Ole, o guarda da torre, é um velho amigo meu.
Costumo subir até lá pelo Ano Bom; mas resolvi ir visitá-lo agora, no dia da mudança geral: o ambiente embaixo não está nada agradável, naquelas ruas atulhadas de lixo, de cacos e de outras coisas semelhantes. E isso sem falar nos montões de palha, escapada dos colchões rasgados...A gente vai tropeçando naquilo. Vi algumas crianças que brincavam naquela palha: brincavam de "ir para a cama". Acharam convidativo o brinquedo: entravam de rastos nos montes de palha, cobriam-se com pedaços de papel de parede, velho e rasgado, que faziam as vezes de coberta. Ah! Aquilo era demais! Afastai-me dali e subi para a torre de Ole.
E eis o que ouvi do meu amigo:
- É, hoje é dia de mudança. As ruas e o becos hoje servem de latas de cisco- enormes latas de cisco. Para mim uma só carroçada é bastante: tiro dali muita coisa, como aconteceu em que a gente apanha facilmente um resfriado. O lixeiro estava parado coma carroça cheia - mostruário das ruas da cidade no dia das mudanças. Do lado de trás, erguia-se um pinheiro ainda verde, e com os galhos cobertos de ouropel. Servira na noite de Natal, e depois ao atiraram à rua. O lixeiro espetou-o no meio do cisco, e aquilo lhe dava um aspecto divertido- ou talvez triste: isso depende das ideias da gente. Pois eu tive cá as minhas ideias ao vê-lo, e certamente os objetos que se achavam no caminho também tiveram as suas - ou poderiam tê-las, o que vem a dar no mesmo. Lá estava uma luva de senhora...que pensaria ela? Queres que te diga? pois a luva apontava com o dedo mindinho na direção do pinheiro. É que ela pensava lá consigo:
- Estou com tanta pena dessa árvore! ...Porque eu também estive em fuma festa, e tudo lá eram luzes...Minha vida cifrou-se em uma noite de baile, um aperto de mãos, e rebentei...Depois...minhas recordações param aí. Não me lembro de mais nada: já não tenho razão de viver.
Era isto o que pensava a luva - ou o que poderia ter pensado.
Mas os cacos diziam:
- Que história estúpida essa do pinheiro!
Os cacos acham sempre tudo estupido. E Eles continuaram a falar:
- Quando a gente vai ter à carroça de lixo, não deve se pavonear assim, nem usar mais ouropéis. Nós sim, sabemos bem que fomos úteis no mundo- muito mais úteis do que essa vara verde!
Ora, afinal , era a opinião deles. E talvez haja muita gente que pense assim. E contudo, era belo o aspecto do pinheiro, que dava um ar de poesia àquele montão de lixo.
Já me ia sentido fatigado, porque o trajeto não era fácil lá embaixo, no meio dos trastes velhos que enchem as ruas nos dias de mudanças. Tratei de sair dali; subi para a torre, e aqui fiquei , olhando para baixo com certo senso de humor, como agora.
Lá andam os homenzinhos, a brincar de "trocar as casas"! Lá andam carregados, a se esfalfar com seus bens; e os mexericos domésticos, as querelas de família, as preocupações e os pesares mudam-se com eles da velha morada para a nova. E no fim, que resultado tiram eles, ou tiramos nós de tudo isso? A resposta está contida no verso antigo, que diz:
Lembre-se do grande dia de mudanças da Morte!
É certamente um pensamento grave, mas talvez não te desagrade. A Morte é e sempre foi o funcionário mais pontual, a despeito de seus pequeninos encargos, que são incontáveis. É ela o condutor do caminhão, é o escrivão dos passaportes: é ela quem nos reconhece a caderneta de viagem; é ainda o diretor da grande Caixa Econômica da vida. Compreendes? Todas as ações que praticamos na nossa vida terrena vão para essa Caixa Econômica; e aparece a Morte com o seu caminho de mudanças, e embarcamos nele, viajando para a Eternidade, é ela que, nos entrega lá na fronteira a caderneta de viagem, que serve de passaporte. Para o farnel de viagem, tira da Caixa uma ou outra ação realizada pelo passageiro, a que for mais característica: o resultado pode ser divertido, mas também pode ser terrível!
Ainda não houve homem algum que escapasse a essa viagem. Contam, é verdade que houve um a quem foi vedado" o embarque - o judeu errante, Asvero, que se viu obrigado a correr atrás do caminhão. Se lhe houvessem permitido embarcar, não teria fornecido assunto aos poetas...Deita um olhar do teu olho interior para aquele grande caminhão! Lá verás, sentados, alto a lado, reis e mendigos, gênios e idiotas - e todos tiveram de partir sem bens nem dinheiro, levando penas o salvo-conduto e o farnel tirado da Caixa.
Mas qual será a ação retirada dali, para nos acompanhar? Talvez seja alguma bem pequenina, tão pequenina como uma ervilha...Mas isso não importa! Todo o grão de ervilha tem o poder de fazer brotar uma trepadeira em flor!
Àquele pobre que lá ficava num cantinho, sentado em um banco, e que só recebia pancadas e injúrias, talvez lhe deem o mocho como insignia e farnel; e quem sabe se ele não se transformará, no caminho, em uma carruagem, que o leve para o país da Eternidade? E, lá quem sabe se não virá a ter um trono, luzente como o ouro, florido como um caramanchão?
Aquele outro, que bebeu sempre na taça de todos os prazeres, para esquecer as façanhas que aqui praticou, recebe um barril de madeira; é dele que deve beber durante a viagem. A bebida é pura, de sorte que as ideias se lhe vão purificando também, e ele sente despertar no seu íntimo toda a espécie de sentimentos bons e nobres; vê pois, agora, o que antigamente não podia, ou não queria ver, e lá tem no interior o castigo, o verme roedor, que não morre nunca! E, enquanto na taça havia a inscrição: " Esquecimento" - no barril está escrito: " Recordação"!
Sempre que leio um bom livro, uma monografia histórica, por exemplo, imagino logo a personagem ali descrita embarcada já no carro da Morte. Sinto-me levado a meditar, a procurar qual seria, dentre suas ações, a que a Morte retirou da Caixa, qual o farnel que lhe deu, na entrada do país da Eternidade. Era uma vez um rei de França, cujo nome esqueci..às veze a gente esquece o nome das criaturas boas; mas acho que ainda hei de me lembrar desse. Pois bem: era um rei que durante uma época de fome foi o benfeitor do seu povo. E esta erigiu-lhe um monumento de neve, com esta inscrição:" Teu auxílio veio a nós em menos tempo do que este monumento precisa para se dissolver. " Suponho que A Morte, em consideração àquele monumento, lhe teria dado um único floco de neve, que jamais se derreterá: há de esvoaçar, qual uma borboleta branca, acima da cabeça do rei, entrando com ele no país da Eternidade,
E houve também Luís XI. Sim! Guardei-lhe o nome pois a gente nunca esquece o que é mais mau. Há na sua história um traço que nunca me sai da memória - eu bem desejara que isso fosse mentira! Pois o rei mandou executar o seu condestável'. E ele tinha o direito de assim proceder, com justiça ou sem ela. Mas o pior é que mandou postar os inocentes filhinhos do condestável no patíbulo, para que os salpicasse sangue ainda quente do pai! Dali foram condizidos à Bastilha, e encerrados em uma gaiola de ferro, sem um cobertor, ao menos, para se abrigarem. De oito em oito dias, o rei Luís mandava lá o carrasco, que arrancava um dente de cada um - para que não achassem a vida boa demais...Um dia, o mais velhinho disse ao carrasco:
- Minha morreria de desgosto se soubesse que meu irmãozinho tem de padecer tanto... Arranca-me dois dentes e poupa-o!
O carrasco sentiu os olhos se lhe encherem de lágrimas, mas as ordens do rei podiam mais!
E todas as semanas o rei recebia dois dentes de criança, em uma taça de prata, conforme ordenara.
Suponho que a Morte há de ter tirado da Caixa da vida aqueles dois dentes, dando-os ao rei Luís XI, para a viajem que empreendia para a Eternidade. E que eles haviam de ir voando a sua frente, como duas moscas de fogo, ardendo, queimando-o e mordendo-o -aqueles dois dentes de inocentes crianças.
Sim, meu caro: É uma viajem séria, essa do caminhão, no grande dia das mudanças! E quando chegará essa dia
Pois é justamente isso o que há de mais sério nesta história: É que agente pode esperar o caminhão em qualquer dia, a qualquer hora, a qualquer instante.
E então - qual das nossas ações será retirada, pela Morte, da Caixa Econômica, para nos servir farnel?
Vale a pena pensar a gente nisso!
O dia das mudanças não figura no calendário.
FIM
judeu errante, também chamado Aasvero, Asvero,[1] Ahasverus, Ahsuerus ou Ashver,[2] é um personagem mítico, que faz parte das tradição oral cristã. Diz a lenda que Ahsverus foi contemporâneo de Jesus e trabalhava num curtume ou oficina de sapateiro, em Jerusalém, numa das ruas por onde passavam os condenados à morte por crucificação, carregando suas cruzes. Na Sexta-feira da Paixão, Jesus Cristo, passando por aquele mesmo caminho, carregando sua cruz, teria sido importunado com ironias ou agredido verbal ou fisicamente, pelo coureiro Ahsverus. Jesus, então, o teria amaldiçoado, condenando-o a vagar pelo mundo, sem nunca morrer, até a sua volta, no fim dos tempos.
Em Portugal o título de Condestável do Reino ou Condestável de Portugal foi criado pelo rei Fernando I em 1382, para assumir as funções militares do antigo cargo de Alferes-mor, constituindo a segunda personagem da hierarquia militar nacional, depois do Rei de Portugal.
FARNEL: saco ou bolsa em que se colocam provisões para uma jornada.
Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
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