quinta-feira, 2 de novembro de 2017

CONTOS DE ANDERSEN - UMA HISTÓRIA

  Todas as macieiras estavam em flor. Tinham-se apressado em produzir flores antes que viessem as folhas verdes. No pátio passeavam os patinhos, e o gato tomava um banho de sol, lambendo os raios que lhe brincavam sobre as patas. E lá nos campos se erguia, magnífico, o trigal, ostentando um verde esplêndido, incomparável. Por toda a parte pipilavam e trinavam passarinhos, como se fosse dia de grande festa; e realmente era dia de festa; era domingo: repicavam os sinos, e todos iam para a igreja, com os seus melhores trajes todos de rosto alegre.
   Era um dia tão cheio de calor e de benção, que bem podiam todos dizer:
   - Deus é extremamente bondoso para conosco!
    Mas lá dentro, na igreja, o pastor estava no púlpito; e falava, com voz forte e irada. Dizia que todos os homens são ímpios, que Deus os castigaria por isso, e que todos os maus, depois de mortos, iriam ter ao fogo eterno do inferno. Levantava a voz contra eles, e vaticinava:"jamais morreria o verme que havia de roê-los, nem se apagaria o fogo que lhes era destinado, de sorte que jamais encontrariam repouso nem tranquilidade".
   Era horrível ouvir assim aquelas palavras, proferidas com tamanha convicção. E ele descrevia o inferno como uma antro pestífero, onde se reúnem os rios de fezes do mundo inteiro. A atmosfera que ali pairava era o bafo abrasador da chama do enxofre. Não havia ali chão, nem fundo, Os maus mergulhariam no abismo cada vez mais profundo, num eterno silêncio.
   Era na verdade terrível, sim, ouvir falar daquelas coisas que o pastor dizia do imo do coração. Toda a gente na igreja ficou apavoradas.
   E enquanto isso, lá fora, os passarinhos cantava, alegremente e o sol brilhava, ardente e belo. Era como se todas as flores dissessem:
   - Oh! Senhor Deus! Como és bom para conosco!...
   Sim! lá fora, nada era como pregava o pastor.
   Naquela noite, antes de se recolher, o pastor viu a esposa sentada, a cismar, absorta em meditação. E perguntou-lhe:
   - Que tens?
   - Que tenho? É que não me sinto capaz de concentrar as ideias. Não posso compreender o que disseste hoje na igreja, " que havia tanta gente ímpia e que todo os ímpios hão de arder no fogo do inferno". Eternamente! Ai de mim! Quanto tempo! Não sou senão uma criatura humana, uma pecadora diante de Deus, mas eu não seria capaz de deixar arder eternamente o pior dos pecadores. Como então, poderia fazê-lo. Deus, cuja bondade é infinita, e que sabe como a maldade nos vem de dentro e de fora? Não! Não posso imaginá-lo, por mais que tu afirmes!

   Era outono. As árvores iam perdendo as folhas. O pastor estava sentado à beira do leito de uma moribunda: uma alma piedosa e leal estava a ponto de cerrar os olhos - a esposa do pastor.
  - Se há alguém que possa encontrar repouso no túmulo e graça diante de Deus, és tu essa pessoa- disse o pastor, juntando-lhe as mãos, antes de ler um salmo ao pé da morta.
   Enterraram-na.
   Duas grandes lágrimas rolam pelas faces do homem de luto. A casa está silenciosa e deserta, agora que se extinguiu, que desapareceu o sol do lar.
  Era noite. O pastor sentiu um vento frio que lhe passou sobre a cabeça. abriu os olhos e pareceu-lhe que a luz da lua caía dentro do quarto; mas enganara-se, não era a luz. Havia um vulto em frente da cama- o fantasma da mulher morta, que o olhava com carinho e pesar. Parecia que tinha alguma coisa a dizer-lhe.
   O pastor soergueu-se no leito, estendendo os braços em direção à esposa:
   - Será possível que nem a ti fosse dado o repouso eterno? Tu, a melhor de todas, a mais piedosa, estarás padecendo também?
   A defunta acenou com a cabeça, para dizer que sim, e pôs a mão no peito.
  - E eu poderei obter para ti o descanso eterno?
   - Sim.
   - E de que maneira?
   - Dá-me um fio de cabelo, um único fio de cabelo da cabeça de um pecador; de um pecador que há de ser entregue por Deus ao eterno tormento do inferno!
   - Mas é a coisa mais fácil, redimir-te assim - a ti que és tão pura, tão piedosa!
   - Então segue-me - disse a morta. - Isso nos será permitido. Adejarás a meu lado e iremos onde quer que te levem teus pensamentos. Invisíveis para os mortais, penetraremos nos seus aposentos mais secretos. Mas com mão certeira deves encontrar aquele que está destinado ao eterno tormento: e isso será antes que cante o galo!
   Então, transpondo o espaço tão céleres com o pensamento, chegaram à grande cidade. Nos muros e nas paredes das casas luziam em letras chamejantes os nomes dos pecados mortais: soberba, avareza, intemperança, luxúria - finalmente, todas as cores do arco-íris do pecado.
  - É então exatamente como eu pensava - disse o pastor.
     Achava-se diante de uma porta deslumbrante de iluminação. As amplas escadarias ostentavam tapetes e flores, e nos salões festivos ressoavam as músicas de dança. Coberto de sedas e veludo, estava postado à entrada o porteiro, empunhando o grande bastão de castão de prata. E, olhando desdenhosamente para a multidão de espectadores que se acumulara na rua, dizia:
  - O nosso baile pode competir com o do rei!
  E, de seus gestos e expressão, bem se podia inferir o que pensava:
   - A ralé, que vem para aqui olhar!... Vocês são todos gentalha, comparados comigo!
   A soberba - disse a morta. - Está vendo?
    - Aquele coitado? Ora, ele não passa de um pobre toleirão; e não ficará eternamente no fogo dos tormentos.
  - É apenas um tolo! - ressoou pelas salas da casa da soberba.
  E todos que lá estavam eram semelhantes àquele.
  Voaram então até as quatro paredes desnudas que abrigavam o avarento. Macilento como um esqueleto, esfaimado, tiritando de frio, o velho agarrava-se ao dinheiro, sem pensar em mais nada. Viram-no levantar-se de um salto do leito miserável e retirar da parede uma pedra solta. Ali, dentro de uma velha meia, estavam escondidas algumas moedas de ouro. Viram-no apalpar temerosamente o casaco esfarrapado, em cuja bainha ocultara alguns ducados; e os dedos úmidos tremiam.
  - Esse homem é um doente. Isso é loucura; uma loucura despida de alegria, que vive acossada pelo medo e pelos maus sonhos.
   Afastaram-se rapidamente e dirigiram-se para os catres dos criminosos. Dormiam ali em longas filas, os infelizes, ao lado uns dos outros. Um deles levantou-se sobressaltado, lançando uma imprecação abominável. Parecia uma fera. deu violento empurrão no companheiro que se voltou, sonolento, e disse-lhe:
   - Cala a boca, animal! Vai dormir! todas as noites é isso, essa estupidez...
  - Todas as noites...- repetiu o outro. - Sim, todas as noites ele vem me atormentar. Eu fiz isto, e mais aquilo...Sim! Nasci com má índole, e foi isso o que me trouxe aqui pela segunda vez. Mas se pequei, estou agora sofrendo o castigo. E contudo, há uma coisa que não confessei: quando fui solto, há pouco, passava pela quinta do meu antigo patrão e senti não seu o que ferver dentro de mim porque me vieram muitas coisas à memória. Esfreguei um fósforo, muito de leve, no muro; provavelmente ficava perto da cobertura de palha...Pegou fogo e queimou tudo. E que o calor apoderou-se dos coisas, como se apodera as vezes de mim. Eu mesmo ajudei a salvar animais e coisas. Não pereceu nenhum ente vivo, a não ser a um bando de pombas que voou para dentro das chamas, e cão de guarda, do qual não me lembrei. Ouviram-se uivos, saídos do meio do incêndio, e...ainda os ouço, quando quero dormir! Assim que adormeço vem o  cachorro, grande e rude; deita-se em cima de mim e uiva, e me aperta, e me tortura...Afinal...mas escuta o que estou te contando! Só o que sabes é dormir: roncas a noite inteira, e eu mal consigo dormir um quarto de hora!
    Os olhos do colérico prisioneiro injetaram-se de sangue, e ele se atirou sobre o companheiro de novo! - gritaram os outros presos.
  E seguraram-no, dobrando-lhe o corpo de tal maneira que a cabeça foi ficar entre os joelhos. Amarraram-no então firmemente. e aparecia que lhe ia saltar sangue dos olhos e dos poros.
    - Vocês estão matando o infeliz! - gritou o pastor.
    Mas quando estendia a mão para proteger  aquele que já sofria demais pelos seus pecados, mudou a cena.
   E voaram através de salas suntuosas e de quartos humildes. A luxúria, a inveja, todos os pecados mortais desfilaram diante deles. Um dos anjos do dia do julgamento lia-lhes a acusação e a defesa que não era brilhante, umas fôra feita perante Deus; perante Deus, que lê nos corações, que tudo sabe e a todos conhece: tanto o mal que vem de dentro como o que vem de fora. Perante Deus, que é a própria graça, que é só amor!
   Tremia a  mão do pastor. Não se atreveu a estende-la; não ousou arrancar um só fio de cabelo da cabela do pecador. Brotaram-lhe as lágrimas dos olhos, como um rio de graça e de amor, cujas águas refringentes extinguem o eterno fogo do inferno.
   Nisto cantou o galo.
   - Deus todo misericordiosos! Dá-lhe a paz, que eu não consegui alcançar para ela!
   - Tenho-a agora comigo - disse a morta. - Tuas palavras cruéis, teu desespero em face da humanidade, tua fé sombria em Deus e na Sua criação - tudo isso foi o que me impeliu a ir ter contigo. Aprende pois a conhecer o mundo e os homens! Até no pior deles vive uma partícula de Deus, uma partícula capaz de extinguir e vencer a chama do inferno! 
     Sentiu o pastor um beijo nos lábios. Luzia uma auréola em redor dele. A luz clara do sol de Deus entrava no quarto, onde sua mulher, viva, suave e carinhosa, o despertava de um sonho que Deus lhe enviara.
Fim

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