarenta horas. É bom que a ferida se agrave e me mate logo. Dois meses de tortura, um tubo de borracha atravessando-me as entranhas, visões pavorosas, os queixumes dos indigentes que se acham junto ao homem dos esparadrapos. Duas mil, oitocentas e oitenta vezes o relógio caduco de peças gastas rosnará, ameaçando-me com acontecimentos funestos. Sessenta dias de imobilidade, o pensamento a emaranhar-se em cipoais obscuros.
   Os gritos da criança elevam-se , o calor aumenta, as árvores e os telhados aproximam-se.
  Lá estão novamente as horas a pingar do corredor como duma torneira, gotas pesadas escorrendo lentas.
   Gargalhadas na rua, barulho de automóvel, pregão dum vendedor ambulante. Talvez o automóvel seja do médico que me vem fazer o curativo. Não é, passou com um ronco de buzina. Agora o que há são rufos de tambor, vozes  de comando.
  O berro do vendedor ambulante caiu na sala de supetão e ficou rolando, misturando ao choro dos indigentes e ao rumor de ferros na autoclave.
   - Porcaria, tudo uma porcaria.
   Zango-me. Não me tratam, deixam-me acabar à míngua, apodrecer como um corpo morto. Um silêncio demorado. Penso na criança e no homem que se esconde por detrás da máscara de esparadrapos.
   - Como vai o menino?
  A enfermeira responde-me que vai bem, mas certamente procura iludir-me. Há um cadáver miúdo perto daqui, vão despedaçá-lo, na mesa do necrotério, os servente levarão a roupa suja para lavanderia. Um colchão pequeno dobrado na cama estreita.
  As vozes de comando, os rufos de tambor, o pregão do vendedor ambulante, o rumor dos ferros na autoclave, fazem-me falta. Convenço-me de que o silêncio é de mau agouro. Quando ele se quebrar, uma infelicidade surgirá  de repente, então poderei livrar-me dela, O suor corre-me na cara. O primeiro som que vier anunciará desgraça, esta ideia desarrazoada não me larga. Reprimo um acesso de tosse, acredito que ele é indício de hemoptises abundantes.
   Começo a perceber um toque-toque surdo, tropel de cavalo cansado. Naturalmente é o sangue batendo-me nos ouvidos. Um coração quase inútil finda tarefa maçadora.
   O cadáver pequeno vai ser transformado em peças anatômicas.
   Toque-toque. Não é o sangue, é qualquer coisa que vem de fora, provavelmente do corredor. Duas pancada próximas, uma distanciada, andadura irregular de bicho que salta em três pés. Ainda há pouco estava tudo calmo. De repente o relógio velho começou a mexer-se e a viver. Cerro os olhos, digo a mim mesmo que me fatigo à toa, bocejo, tento lembrar-me de fatos que julgo importantes e logo se torna mesquinhos.Afinal não veio a desgraça. Vou restabelecer-me em pouco dias. Vou restabelecer-me, passear nas ruas, entrar nos cafés. Se não tivessem levado os chinelos, convencer-me-ia de que não estou muito doente.
   Procuro dormir, esquecer tudo, mas o relógio continua a martelar-me a cabeça dolorida. Espero em vão o fonfonar dum automóvel, a cantiga dum bêbedo, as vozes de comando, o rumor dos ferros na autoclave. Tenho a impressão de que a pêndula caduca oscila dentro de mim, ronceira e e desaprumada.
   Os infelizes calaram-se, todos os sofrimentos esmoreceram, fundiram-se naquela voz áspera e metálica.
   Os meus braços descarnados movem-se como braços de velho. Passo os dedos no rosto, sinto a dureza dos pelos, as faces cavadas, rugas. Se tivesse um espelho, veria esta fraqueza e esta devastação.
   Velhinho, trocando as pernas bambas nas calçadas. Olho as pernas finas como cambitos. A vista escureceu. Velhinho, arrimado a um cacete, balbuciando, tropeçando. Toque-toque - o cajado a bater nos paralelepípedos.
   O pensamento escorrega dum objeto para outro. A barba crescida deve ter ficado branca, o pescoço engelhou como um pescoço de galinha.
   A mulher desapertava a roupa, despia-se cantando, e eu me conservava distante, encabulado, tentando desamarrar o cordão do sapato, que tinha dado um nó. Não podia descalçar-me e olhava estupidamente um despertador que trabalha muito depressa. Os ponteiros avançavam, e o laço do sapato não queria desatar-se.
   O professor explicava a lição comprida numa via dura de matraca, falava como se mastigasse pedras.
  O político influente entregava-me a carta de recomendação. Eu gaguejava um agradecimento difícil, atrapalhava-me por causa da dactilógrafa bonita, descia a escada perseguindo pelos óculos dum secretário e pelo tique-taque da máquina de escrever.
  Tudo se confunde. A rapariga que se despia, o professor, o político, misturam-se. A criança doente, os enfermeiros, os médicos, o homem dos esparadrapos, não se distinguem das árvores, dos telhados, do céu, das igrejas.
   Vou diluir-me, deixar as cobertas, subir na poeira luminosa dos réstias, perdr-me nos gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas, nas pancada medonhas do relógio velho.

Fim








estertor
/ô/
substantivo masculino
MEDICINA
  1. 1.
    respiração ruidosa dos moribundos; agonia.
  2. 2.
    inspiração ruidosa como a que é percebida no coma ou no sono profundo.


DERREADO
adjetivo Que não se pode endireitar por fadiga, efeito de pancadas ou peso demasiado. Pop Descadeirado. Etimologia (origem da palavra derreado). Particípio de derrear.




Renda de bilros

Descrição

A renda de bilros é produzida pelo cruzamento sucessivo ou entremeado de fios têxteis, executado sobre o pique e com a ajuda de alfinetes e dos bilros. O pique é um cartão, normalmente pintado da cor açafrão para facilitar a visão por parte da rendilheira, onde se decalcou um desenho, feito por especialistas. Wikipédia

Significado de fonfonar. O que é fonfonar: 1. Buzinar2. Resmungar3. Fazer barulhos estranhos com a boca.

Significado de engelhou. O que é engelhou: Do verbo engelhar.1. Encarquilhar, enrugar.2. Fazer gelha (prega ou dobra casual num tecido).3. Murchar ou ..