quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O ÚLTIMO SONHO DO VELHO CARVALHO - CONTOS DE ANDERSEN

    Na ourela do Bosque, em uma barranca à costa aberta do mar, erguia-se um carvalho muito, muito velho. Tinha trezentos e sessenta e cinco anos de idade; mas esse espaço de tempo, tão vasto, não era para a árvore mais do que são para nós, homens, outros tantos dias.
   Nós passamos o dia acordados, dormimos durante a noite, e é então que sonhamos os nossos sonhos. Mas para a árvore, é diferente a alternativa de sono e de vigília: ela atravessa três estações acordada, e somente no inverno sente sono. O inverno é para ela a época do descanso, do repouso; é a sua noite, após o longo dia, que nós chamamos primavera, verão e outono.
   Nos quentes dias do verão, as efêmeras tinham vindo dançar e esvoaçar em roda da copa do carvalho, e sentiam-se felizes ali. E quando uma daquelas criaturinhas, num instante de felicidade tranquila, pousava em uma das grandes folhas frescas da árvore, esta dizia:
   - Coitadinha! um único dia representa para ti a vida inteira! Que vida curta! Que lástima!
   - Lástima! Que queres dizer? - perguntava a efêmera. - Vivo cercada de tanta luz, tanto calor, tanta beleza maravilhosa, que só posso sentir alegria.
   - Mas é apenas durante um dia: depois tudo se acaba.
  - Acaba? - repetiu a efêmera. - Quer quer dizer isso? Tu também te acabaste?
  - Não! Eu talvez chegue a viver milhares de dias como os teus; para mim os dias são estações inteiras. E isso é uma coisa tão longa, que nem podes entendê-la.
   - De fato, não te compreendo mesmo. Tens milhares de dias como os meus, sim: mas eu tenho milhares de momentos em que posso viver feliz e alegre. Achas que a magnificência do mundo acabará quando morreres?
   - Não...- respondia a árvore. - Essa magnificência certamente há de continuar, e há de durar mais-  infinitamente mais do que eu posso imaginar.
   - Pois então cada um  de nós tem o mesmo ciclo de vida; a diferença está em que calculamos de modo diverso.
    E a efêmera dançava, e agitava-se no ar, cheia de alegria: alegrava-se com as suas asas artisticamente formadas, semelhantes a filó e seda; alegrava-se com aquele ar tépido, impregnado da fragrância agradável do trevo e das rosas silvestres, dos lilases e da madressilva, das plantas da sebe, da aspérula, das primaveras e da hortelã. E tudo aquilo exalava um aroma tão forte, que as efêmeras quase entonteciam. O dia era longo e belo, cheio de alegria e de sentimentos suaves; e quando o sol descia, os pequeninos insetos sempre sentiam uma fadiga agradável, após aquele folguedos do dia inteiro. As asas, já não queriam alçá-las; e iam deslizando, lenta e suavemente, até cair sobre a folha de relva macia e ondulante. Ali sacudiam a cabecinha - é costume das efêmeras - e adormeciam no meio daquela doçura e alegria: era a morte.
   - Coitadinha da efêmera! - suspirava então o carvalho. - Foi uma vida curta demais!
   E repetia-se aquela mesma dança, a mesma palestra, o mesmo fim, todos os dias do verão inteiro. E tudo aquilo se repetia por gerações inteiras de efêmeras; e entretanto todas elas se sentiam felizes e igualmente alegres.
   Enquanto isso, o carvalho ali estava ,ereto, durante toda a manhã- a primavera, e o meio-dia - o verão, e tarde - o outono. Não tardava a chegar a sua época de repouso, a sua noite - o inverno, que se aproximava.
   Já se ouviam as borrascas cantar seu cumprimento:
   - Boa noite! Boa noite!
   E caía uma folha aqui, outra acolá.
   - Nós te sacudimos, nós te agitamos! Dorme, dorme! Nós vamos te embalar e acalentar, até que durmas...Faz muito bem aos galhos velhos, não galhos velhos, não achas? A ramaria dá estalos de satisfação. Dorme bem, dorme bem! Esta é a tua tricentésima-sexagésima-quinta noite...Ora, no fundo, não passas de um fedelho! Dorme bem! A nuvem derrama neve, que forma um cobertor, para te proteger e aquecer teus pés. Dorme bem!E sonha sonhos agradáveis...
     E o carvalho, despido das folhas, lá se erguia, pronto para se recolher por todo o longo inverno, e para sonhar muitos sonhos, sempre com coisas que lhe tinham sucedido, tal e qual como acontece com os sonhos humanos.
   A imensa árvore já tinha sido, em tempos, pequenina. Seu berço fora uma bolota. Segundo a cronologia humana, achava-se agora no seu quarto século de vida. Era a melhor e a maior árvore da mata, e a sua copa ultrapassava de muito todas as outras. Visível a grande distância, servia de sinal para os marinheiros; mas nem sonhava que tantos olhares a buscavam assim. No seio da copa verde, a pomba selvagem fazia seu ninho; o cuco soltava de lá o seu grito; e no outono, quando as folhas tomavam o aspecto de chapas de cobre batido, vinham repousar ali as aves de arribação, antes de empreenderem seu voo por sobre o mar.
   Mas agora chegara o inverno A árvore lá estava desfolhada. E seus galhos apareciam tais quais era: tortuosos e cheios de voltas. Acercavam-se as gralhas e os corvos, que se iam revezando nos assentos vazios, e falavam do tempo inclemente que já se aproximava, e da dificuldade de encontrar alimento no inverno.
   E foi na época sagrada do Natal que a árvore sonhou o seu mais belo sonho.
   Sonhou que era tempo de festa; ouvia nitidamente o repique dos sinos por todos os lados, e no entanto era um dia maravilhoso de verão, suave e tépido. E a ampla fronde estendia-se, fresca e verde. Por entre a ramaria dançavam os raios de luz; o ar estava todo impregnado do perfume das ervas e das flores. Borboletas multicores brincavam de pegar; dançavam as efêmeras, como se tudo que existe  não tivesse outro fim senão dançar e se divertir. E tudo quanto, desde anos, se passara com a árvore, e ao redor dela, desfilava agora à sua frente, em um cortejo festivo. Reviu assim as épocas passadas, os tempo dos cavalheiros e damas da nobreza, montando estas seus palafréns, eles, de chapéu de pluma, levando na mão o falcão de caça. E cavalgavam pelos bosques, e a buzina ressoava, e a matilha ladrava. Viu guerreiros inimigos, trajando roupas de várias cores, brandindo armas brilhantes, dardos e alabardas, armarem e desarmarem as barracas; as fogueira dos vigias chamejavam. Viu casais de namorados, absortos em tranquila felicidade, que vinham conversar em noites de luar ao pé do seu tronco, e gravar iniciais na casca de um verde acinzentado.
   Outrora - sim! tinham muitos e muitos anos, depois disso! - outrora viandantes folgazões tinham pendurado nos seus galhos citaras e harpas eólicas; pois agora elas ali estavam oscilando de novo, e de novo ressoavam os sons maravilhosos. As pombas bravas arrulhavam, como se quisessem exprimir o que a árvore sentia, e o cuco ia enumerando os dias de verão que ainda lhe restavam.
   E era como se naquele instante uma nova corrente de vida o penetrasse até as últimas extremidades das raízes, até os mais altos ramos, até as pontas de todas as folhas.
   E a árvore sentia que se ia esticando, e retesando; das raízes lhe vinha a sensação de que mesmo no seio da terra havia vida e calor; observava que lhe iam aumentando as forças; e crescia cada vez mais alto, mais alto. O tronco se lhe desenvolvia incessantemente: era possível ver-lhe o crescimento. A copa tornava-se cada vez mais cheia, mais vasta, mais elevada. E quanto maior se sentia a árvore, maior era o bem-estar que sentia, e crescia nela aquele anseio beatífico de alcançar alturas cada vez maiores, até chegar lá acima, onde irradiava o sol, refulgente e abrasador.
  Já se içara muito além das nuvens, que singravam abaixo dela, umas como bandos escuros de aves de arribação, outras como grandes cisnes brancos.
   Cada folha da árvore tinha o dom da visão, como se possuísse olhos para ver. Em pleno dia, as estrelas eram visíveis, grandes e cintilantes; e cada uma delas brilhava como um par de olhos, suaves e claros, chamando à memória da árvore, olhos que ela conhecera, olhos carinhosos, olhos de crianças, de namorados que se haviam encontrado à sua sombra.
   Foi um momento de maravilhosa bem- aventurança, um momento repassado de alegria e de felicidade. E contudo, em meio a essa alegria, a árvore sentia um desejo, um anseio: queria que todas as outras árvores que viviam lá embaixo, todos os arbustos, todas as flores, pudessem elevar-se com ela, para verem aquele esplendor e participarem daquela alegria. O grande e majestosos carvalho não se sentia completamente feliz na sua magnificência: queria ter a seu lado todos os outros, grandes e pequenos; e aquela sensação de solidão a tremia-lhe nos ramos e nas  folhas, tão fervorosa, tão a intensamente, como em um peito humano.
   A copa da árvore balouçava-se para os lados, como se procurasse alguma coisa, na sua profunda saudade. Olhou para trás. Nesse momento sentiu ela o aroma da aspérula  el ogo depois o perfume mais forte de madressilvas e violeta; e ao mesmo tempo lhe pareceu que ouvia o canto do cuco.
   Sim: através das nuvens apareciam as copas verdes da mata, e mais abaixo o carvalho viu as outras árvore, que também cresciam e se iam erguendo. Arbustos e ervinhas cresciam vertiginosamente, e alguns até se desprendiam das raízes e voavam para o alto, com maior rapidez ainda. Mas a mais veloz era a bétula, cujo tronco esguio ia subindo, como um raio branco, fazendo zigue-zagues, enquanto os galhos iam-se enfuando ao redor dela, como bandeiras de crepe verde. E tudo o que vivia na mata, até os juncos de penacho pardo, acompanhava a cantar. Em uma haste que esvoaçava pelos ares, como uma cumprida fita verde, pousava um gafanhoto, que roçava a asa na pena como se tocasse rabeca. Zuniam os cascudo, zumbiam as abelhas; todas as aves cantavam cada uma segundo o seu dom; tudo era cheio de cânticos e de sons. A alegria chegava até o céu.
   - Mas...e aquela florzinha azul da beira d'água, onde ficou? - gritou o carvalho. - E a campanha vermelha e as margaridinhas?
   O velho carvalho não queria que faltasse uma só planta.
   - Estou aqui! Estou aqui! - cantavam as vozes.
   - Mas a bela  aspérula do verão passado? E este ano havia aqui uma quantidade enorme de lírios-do-vale...E a macieira brava, que tinha flores tão lindas...E toda aquela beleza da mata, que vi durante tantos anos!...
   Quem dera que tudo aquilo vivesse agora, para presenciar o que se passa neste momento!
   E vozes, vindas ainda de maior altura, cantavam, como se tivessem subindo antes do carvalho:
   - Aqui estou! Aqui estou!...
   - Que coisa maravilhosa! É inacreditável! - exclamava o velho carvalho, exultante. - Estão comigo todos, todos grandes e pequenos...Ninguém ficou esquecido! Quem poderia imaginar tamanha felicidade? Como é possível isto?
   - No céu do eterno Deus, ela é possível e imaginável - ressoavam as vozes pelos ares.
   A velha árvore, que continuava a crescer sempre, sentiu que as suas raízes se despegavam do solo, e dizia:
   - É melhor assim! Já não há entraves que me prendam. Poderei agora ir subindo e voando até a luz e o resplendor supremo. E todos aqueles a quem amo estão comigo, todos - grandes e pequenos! Todos!
   - Todos! 
   Foi esse o sonho do carvalho. E, enquanto ele assim sonhava, abateu-se uma violenta tempestade sobre a terra, no santo dia do Natal. Do mar rolaram pesados vagalhões contra a costa. A árvore, cujo tronco estalava e rangia, foi arrancada das profundezas do solo, justamente no instante em que sonhava que a raiz se lhe despegava do chão. E o carvalho foi derribado. Agora os seus trezentos e sessenta e cinco anos eram o mesmo que um dia de vida das efêmeras.
   Na manhã de Natal, ao nascer do sol, aminava a tempestade. De todas as igreja vinham os sons festivos do repique dos sinos; e de todas as chaminés,  até da choça mais humilde, subia a fumaça em nuvens azuladas, como sobe do altar o fumo do sacrifício em ação de graças, na festa dos drúidas. O mar foi serenado aos poucos, e a bordo de um grande navio que lutara a noite inteira contra a inclemência do tempo, vencendo-a enfim galhardamente, içavam-se todas as bandeiras, festejando o Natal, em sinal de alegria.
   Mas os marinheiros diziam:
  - Oh! sumiu-se a árvore, o velho carvalho, o marco característico das nossas costas...Caiu! O temporal derribou-o. Quem poderá substituí-lo? Ah! Não há ninguém que possa tomar o seu lugar! 
   Foi o necrológio - breve, sim , mas sincero - que teve a árvore. Lá jazia ela, estendida na neve, à beira-mar; e sobre a sua ramaria ressoavam os sons de um hino, vindos do navio: um cântico cheio de alegria, da alegria do Natal, inspirada na salvação da alma humana por Cristo, e na vida eterna:
    
 Vinde, ouvi a doce história,
     QUE DO ORIENTE VEM:
 O MESSIAS, REI DA GLÓRIA,
   NASCE EM BELÉM!

  Assim soava o velho hino, e no navio todos se sentiram exalçados - cada um à sua maneira - pela prece e pelo hino, bem como a velha árvore se sentira exalçada no seu sonho mais belo, o derradeiro, o sonho da noite de Natal. 
FIM
  

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