quarta-feira, 7 de novembro de 2018

PEDRO BARQUEIRO - Conto - AFONSO ARINOS

"Eu lhe conto" - dizia-me o Flor, quase ao chegar à Cruz de Pedra. " Naquele tempo eu era franzinozinho, maneiro de corpo ligeiro de  braços e pernas. Meu patrão era avalentoado, temido e tinha sempre em casa uns vinte capangas, rapaziada de ponta de dedo. Eu tinha uma meia-légua, trochada de aço, que era meu osso da correia". E, consertando o corpo no lombilho, soltou as rédeas à mula ruana, que era boa estradeira. Inclinou-se para o lado, debruçando-se sobre a coxa, e apertou na unha polegar o fogo do cigarro, puxando uma baforada de fumo.
  "Estávamos, um dia, divertindo-nos com os ponteados do Adão, à viola. Eu estava recostado sobre os pelegos do lombilho, estendidos no chão.  A rapaziada toda em roda. Pouco tínhamos que fazer e passava-se o tempo assim.
  "Eis senão quando entra o patrão, com aquele modos decididos, e, voltando-se para um moço que o acompanhava disse: "Para o Pedro Barqueiro bastam estes meninos! " apontando-me e ao Pascoal com o indicador; não preciso bulir nos meus peitos largos. "O Flor e o Pascoal dão-me contado crioulo aqui, amarrado a sedenho".
  "Para que mentir, patrãozinho? o coração me pulou cá dentro, e eu disse comigo - estou na unha! O pascoal me olhou com o rabo dos olhos. Parece que o patrão nos queria experimentar. Éramos os mais novos dos camaradas, e nunca tínhamos servido senão no campo juntando a tropa espalhada, pegando algum burro sumido. Eu tinha ouvido falar sempre no Pedro Barqueiro, que um dia aparecera na cidade sem se saber quem eram nem donde vinha. Cheguei uma vez a conhecê-lo e falamo-nos. Que boa peça patrãozinho! Crioulo, alto, troncudo, pouco falante e desempenado. Cada tronco de braço que nem um pedaço de aroeira.
  "Estou com ele diante dos olhos, com aquela roupa azuleja, tingida no Barro Preto; atravessando à cinta um ferro comprido, afiado, aluminado sempre, maior que um facão e menorzinho do que uma espada. Esse negro metia medo de se ver, mas era bonito. Olhava a gente assim com ar de soberbo, de cima para baixo. Parecia ter certeza de que, em chegando a encostar a mão num cabra, o caba era defunto. Ninguém bolia com ele, mas ele não mexia com os outros. Vivia seu quieto, em seu canto. Um dia, pegaram a dizer que ele era negro fugido, escravo de um homem lá lá das bandas do Carinhanha. Chegou aos ouvidos do patrão esse boato. Para que chegou, meu Deus. O patrão não gostava de ver negro, nem mulato de proa. Queria que lhe tirasse o chapéu e lhe tomassem a benção.
   "Daí, ainda contavam muita valentia do Barqueiro, nome que lhe puseram por ter vindo dos lados do rio São Francisco. Essas histórias esquentavam mais o patrão, que eu estava vendo de uma hora para outra estripado  no meio da rua, porque era homem de chegar quando lhe fizessem alguma.
  "Tanto eu como Pascoal tínhamos medo de que o patrão topasse Pedro Barqueiro nas ruas da cidade.
   "Subiram de ponto esse nosso receio e a ira do patrão, quando soube de uma passagem do Pedro, num batuque, em casa de Maria Nova, na rua da Abadia
 "Chegara uma precatória da Pedra-dos-Anjicos e o juiz mandou prender a Pedro. Deram cerco à casa onde ele estava na noite do batuque. Ah! meu patrãozinho! o crioulo mostrou aí que canela de onça não é assobio. Não é dizer que estivesse muito armado, nem por isso só tinha o tal ferro aluminando sempre; e com esse ferro  deu pancas. Quando cercaram a casinha e lhe deram voz de prisão, o negro fechou a cara e ficou feito um jacaré de papo amarelo. Deu frente à porta da rua e encostou-se a uma parede. Maria Nova estava perto e me disse que ele cochichou uma oração, apertando nos dedos um bentinho, que branquejava na pele negra de sua peitaria lustrosa. 
   "Chegaram a entrar a casa três homens da escolta e todos três ficaram estendidos. Pedro tinha oração, e muito boa oração contra armas de fogo, porque José Pequeno, o caboclinho atarracado, ao entrar, escancarou no negro o pinguelo de um clavinote e fez fogo. Pedro Barqueiro caminhou sobre ele na fumaça da pólvora e, quando clareou a sala, José Pequeno estava escornado no chão como um boi sangrando.
   "Dois rapazinhos quiseram chegar ainda assim, mas Pedro Barqueiro descadeirou um e pôs as tripas de fora a outro, que escaparam, é verdade, mas ficaram lá no chão gemendo por muito tempo.
   "Daí para cá, Pedro evitava andar pela cidade, onde só aparecia de longe em longe, e à noite. Mas  todo o mundo, tinha medo dele e vivia adulando-o.
   "Um dia, como já lhe contei, apareceu lá em casa um moço pedindo auxílio a meu patrão para agarrar o negro. Era mesmo escravo, O Barqueiro; mas há muitos anos vivia fugido. Já lhe disse que o patrão queria tirar o topete ao valentão,e, para isso, escolheu pobre de mim e Páscoal.
    - Que dizes, Flor? falou o patrão rindo-se.
  - Uai, meu branco, vossemecê mandando, o negro vem mesmo, e no sedenho.
   - Quero ver isso.
 - Vamos embora, Pascoal!
   "Quando íamos a sair, o patrão bateu-me no ombro e,voltando-se para o moço, disse muito firme: " Pode prevenir e escolta para vir buscar o Barqueiro aqui, de tarde. Hão de dar duzentos mil-réis a estes meninos".
   "Desci ao quarto dos arreios, passei a mão na  meia-légua e no facão e apertei a correia à cinta.
   " Pascoal já estava na port da rua, assobiando. Tinha por costume, nos momentos de aperto, assobiar sempre uma trova, que diz assim:

   "Na mata de Josué
     Ouvi o mutum gemê;
     Ele geme assim:
     Ai-rê-uê, hum! airê"

"Quando Pascoal me viu, soltou uma risada.
 -Estás doido, rapaz! gritou-me.
 - Por quê?
- Queres mesmo enfrentar com o Pedro Barqueiro? Ele faz de nós paçoca. A coisa se há de fazer de outro modo.
 "Pascoal tinha tento e eu sempre tive fé nele. Era um cabritozinho mirrado. Saía-lhe cada ideia...Mandou-me guardar a meia-légua e o facão. Depois foi à venda, escolheu anzóis de pesca e veio para casa encastoá-los. Eu, nem bico! Ajudei a acabar o serviço certo de que Pascoal tinha alguma na mente.
  - Deixa a coisa comigo, ajuntava ele.
  "Isso ainda era cedo; o sol estava umas três braças de fora, no tempo dos dias grandes. Lá por casa madrugávamos sempre para ir ao pasto e trazer os animais de trato.
  - Vamos fazer uma pescaria, disse-me o Pascoal. - Ali para os lados do Batista, perto de um baruzeiro grande, há um poço, onde as curumutãs e os piaus são como formigas. O rancho do Pedro Barqueiro fica perto. Ele mora só e eu conheço bem o lugar. Pela astúcia havemos de prendê-lo. Quando eu gritar: " Segura, Flor!" - tua agarras o negro, mas segura rente!
   " E fomos. Nessa hora me veio bastante vontade de fugir ao perigo, de ir passear, porque tinha como certo suceder-nos alguma. "Que é lá, Flor!" - disse de mim para mim. "Um homem é para outro. " E, depois o Pascoal não me deixava nas embiras. Quando descemos meio sorumbático. Nesse tempo, eu andava arrastando a asa à Emília, filha do José Carapina. Era uma roxa bonita deveras e não estava muito longe de me querer. Posso dizer mesmo que na véspera olhou muito para mim, ao passar com a saia de chita sarapintada de vermelho, umas chinelas nova e de cordovão amarelo. Ah! que peitinho de jaó, patrãozinho! empinado, redondo, macio como um couro de lontra. Com o devido respeito, patrãozinho, eu estava na peia, enrabichado e foi nesse mesmo dia que ela me deu esta cinta de lã, tecida por sua mãos, que guardo até hoje.
  "Aí! roxa da minha paixão" - pensava eu - " como hei de morrer assim, fazendo cruz na boca?" - O diabo da ideia me atarantou pelo caminho e cheguei a dar tremenda topada numa pedra, no meio da estrada. Curvei-me sobre a perna, agarrei o pé  com as mãos estive dançando, sem querer, um pedacinho de tempo. Depois, levantei a cabeça. Pascoal sentara num barranco e encarava para mim, rindo. levantei a cabeça e olhei pra cima, assuntando. No céu galopavam umas nuvens escuras. Um vento áspero passava, arrancando do jenipapeiro as frutas maduras, que esborrachavam no chão assim - prof! - espantando os juritis que andavam esgaravatando a terra e comendo grãozinhos. Duas seriemas guinchavam, esgoelavam. depois, vi que estavam brigando - me lembra como se fosse hoje - e uma avançava para outra dando pulinhos, sacudindo as asas, com o cocuruto arrepiado e os olhos em fogo. O coração pareceu dizer-me outra vez - " olha, Flor, o que vais fazer". Nesse entretanto, o Pascoal, que me encarava sempre do ponto onde estava sentado, gritou-me:
   - Esqueceste a cabeça nalgum lugar? Vamos embora, que vai tardando já.
   "Fiquei descochado; cai em mim e fui marchando disposto. Daí em diante, fui brincando com o Pascoal, que era muito divertido e tinha sempre um caso a contar. Chegando embaixo, arrregaçamos as calças e descemos o córrego, cada um com seu anzol na vara, ao ombro.
   " Era preciso que ninguém desconfiasse do nosso concluio para prendermos o Pedro Barqueiro.
 "Aí, quase que tínhamos esquecido o perigoso mandado, tão diferente andava a conversa com as caçoadas do Pascoal.
   "Para encurtar a história, patrãozinho, achamos Pedro Barqueiro no rancho que só tinha três divisões: a sala, o quarto dele e a cozinha.
   "Quando chegamos, Pedro estava no terceiro debulhando milho, que havia colhido em sua rocinha ali perto.
   - "Vocês por aqui meninos? Olhem! vão ali àquele poço, para baixo da cocheira. Tem lá uma laje grande e de cima dela voçês podem fazer bichas com os piaus.
  - "Louvado seja Cristo, meu tio!' havia dito o Pascoal, e nisto o imitei.
   - "Se quiserem comer uma carne assada ao espeto, tirem um naco; está na fumaça, por cima do fogão, uma boa manta. Olhem a faca aí na sala, se vocês não tem algum caxerenguengue.
  Pascoal entrou, e viu recostado a um canto da parede  o ferro aluminando. Pegou nele, saiu pela porta da cozinha e escondeu-o numa restinga, ao fundo. Depois, me assobiou, eu acudi e fui procurar a lazarina de Pedro - boa arma, de um só cano, é verdade, mas comedeira.
   - Há alguma jaó por aqui, tio Pedro? perguntou Pascoal.
  - Nem uma, nem duas, um lote delas. Se você quer experimentar minha arma, vá lá dentro e tire-a. Não errando a pontaria, você traz agora mesmo uma jaó.
  - Quero matar um passarinho para fazer isca, meu tio
  - Pois vá, menino
  "E Pascoal descarregou a arma.
  "Pedro tinha-se levantado e falava com Pascoal do vão da porta da entrada.
"Era hora.
   "Pascoal me fez um sinalzinho, eu dei volta e entrei pela porta do fundo para agarrar o Barqueiro pelas costas. A combinação era essa. Enquanto Pascoal o foi entretendo, eu fui chegando soturno, quando ele gritou -"segura!" - eu pulei como uma onça sobre o negro desprevenido.
   " Conheci o que era homem, patrãozinho! saltando-lhe nas costas, dei-lhe um abraço de tamanduá no pescoço. Mas o negro não pateou, e, mergulhando comigo para dentro da sala, gritou:
    - " Nem dez de vocês, meninos! Ah! se eu soubesse..."
   "Patrãozinho, eu sei dizer que o negro me sacudia para cima como um touro bravo sacode uma garrocha. Mas eu via que, se o largasse, estava morto, e arrochei os braços.
   - "Chega, Pascoal", gritei.
  - "Eu quero manobrar de fora. Ânimo! Segura bem que nós amarramos o negro.
  "Que tirada de tempo! O negro, às vezes, abaixava a cabeça, dando de popa, e minhas pernas dançavam no ar, tocando quase o teto de rancho. Lutamos, lutamos até que Pascoal pode meter um tolete de pau entre as canelas de Pedro, de modo que ele cambaleou, e caiu de bruços. Nós dois pulamos em riba dele. Eu, triunfante gritava: "Conheceu , crioulo? Negro é homem?" Ele era teimoso, porque dizia ainda: " Nem dez de vocês, meninos! Ah! se eu soubesse..." Pascoal trazia à bandoleira um embornal para carregar peixe e veio dentro dele escondida uma corda de sedenho, comprida e forte. O Barqueiro estava no chão; e foi preciso ainda fazermos bonito para agarrá-lo.
  - Agora, puxe na frente, seu negro! - gritou-lhe o Pascoal.
   "Havíamos juntado os braços dele nas costas e apertamos com vontade. Ficou completamente tolhido.
   " Eu ia segurando a ponta de sedenho e levava o negro na frente. Mesmo assim, houve uma hora em que ele me deu um tombo, arrancando de repente a correr. Por seguro, a corda estava-me enrolada na mão e eu não a leguei. Nesse instante Pascoal tinha corrido atrás dele e lhe descarregando na nuca um tremendo murro, que o fez bambear um pouco e me deu tempo de endurecer o corpo e segurar firme a corda.
   " O Barqueiro, depois que saiu do rancho, não piou.
   "Chegamos à casa de tarde e o negro ia no sedenho.
   - " Eu não disse", gritava o patrão muito contente, " que só bastavam a esses dois meninos para o Barqueiro? Está aí o negro".
   "E o povo corria para ver  e a frente da casa do patrão estava estivada de gente.
  "Recebemos os duzentos mil-réis.
  - Tinha-me esquecido de contar-lhe que eu fizera uma promessa à Senhora da Abadia, de levar-lhe ao altar uma vela, se voltasse são e salvo. Cumpri a promessa no dia seguinte e arranjei uma festinha para a noite. queria um pé para estar com a Emília.
  "Comprei um trancelim de ouro para aquela roxa de meus pecados e um xale azul. Ela era esquiva. Fez u muito momo nessa noite, e não quis dar nem uma boquinha, com o devido respeito ao patrãozinho.
   "Saí da casa de José Mendes, onde deu a festa, quando os galos estavam amiudando.
   "A estrela-d'alva, no céu escuro, parecia uma graça lavando-se na lagoa. O orvalho das vassoura me molhou as pernas e eu estremeci um bocadinho. Entrei num beco beco que ia sair na rua deTrás, onde eu então morava.
   "Ia meio avexado e peguei a banzar. Emília! Emília do coração! por que me amofinas com esse pouco caso? E desandei a cantar, bem chorada, esta cantiga:
    
Ta  trepado no pau
De calça pra baixo,
com asas caídas
Gavião de penacho!

Todo o mundo tem seu bem,
Só obre de mim não tem!
Ai! gavião de penacho!

"De repente, pulou um vulto diante de mim. Quem havia de ser, patrãozinho? Era o Pedro Barqueiro em carne e osso. Tinha não sei como, desamarrado as cordas e escapado da escolta, em cujas mãos o patrão o havia entregado.
   "O ladrão do negro tinha oração até contra sedenho!
  "Sem me dar tempo de nada, o Barqueiro me agarrou pela gola e sujigou. levantou-me no ar três vezes, de braço teso, e gritou-me:
   - "Pede perdão, cabrito, desvergonhado, do que fizeste ontem, que te vou mandar para o inferno! Pede perdão, já!
   "A gente precisa de ter um bocado de sangue nas veias, patrãozinho, e um homem é um homem! Eu não lhe disse pau e nem pedra. Vi que morria, criei ânimo e disse comigo que o negro não me havia de por o pé no pescoço.
   " Exigiu-me ele, ainda muitas vezes, que lhe pedisse perdão, mas eu não respondi. Então, ele foi-me levando nos braços até uma pontezinha que atravessava uma perambeira medonha. A boca do buraco estava escura como breu e parecia uma boca de sucuriú querendo engolir-me. Suspendeu-me arriba do guarda-mão da ponte e balançou meu corpo no ar. Nessa hora, subiu-me um frio pelos pés e um como  formigueiro me passeou pela regueira das costas a té a nuca; mas minha boca ficou fechada. Então o Barqueiro, levantando-me de novo, me pousou no chão, onde eu bati firme.
  " O dia estava querendo clarear. O negro olhou para mim muito tempo, depois disse:
  - "Vai-te embora, cabritinho, tu é o único homem que tenho encontrado nesta vida!
  " Eu olhei para ele, pasmado.
   "Aquele pedaço de crioulo cresceu-me diante dos olhos e vi- não sei se era o dia que vinha raiando - mas eu uma luz estúrdia na cabeça de Pedro.
   "Desempenado, robusto, grande, de braço estendido, me pareceu, mal comparando o Arcanjo São Miguel, sujigando o Maligno. Até claro ele ficou essa hora! Tirei o chapéu e fui andando de costas olhando sempre para ele.
   "Veio-me uma coisa na garganta e penso que me ia faltando o ar.
  "Insensivelmente, estendi a mão. As lágrima me saltaram dos olhos, e foi chorando que eu disse:
  - "louvado seja Cristo, tio Pedro!
   " Quando caí em mim, ele tinha desparecido'.   FIM ( pelo sertão)




  

Um comentário:

  1. 60 anos atrás li esse conto na segunda série do ginásio.
    Bela recordação.

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