Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
quinta-feira, 12 de janeiro de 2017
O HOMEM DE NEVE - CONTOS DE ANDERSEN
Faz um frio tão agradável que todo o meu corpo está dando estalinhos! - dizia o homem de neve. - E este vento até anima agente. Mas olhem só aquele homem de brasa, como arregala os olhos. Pois sim! Vou segurar bem os meus caquinhos de telha!
Era o sol, que ia declinando e não tardava a se esconder.
E é que o homem de neve tinha no lugar dos olhos dois caquinhos de telha; a boca era um velho ancinho, de sorte que podia mesmo dizer que tinha dentes.
Nascera no meio das brincadeiras dos meninos, que celebraram a sua aparição com repiques de guizos e estalidos de chicotes.
Entrou o sol e apareceu a lua cheia - grande, redonda, brilhante e linda no céu azul.
- Lá vem ele agora do outro lado! - disse o homem de neve, pensando que era o sol que tornava a aparecer. - Acho que lhe dei uma lição, porque já não me encara do mesmo jeito. Pois que fique pendurado lá em cima, e me dê luz para que eu possa enxergar! Que bom se eu soubesse andar! Um passeio seria coisa deliciosa...Se eu pudesse, iria escorregar no gelo, lá embaixo, como aqueles meninos. Mas nem sequer sei caminhar!
- Vau! Vau! Vau! - latiu o velho cão, lá no pátio. Estava rouco, e já não podia dizer Au! Au! Au1 - como os outros cães. Apanhara aquela rouquidão no tempo em que vivia dentro de casa, e passava o dia deitado ao pé da chaminés. Mas assim mesmo continuou:
- Daqui a pouco, o sol te ensinará a correr...Vi como ensinou o teu parente, no inverno passado, e a todos os que vieram antes dele, anos atrás. Vau! Vau Vau! Todos eles lá se foram!
- Não te entendo bem, amigo. Queres dizer que aquele lá de cima vai ensinar-me a correr? Pois olha, quem correu foi ele, quando o encarei energicamente! E agora vem voltando devagarinho, do outro lado.
- Como é ignorante! Não é admirar, pois que mal acabas de nascer...Aquela que vês lá em cima agora é a lua; e o que viste caminhar há pouco e já foi embora é o sol. Amanhã há de voltar, e fica certo de que te ensinará a correr para a sargeta! Não tarda a mudar o tempo. Sei disso, pela dor que sinto na perna traseira, a esquerda...É ...o tempo vai mudar!
- Não entendo o que ele diz - pensou o homem de neve - mas pressinto que me fala de coisas desagradáveis. Aquele que me olhava tanto, e que foi embora é o sol, como lhe chama ele - também não é meu amigo: tenho esse pressentimento!
- Vau! Vau! - ladrou o cão.
E deu três voltas, e deitou-se a dormir no seu canil.
Mudou, de fato, o tempo. Pela manhã, espesso nevoeiro encobria toda a região. Soprou depois um vento glacial, e o frio aumentou; parecia tolher os movimentos das pessoas. Mas quando saiu o sol - oh! que esplendor! - Árvores e arbustos, cobertos de flocos de neve, formavam um bosque de coral branco; todos os galhos e raminhos estava coalhados de flores de alvura deslumbrante. Os galhinhos e talos, que no verão ficam completamente encobertos pela folhagem densa, apareciam agora: era um tecido rendilhado, como teia de aranha alvíssima, toda polvilhada de reflexos de luz. O videiro agitava os galhos pendentes ao sopro do vento: tinha vida, como no verão. Era um quadro magnífico!
Quando rompeu o sol, tudo resplandeceu e faiscou; dir-se-ia que alguém andara semeando pó de diamante pela imensa alfombra de neve.
- Que maravilha! - disse uma jovem que entrou no jardim, companhada de um mancebo.
Pararam junto do homem de neve, contemplando, cheios de admiração, as árvores acesas de mil reflexos. E a moça, radiante de alegria, continuou:
- Nem no verão vi paisagem tão linda!
- Mas também só no inverno se pode ter um rapagão como este - disse o moço, apontando para o homem de neve. - E está muito bem-feito!
Ela riu, cumprimentou o "rapagão", e afastou-se com o mancebo; e a neve rangia sob os seus passos, como se caminhassem sobre polvilho.
- Quem são aqueles? - perguntou o homem de neve ao cão. - Estás aqui há mais tempo; não os conheces?
- Ora se conheço! Ela me acariciou o pelo mais de uma vez, e ele me atirou um osso com restos de carne. Nunca hei de morder a nenhum deles!
- Mas quem são, afinal? - insistiu o homem de neve.
- São noivos. Em breve viverão no mesmo canil, e roerão o mesmo osso. Vau! Vau!
- Então são criaturas como eu e tu?
- São da família do meu senhor. Quem nasceu ontem não pode mesmo saber grande coisa! Bem se vê isso contigo...Eu tenho anos e anos de idade, e de experiência. Conheço toda a gente da casa, e até já conheci dias melhores - no tempo em que não me acorrentavam aqui no frio. Vau! Vau! Vau!
- Mas se este frio é magnífico! - disse o homem de neve - Vamos, conta, conta! Mas para com essa corrente que me faz tremer todo o corpo.
- Vau! Vau! Vau! - começou o cão. - Dizem que dantes eu era um cachorrinho muito bonito. Dormia então em uma cadeira forrada de veludo, e andava no colo da dona da casa. Beijavam-me o focinho, e enxugavam-me as patas com um lenço bordado. Chamavam-se Fiel - lindo e querido Fiel. Mas fui crescendo, e fiquei muito grande para andar no colo; deram-me à aia, e passei a viver no porão. Daí onde estás se vê a janela. Dá uma espiadela, e verás a morada onde um dia fui amo!Porque amo é o que eu era, na morada da aia. Os quartos não são tão grandes como lá no sobrado, mas ainda assim se vive ali com comodidade, e é mais agradável: não havia em roda de mim crianças a me sacudirem e darem puxões. E a comida era tão boa, ou melhor ainda. Tinha minha almofada - só minha - e havia na sala uma estufa, a melhor coisa do mundo, num tempo destes. Deitava-me debaixo dela a todo comprimento. Ah! Ainda sonho com aquela estufa! Vau! Vau! Vau!
- E é bonita, a tal estufa: Serás parecida comigo?
- Nem de longe! É exatamente o contrário. Ela é bem pretinha, e tem um pescoço comprido, comprido, que vai acabar na parede. Come tanta lenha, que até lhe saí fogo pela boca, em faíscas. A gente se chega, para ao lado dela, ou embaixo, e tem uma sensação muito agradável. Quem sabe se poderás vê-la daí?
O homem de neve olhou a viu uma coisa brilhante, parecida com aquilo que o cão acabava de descrever.
- E por que a abandonaste? - perguntou ele. - Como pudeste deixar um lugar tão bom?
Tinha uma vaga suspeita de que a estufa era uma criatura feminina.
- Ora, foi à força - explicou o cão. - Enxotaram-me da casa, e amarram-me aqui, nesta corrente. Não vê que eu mordi a perna do fidalguinho, filho do amo, porque me tirou com um pontapé, o osso que estava roendo. "Osso por osso!" pensei eu. Eles lá, porém consideraram isso de outra maneira, e desde esse dia fiquei acorrentado. Perdi até a voz. Não vês como estou rouco? Vau! Vau! Vau! Nem posso mais falar como outros cães...Vau! Vau! Vau! E foi assim que acabou o caso.
Mas o homem de neve já nem ouvia o que o outro contava. Olhava pensativo, para o porão, para a habitação da aia; lá estava a estufa, tesa sobre os quatro pés de ferro. E era da altura dele
- Que batidas esquisitas sinto no peito! - disse ele. - Não poderei jamais entrar ali? Não chegarei ao pé da estufa? É um desejo taõ inocente...E tenho certeza de que se realizam todos os desejos inocentes. Quero descansar meu coração naquela estufa! E hei de entrar para vê-la, nem que tenha de quebrar a vidraça!
- Nunca entrarás lá - disse o cão. - E, se chegares perto da estufa, então sim, que és homem morto! Vau! Vau!
- Mas seja estou mais morto que vivo...Acho que estou desabando!
O homem de neve passou o dia inteiro olhando pela janela; ao escurecer, a casa pareceu-lhe ainda mais atraente. A estufa brilhava com uma luz suave - não como a da lua, nem como a do sol - um luz como só a estufa pode irradiar, quando lhe dão alimento. Quando se abria a porta da sala, e la deitava chamas pela boca, como fazem todas as estufas. E aquele chama vermelha ia refletir-se no rosto pálido e no peito do homem de neve, banhando-o de uma cor rosada.
- Não posso esperar mais! - exclamou ele. - Que linda está ela, pondo assim a língua!
Comprida foi a noite, mas o homem de neve a não a achou longa: passou-a em um sonho, perdido em pensamentos agradáveis, e tão frios, que davam estalidos.
No dia seguinte os vidros das janelas amanheceram empanados pelo gelo, que cristalizara nas flores mais fantásticas que um homem de neve poderia imaginar; mas essas flores mesmas impediram que se visse a estufa.
Iam passando as horas, e não se derretia o gelo das vidraças. Viu-se o homem de neve privado de contemplar a estufa, que tinha de ser, segundo imaginava, uma graciosa dama. Era na verdade aquele tempo de frio glacial o que mais poderia agradar a um homem de neve, e contudo não se alegrava no meio do frio. Como havia de viver feliz, se morria de saudade da estufa, que não podia mais avistar?
- É doença muito perigosa para um homem de neve - declarou o cão. - Também padeci dela, mas escapei. Vau! Vau! Vau! ...O tempo vai mudar.
E mudou mesmo: começou o degelo, E à medida que a temperatura subia, ia-se derretendo o homem de neve. Nada dizia - nem uma queixa lhe saía do corpo, era esse o sintoma mais seguro.
Uma manhã desmoronou-se; e no lugar que tinha ocupado, só via agora uma espécie de cabo de vassoura: a vara que os meninos tinham cravado no chão para sustentar a neve, que lhe iam amontoando em roda, até dar-lhe a forma final.
- Ah! Agora compreendo por que o atormentava aquele desejo tão profundo!" - disse o cão. - Ataram à vara, uma daquelas pazinhas que a gente usa para avivar o fogo da estufa. O coração do homem de neve era um atiçador! Não admira. Pois que suspirasse pela estufa daquele jeito! Agora...agora está tudo acabado! Vau! Vau! Vau!
Não demorou a chegar também o fim do inverno.
- Vau! Vau! Vau! - latia o cachorro, com o seu vozeirão rouco.
Mas enquanto ele ladrava, as meninas da casa cantavam:
" Salgueiro, tira essas luvas,
Tira essas luvas de lã!
Solta o teu canto, calhandra!
Sai da casinha, avelã!
" Vem chegando a primavera,
Canta o cuco alegremente.
E eu canto ao sol que desponta:
- Vem o sol, alegra a gente!"
E ninguém mais se lembrava do homem de neve.
FIM
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