sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O Santo - Conto - Afonso Schmidt

 O noturno da capital só passa às 2 horas da madrugada, de modo que, se o senhor quiser descansar um pouco poderá entrar aqui para o depósito das encomendas e deitar-se no estrado, sobre os sacos de milho. Não tenha receio, que a mercadoria é da colheita deste ano e ainda não tem carunchos.
   Como o senhor está vendo, a estação é pobre e sem movimento; foi construída pela Companhia para servir ao desvio e à meia dúzia de casebres perdidos nessa colina. Aqui não há mais nada. são apenas 9 horas da noite e já desapareceram todas as luzes, a não ser as lanternas verdes e vermelhas no alto dos sinaleiros. De um lado e de outro, os trilhos se perdem no escuro e, nos charcos, por debaixo do pontilhão, só se escuta o sonolento coaxar das rãs.
  Mas não se sente no banco da plataforma porque o vento está friozinho e durante as cinco horas que terá de esperar o SP-16 apanhará certamente um defluxo... Não se espante...Essa longa e dolorosa lamentação que lhe está fazendo mal aos nervos é do gado, no desvio, a meio quilômetro da distância. A gente aqui já se habituou tanto a ela que nem escuta; mas no começo...   
  Nos primeiros tempos da minha remoção para este purgatório eu também senti a mesma coisa. A primeira noite foi danada! Dizem que esta localidade não progride por cauda dos gemidos dos bois engaiolados. E daí este cheiro de estrume, de amoníaco...não sente? Quando faz calor, parece que até as motucas fogem daqui. Vejo que o senhor aceitou o meu conselho e vai acomodar-se o melhor possível. Pite este cigarro de palha grossa enquanto eu acendo o meu velho cachimbo. Tem fogo? Esqueci a binga na mesa do telégrafo. Obrigado.
  Nesta estaçãozinha só aparece um passageiro de semana em semana de modo que, quando temos um homem como o senhor, a gente aproveita para conversar um pouco e sentir que ainda é um cristão como os demais. Olhe, agora, que estamos sentados um defronte do outro, neste canto agasalhado e aquecido pelo cereal, à luz mortiça do candeeiro de querosene, vou contar-lhe a história do santo. É para matar o tempo.
   Sim, senhor, do santo. Passou-se aqui mesmo, há por aí uns dois anos mais ou menos. Vejo que o senhor se interessa pelo caso. Pois então escute. Uma vez surgiu por aqui, vindo não seu de onde, um homenzarrão ruivo e de braços tão compridos que batiam pelos joelhos. Devia ter estado muito tempo na prisão, ou perdido no mato, porque parecia esquecido da linguagem dos homens. O andante chamou logo a atenção dos boiadeiros e da gente que estava à sua passagem. Nós o vimos sumir do lado do desvio e, no dia seguinte admirados do que nos contaram os trabalhadores da manobra. O senhor não conhece o desvio? Pois precisa conhece-lo.
   Para nós aquilo já tem significado: é coisa de todo dia. A  sua vizinhança endurece o coração. As crianças aqui, já se criam de maus instintos, por causa do desvio. Imagine o senhor que os bois destinados à capital e outras cidades mais distantes vem do Triângulo, em vagões estreitos a que chamamos gaiolas. As reses viajam atravessadas e unidas, de modo que muitas delas, as mais corpulentas se conservam em arco durante dias e dias....Acontece que a viagem é muito longa e interrompida a cada passo. Aqui é um dos pontos de pernoite.
 O trem do gado chega ao escurecer e é manobrado  para o desvio, até o dia seguinte, em que prossegue viagem, às 6:25. Quando o gado aqui chega, já se encontra engaiolado há vários dias e assim, ficara outros tantos. Ao cabo desse tempo, em consequência dos choques, das marchas e contra-marchas, ou mesmo por causa de fraqueza, cansaço ou doença, os bois já tombaram no carro,  ferindo-se uns aos outros.
  Muitos ficam de chifres partidos e olhos vazados; há também os que descalçam as unhas e se firmam no chão com a ponta de um osso sangrando. E os de pernas esmigalhadas...Não se admire. Antes procure completar o quadro, lembrando que durante o percurso não se dá água nem comida ao gado e que, nos dias de calor, atmosfera de dentro da gaiolas poderia cozer um pão-de-ló. Não há, pois, exemplo de tamanho suplício....
   O homem ruivo, passando pelo desvio e compreendendo a queixa que vai nos mugidos lancinantes dos bois, não teve coragem de abandoná-los e ali ficou entregue à obra de caridade de minorar os seus sofrimentos. Quando chegava o trem boiadeiro e a composição era manobrada para o desvio, ele, munido de um velho balde, punha-se a conduzir a água do riacho, e dar de beber aos animais. Ia de um a um dizendo coisas que os bichos pareciam entender. Em seguida, fazia distribuição do capim cortado durante o dia, de modo que horas depois cessava o mugido das reses e o desconhecido ia dormir ao pé de uma fogueira de gravetos que, ventasse ou chovesse, nunca se extinguia.
   Vivia não sei como. É verdade que os maquinistas dava-lhe o resto das marmitas e as crianças da escola atiravam-lhe da passagem as merendas. Ficou-se habituado àquele homem. Em uma espécie de santo protetor dos bois. Mas no ano atrasado, se não me falha a memória, ao abrir a estação de caça, desembarcou aqui uma turma de alegres caçadores da cidade. Armaram barracas nas proximidades do desvio. Falava-se até que apareceram mulheres. O ruivo foi o bode expiatório. Sua maluquice - que por maluquice tomara o seu devotamento pelos animais - deu motivo a uma engraçada farsa...
   Um dos caçadores disse:
   - "Se você fizer tudo quanto eu mandar, porei um criado para tratar de cada boi! Olhe que eu sou o dono do trem".
   O ruivo topou a parada. Ele era simples, simples que nem uma criança de peito. Então, foi uma noite divertida, uma farra que alarmou os caboclos da redondeza.
   Gritavam-lhe:
  - "Ruivo, ande com um pé só!"
   O gigante se punha a saltar como um bugio.
  - "O ruivo, atire-se no riacho!"
   Ele mergulhava no lodo.
   -" Ruivo, beba, sem pestanejar, este copo de pinga!"
  E ele emborcava até rolar sem sentidos pelo chão.
  No dia seguinte, a tropa fandanga de uns tiros pela mata e regressou à cidade, levando na cinta muitos  pássaros, os mais deliciosos cantores destes vales. Ao embarcarem, eram admirados pelos outros passageiros e recebiam felicitações.
   Depois da sua partida, o Ruivo sentou-se numa pedra, ao pé da fogueira e começou a esperar seriamente o que lhe haviam prometido. Esperou assim muito tempo. Um dia acharam-no morto. A turma da conserva fez um buraco a algumas braçadas do desvio e enterrou-o.
    Agora estão dizendo por aí que ele era santo. Sabe por quê? Venha até aqui, na porta, e olhe lá longe, no fundo da noite. O senhor está vendo aquela luzinha perdida? É a fogueira do Ruivo. Ele, como lhe disse, desapareceu há muito tempo, mas a luz que  deixou sobre a terra ainda não se extinguiu. Já se contam milagres. Bobagem de caboclos...  FIM
         ( O tesouro de Cananéia)

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