Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
terça-feira, 24 de janeiro de 2017
A COBRA-D'ÁGUA - CONTOS DE ANDERSEN
Era uma vez um peixinho de mar, de muito boa família. Já não me lembro do seu nome, mas os sábios podem informar-te, se o desejas. Sei que o peixinho tinha mil e oitocentos irmãos, todos da mesma idade. Não conheciam pai nem mãe. Já desde o primeiro dia se viram assim, entregues a si próprios, e lá iam vagando à toa pelo mar; e a verdade é que sentiam nisso grande prazer. Dispunham de muita água para beber - o oceano inteiro. E não era preciso que se preocupassem com o alimento, que aparecia sempre na ocasião oportuna. Todos eles pretendiam viver alegremente, cada um à sua maneira; cada um teria também a sua história, mas isso também não os preocupava.
O sol, deitando seus raios pela água a dentro, enchia-a de uma luz maravilhosa, iluminando um mundo de criaturas estranhas: umas de tamanho desmedido, que abriam uma boca imensa, capaz de engolir os mil e oitocentos irmãos. Mas, como nenhum deles tinha sido ainda devorado, não se importavam com os enormes animais.
Nadavam em cardume, bem unidos, como os arenques e as cavalas. Mas, quando iam nadando, muito à vontade, sem pensar em nada, veio descendo sobre eles, com medonho rumor, uma coisa comprida e pesada, que parecia não ter fim, e se estendia, cada vez mais longe.
E o peixinho que apanhasse, ficava logo esmagado, ou pelo menos levava uma pancada tal, que jamais poderia refazer-se do golpe. Todos os peixes - grandes e pequenos- da superfície até o fundo do mar, recuaram, sobressaltados. É a coisa pesada e poderosa descia, descia cada vez mais, e ia ficando cada vez mais comprida, e já cobria uma extensão de milhas e milhas, por dentro do mar.
Peixes e caracóis, tudo quanto nada, tudo quanto se arrasta lá no fundo, ou se deixa levar pela correnteza, todos viram aquela coisa pavorosa, aquela enguia marinham imensa e desconhecida, que assim de repente descera da superfície da água.
E afinal - que coisa era aquela?
Ah! Nós o sabemos! Era o grande cabo telegráfico, de muitas e muitas léguas de extensão, que os homens iam mergulhando no mar, entre a Europa e a América.
Todo o mundo ficou horrorizado, e houve verdadeiro alvoroço entre os legítimos habitantes do oceano, onde quer que o cabo caísse. Os peixes-voadores passavam muito acima da superfície da água, voando o mais alto que podiam. O peixe-galo, que pode saltar longe, deu um salto que alcançou a distância de um tiro de fuzil. Outros foram refugiar-se no fundo do mar, e desceram com tamanha velocidade, que chegaram muito antes de ter sido avistado por lá o cabo do telégrafo. Foram assim assustar o bacalhau e o linguado, que nadavam tranquilamente lá por baixo, devorando seus parentes.
Alguns holotúrias levaram tamanho susto, que vomitaram o estômago; mas continuaram vivas mesmo assim pois essa façanha lhes é familiar. Muitas lagostas, muitos caranguejos, dos grandes, saltaram fora das suas sólidas couraças, deixando longe as patas.
No meio de todo esse espanto, de toda essa confusão, os mil e oitocentos irmãos se viram separados uns dos outros, e não tornaram jamais a se encontrar, ou, se se encontraram, não se reconheceram.
Olharam em roda, e para cima, e para baixo; e pareceu-lhes que lá
estava, no fundo, aquela coisa horripilante, que lhes causara tanto pavor como aos outros seres do mar. A coisa jazia estendida no fundo do oceano, e estendia-se e perder de vista.Era muito magra, mas os peixinhos não sabiam até onde ela poderia engordar, nem lhe conheciam a força. Ali estava deitada e imóvel; mas ele achavam que aquilo bem podia ser por manha.
- Pois que fique deitada onde lhe apetecer! Que nos importa? - disse o mais prudente de todos.
Mas o menorzinho não se deu por satisfeito, e queria saber o que era aquilo. Como tinha vindo lá de cima, talvez lá pela superfície, a gente pudesse obter melhores informações. E assim foram subindo.
Era um dia sereno. Na superfície encontraram um delfim, que é um sujeito estouvado, um vagabundo do mar, que vive dar cambalhotas na planície do oceano. O delfim tinha olhos, logo era de crer que tivesse visto a coisa, e que soubesse dos pormenores. Interrogaram-no; mas ele só pensava em si: nada vira, e não soube que responder. E, como um ar enfatuado, mostrou seu pouco caso pelo assunto.
Dirigiram-se à foca, que ia mergulhar naquele instante. Mostrou-se mais cortês; e, embora costumasse comer peixinhos miúdos, naquele momento estava farta. Sempre sabia um pouco mais que o peixe saltão.
- Passei muitas noites deitada em uma pedra úmida, a olhar para terra firme, milhas a dentro. Vivem na terra criaturas de bonita figura, que, lá entre si, dão o nome de homens. Essas criaturas nos perseguem, mas, por via de regra, conseguimos escapar-lhes. Foi o que fiz, e também a enguia marinha de que vocês falam. Ela estava em poder deles, dos homem, e vivia na terra, talvez desde tempos imemoriais. Eles a trouxeram em um carro, pois queriam transportá-la por água, para uma terra distante, que fica do outro lado do mar. Vi quanto trabalho lhes deu a coisa! Mas conseguiram dominá-la. É que certamente ela já se cansara de estar em terra. Arranjaram-na então em forma de coroa, ou círculo, e ela rolava e dava estalos, enquanto a dobravam; mas afinal escapou, e chegou até aqui. Seguravam-na com toda a força- e olhem que havia muitas mãos a agarrá-la! Mas ainda assim fugiu, e chegou ao fundo. E creio que lá ficará, pelo menos por enquanto.
- Ela é tão magra...- disseram os peixinhos.
- É porque passou fome - retrucou a foca. - Mas logo há de recuperar as forças, e tornará a engordar como dantes. Julgo que á a grande cobra-d'água, que os homens tanto temem, e da qual, tanto se fala. Eu nunca tinha visto, e nem acreditei nunca na sua existência. Mas agora suponho que é ela mesma.
Dito isso a foca mergulhou.
- Quanta coisa ela sabe! Quanto falou! - diziam, admirados, os peixinhos. Nós nunca tínhamos aprendido tanta coisa...Hoje ficamos sábios. Tomara que seja verdade tudo quanto ela disse, e não patranhas, para enganar a gente!
-E por que não havemos de ir examinar a coisa de perto? - perguntou o menor. - De caminho poderemos ouvir a opinião de outras pessoas.
Mas os outros disseram logo:
- Eu cá não moverei uma barbatana para saber algo a respeito da coisa!
E foram andando para longe. Mas o pequerrucho, nadando para o fundo, disse:
- Pois eu quero saber!
Mas estava longe do lugar onde repousava a coisa. O peixinho ia mergulhando e olhando para todos os lados. Ignorava até então quão vasto era o mundo em que vivia. Passavam os arrenques, em grandes cardumes, cintilando como uma enorme bandeja de prata. As cavalas também andavam juntas, e apresentava, especto ainda mais esplêndido. De todos os lados nadavam peixes de todas as formas. Havia medusas, que pareciam enormes flores translúcidas, derivando na correnteza. No fundo do mar cresciam plantas enormes, arbustos de muitos metros de altura, e árvores semelhantes a palmeiras, com as folhas salpicadas de conchas de moluscos, que despediam brilho fulgurante.
Afinal o peixinho avistou, lá no fundo, uma longa fita preta, e nadou naquela direção. Mas a listra não era peixe, e tampouco o cabo. Era a amurada de um grande navio naufragado, cujo convés rebentara pela pressão da água. O peixinho entrou no porão, que, ao afundar, estava cheio de gente; mas essas pessoas tinham sido arrastadas pelas ondas, e só ficara ali uma mulher, com uma criancinha nos braços. A água erguia-lhe o corpo, como se estivesse a embalá-la. O peixinho assustou-se ao vê-las, porque não sabia que não acordariam jamais. As plantas marinhas, que desciam da amurada, cobriam os dois cadáveres, no meio daquela calma, daquela solidão. O peixinho tratou de se afastar dali o mais depressa que pode, em busca de algum sítio onde houvesse mais luz na água, onde visse peixes. Não muito longe dali lhe saiu ao encontro uma baleia nova a quem ele logo foi dizendo:
- Não me devore! Sou tão pequenino que a senhora nem sentirá meu gosto, se me engolir...E para mim é tão agradável continuar viver!
- Que andas fazendo por estas profundidades, a que a tua espécie não costuma descer?
Contou-lhe então o peixinho a história daquela esquisita enguia, ou que quer que fosse, que descera do alto, espantando até as mais valentes criaturas marinhas.
- Quá! Quá! Quá! - riu a baleia, engolindo água do mar.
E engoliu-a com tanta força, que, ao subir para respirar, teve de esguichar um repuxo formidável. E continuou depois:
- Quá! Quá! Quá! Ora essa! Então foi isso que me fez cócegas nas costas, quando me virei! Julguei que fosse um mastro de navio, bom para eu me coçar nele...Que engraçado!" Vou examinar aquilo: assim como assim, não tenho nada que fazer.
Deitou a nadar para diante, e o peixinho seguiu-a - não muito de perto, porém, porque onde a baleia passava, ia deixando uma espécie de correnteza na água.
Encontraram um tubarão e um velho peixe-espada; também ouviram falar da estranha enguia marinha. Tão magra e tão comprida. Não a tinham visto ainda, mas desejavam conhecê-la.
Nisto apareceu um lobo-marinho.
- Eu os acompanho, pois seguimos a mesma direção. Se a grande cobra-d'água não for mais grossa do que um cabo de âncora, eu a cortarei com uma só dentada - disse ele, abrindo a boca e mostrando as seis fileiras de dentes. - Os dentes que furam âncoras bem podem executar essa proeza.
- Lá está ela! - disse a baleia grande. - Já a enxergo. Vejam como se levanta, e se retorce e se dobra toda!
Ela desejava mostrar que tinha melhor vista que os outros, é o que é. Mas aquilo não era coisa que procuravam, não: era apenas uma enguia marinha, de tamanho descomunal, que se aproximava.
- Esse sujeito...Já o vi nalguma parte - foi dizendo o peixe-espada. - Nunca foi grande coisa, nem mete medo a peixe grande.
Entraram em palestra com a enguia, e perguntaram-lhe se queria acompanhá-los naquela viagem de descoberta.
- Se essa enguia for mais comprida do que eu - retrucou ela - ah! então ela vai ver em que se mete! Hei de lhe fazer todo o mal que puder!
- Nós também - disseram os outros. - Somos tantos, que bem podemos enxotá-la daqui.
E foram andando para diante.
Mas no mesmo instante viram que o caminho estava interceptado por um monstro estranho, maior que qualquer deles.
Parecia uma ilha flutuante, que não podia manter-se na superfície.
Era uma baleia muito, muito velha; tinha a cabeça inteiramente enfeitada de plantas marinhas. Cobriam-lhe as costas, miríades de ostras e conchas, e infinidade de animais marinhos, de sorte que a pele estava toda salpicada de branco.
- Vem conosco, velhota! - disseram os outros- Chegou agora um novo peixe, que não queremos aqui.
- Ora, prefiro ficar deitada. Deixe-me em paz! Deixem-me ficar onde estou...Ah! Ando doente, muito doente! Só sinto algum alívio quando subo à superfície e consigo ficar com o lombo acima da água. Então vem as grandes aves marinhas e me catam. Elas são muito bondosas, as aves marinhas, e isso me faz muito bem- contanto que não me deem bicadas muito fundas no toucinho...Vejam: tenho nas costas o esqueleto inteiro de uma ave! Tinha as garras cravadas na minha pele, e não pode desprende-las quando afundei. Agora já está toda roída dos peixinhos. Olhem só para esse esqueleto, e olhem também para mim! Estou muito, muito doente!
- Ora, isso é pura imaginação - disse a baleia nova.
- Eu cá por mim nunca estou doente. Peixe não adoece!
- Peço-lhe que me desculpe, minha senhora - disse a velha - mas a enguia sofre uma doença de pele. Dizem que o cará tem varíola, e nós todos, temos vermes intestinais...
- Tolices! - resmungou o tubarão, que não queria ouvir mais nada.
Os outros também já estavam fartos de conversa, e ele próprio achava que havia muito que fazer, para estarem a palestrar assim.
Chegaram finalmente ao lugar onde jazia o cabo telegráfico, que se estendida Europa à America, deitado sobre montes de areia, e sobre lodaçais, penedos, selvas de plantas aquáticos, e bosques inteiros de corais. Lá embaixo mudam as corrente e rodopiam os redemoinhos. Vão chegando os peixes, em cardumes maiores do que os bandos inumeráveis de aves que os homens veem passar na época em que se reúnem as aves de arribação. Reina lá no fundo do mar, uma agitação constante, e ouve-se um eterno chapinhar, e murmúrios, e zunidos, que nunca acabam. E é o resto desses zunidos que se conserva nas grandes conchas vazias: é o zunido do fundo do mar que ouvimos dentro delas, quando as encostamos à orelha.
- Lá está o bicho! - gritaram os peixes grandes.
E o peixinho repetiu:
- Lá está o bicho!
E todos cravaram o olhar no cabo, de que não podiam avistar nem o começo nem o fim, por mais que alongassem a vista.
Esponjas, polvos e gorgônias ondulavam no fundo, passavam por cima do cabo, ocultando-o e descobrindo-o alternativamente, enquanto ouriços-do-mar, caracóis e verme se agitavam e remexiam em volta dele. Passeavam-lhe por cima aranhas gigantescas, seguidas de um exército inteiro de ocupação, formado de animais rasteiros. Holotúrias, animais de uma cor verde-escura, daqueles que comem com o corpo inteiro, estirados sobre o cabo, pareciam tomar o cheiro daquele novo animal, que viera instalar-se no fundo do mar. Linguados e bacalhaus reviravam-se na água, para escutar. A estrela-do-mar que vive enterrada no lodo, e mantém fora da lama apenas dois tentáculos compridos, onde estão alojados os olhos, ficou ali, feito um basbaque, para ver em que iria dar todo aquele alvoroço.
Sim! O cabo telegráfico jazia ali imóvel; mas tinha vida, e pensamentos : os pensamentos humanos, que por ele transitavam.
Olhando para ele, disse a baleia:
- Hummm! Eu é que não me fio nesse sujeito! É muito capaz de me dar um soco no ventre, que é justamente o meu ponto mais fraco...
- E se nós o apalpássemos? - Alvitrou o polvo. - Meus braços são tão compridos, meus dedos tão flexíveis...Já o apalpei de leve; agora vou segurá-lo com mais força.
E estendeu os tentáculos mais compridos e mais flexíveis, em direção ao cabo, cingindo-o em toda a grossura. Depois anunciou:
A coisa não tem escamas. Também não tem pele. Acho que não é dos animais que tem filhos vivos.
A enguia marinha estendeu-se junto ao cabo, esticando-se o mais que podia. E disse por sua vez:
- Acho que aquele sujeito é mais comprido do que eu. Mas o que importa não é mesmo o comprimento: o que a gente precisa ter é pele, estômago e flexibilidade!
A baleia, a jovem e vigorosa baleia, desceu mais do que da primeira vez, e perguntou:
- Afinal, és animal ou planta? Ou serás apenas uma daquelas coisas que aqueles lá em cima fabricam, e que não vai adiante?
Mas o cabo telegráfico não lhe deu resposta. Afinal ele não estava aparelhado para ouvir. Passavam-lhe pelo corpo pensamentos humanos, que voavam em um segundo, correndo milhas e milhas, centenas de milhas, indo de um país a outro.
- Queres responder, ou preferes se esmagado? - perguntou o feroz tubarão.
Então todos os peixes fizeram a mesma pergunta:
- Queres responder, ou preferes ser esmagado?
E continuou mudo, sem responder nada. Tinha mais que fazer: sua missão era telegrafar, e ali deitado ia exercendo seu ofício.
Lá em cima, o sol se punha, como diziam os homens. Parecia de fogo, de tão vermelho: e todas as nuvens do céu, resplandeciam também como se fossem de fogo, cada qual mais deslumbrante.
Agora vamos ter a luz vermelha - explicou o polvo.
- Poderemos assim ver melhor a coisa, se não conseguirmos antes.
- Vamos! Atacar! - brandou o lobo-marinho, mostrando todos os dentes.
- Vamos! Atacar - repetiram o peixe-espada, a baleia e a enguia marinha.
Avançaram, de chofre, o lobo-marinho à frente. Mas no instante preciso em que ele ia enterrar o dentes no cabo, o peixe-espada, num excesso de entusiamo, ferrou-lhe a espada na anca. Ora,isso foi uma grande desgraça, na verdade, porque o lobo-marinho perdeu a força com a dor e não pode morder.
E foi uma grande confusão no fundo do mar: peixes grandes e peixes miúdos, holotúrias e caracóis, todos se empurravam entre si, trocando socos, esmagando-se reciprocamente e se entredevorando.
E a tudo isso o cabo jazia deitado, tranquilo, e ia executando sua tarefa, sem barulho, como é mister que cada um trabalhe.
Em cima, era noite escura, mas milhões, bilhões de animaizinhos minúsculos andavam pelas águas, deitando luz fosforescente. Até caranguejinho, que mal alcançariam o tamanho de uma cabeça de alfinete, espalhavam luz! Parece milagre, mas é a realidade.
- Mas afinal - que coisa é aquela? E o que não é?
Sim! Esse é que era o problema!
Naquele momento apareceu um manatim. O manatim é o que os homens chamam de peixe-boi; era antes a mulher do manatim, e de fato se chama peixe-mulher. Tinha cauda, e dois braços curtos, com os quais chapinhava na água. Trazia a cabeça cheia de algas e parasitas, e mostrava-se muito orgulhosa desses enfeites.
- Querem uma informação, não é? Pois no fim de contas ninguém a poderia mesmo dar, a não ser eu! Em compensação, exijo que eu e os meus, possamos pastar sem perigo nas campinas do fundo do mar. Pois bem, sou peixe como vocês, mas tato me exercitei que cheguei a se uma espécie de animal rasteiro ou réptil. Sou a criatura mais sábia do mar e sei coisas a respeito de tudo quanto se move aqui embaixo, e de tudo quanto vive lá em cima. Esse objeto que tem feito vocês andaram às tontas, a quebrar a cabeça, veio lá de cima, e, como tudo quanto cai aqui dentro d'água vindo lá de cima, está morto e morto permanece: é impotente. Deixem-no pois aí deitado, seja lá o que for: não passa de uma invenção humana.
- Pois eu, cá por mim- interveio o peixinho - acho que há coisas escondidas atrás daquele objeto.
- Cala a boca, cavala! - brandou o grande peixe-boi.
E os outros gritaram também um insulto ainda maior.
-Lambari!
Pôs-se então o peixe-mulher a explicar-lhes que todo aquele enorme bicho, que tamanho escândalo estava causando no fundo do mar, e que nem sabia seque dizer "Muh!", era apenas uma invenção, mais uma astúcia lá de terra firme. E estendeu-se a falar-lhes da manha dos homens.
- Não querem outra coisa senão apanhar-nos! Não vivem, não respiram, senão para esse fim. Estendem linhas e atiram iscas e anzóis para nos atrair. Aquele estupor que ali está é uma espécie de grande linha de pescar. Eles pensam que nós vamos morder a isca, porque são uns tolos. Mas nós não o somos, não! E é melhor que ninguém toque naquela coisa. Acabará por se decompor, transformando-se em lama. Tudo o que vem de cima é podre, não presta; não tem utilidade alguma.
- Não presta, não tem utilidade! - repetiram todas as criaturas do mar.
Concordaram assim com o peixe-boi, tinham ao menos uma opinião.
Mas o peixinho continuava lá a ter as suas ideias:
- Quem sabe lá se essa enorme serpente não é o peixe mais maravilhoso do mar! Tenho cá o meu palpite, e confio nele!
- O mais maravilhoso!
Assim também dizemos nós, os homens - e o que mais é, falamos conscientemente, e com absoluta certeza.
É a grande cobra-d!água, anunciada há muito tempo, e cânticos e em lendas.
Gerada a plasmada, ela brotou do espírito do homens, e foi depositava no fundo do mar, para levar mensagens dos países de Leste para os do Oeste, com a mesma rapidez do raio de luz, que desce do sol à terra. E ela cresce, cresce sempre, cresce em extensão e em potência, cresce de ano para ano, estendendo-se através de todos os mares, que cercam a terra; e sob as águas que fervem em torvelinho tempestuoso, e sob as outras águas, as águas claras como o cristal, que o olhar do marinheiro atravessa, como se navegasse pelo ar transparente - aquelas águas onde enxerga cardumes de peixes, e um fogo de artifício, multicolorido.
Os peixes e outros animais, que se arrastam, dão cabeçadas na serpente; mas eles não podem compreender esse mostro que veio lá de cima: não podem entender a serpente da Humanidade, que fala e espalha todos o idiomas da terra, e contudo está sempre silenciosa; a serpente que transmite as ideias boas e as ideias más, o mais estranho dos habitantes do mar - a grande cobra-d'água.
FIM
UMA PRINCESA DE VERDADE - CONTOS DE ANDERSEN
Era uma vez um príncipe que queria casar com uma princesa, mas havia de ser uma princesa de verdade, uma princesa de sangue real mesmo. Andou viajando pelo mundo inteiro, à procura da princesa dos seus sonhos, mas todas as que encontrava tinham algum defeito. Não é que faltassem princesas, não: havia-as de sobra até. Mas a dificuldade estava em saber se realmente eram de sangue real. E o príncipe tornou à pátria, muito triste e desiludido, porque desejava tanto casar com uma princesa de verdade!
Uma noite desencadeou-se uma tempestade medonha; chovia desabaladamente, e tudo eram trovoadas e relâmpagos. Um espetáculo tenebrosos! De repente bateram à porta da cidade, e o rei em pessoa foi abrir.
Era uma princesa, a moça que achou do lado de fora da porta. Mas - Santo Deus! - em que estado vinha, com aquele tempo horrível! Toda encharcada, escorrendo-lhe água dos cabelos e para fora dos sapatos...Mas a moça disse que era uma princesa real.
- É o que vamos ver! - pensou lá consigo a rainha. Nada disse, contudo, a ninguém, sobre as suas dúvidas. Foi ao quarto de dormir, tirou todas a roupas da cama, e pôs no lastro um grão de ervilha. Colocou em cima, vinte colchões; e, em cima desse, mais vinte acolchoados de penas. Era aquela a cama da princesa.
De manhã perguntou à moça como tinha passado a noite.
- Oh! Muito mal! - respondeu a princesa. - Não pude conciliar o sono a noite inteira: havia não sei que coisa tão dura na cama, que não me deixou dormir, e tenho o corpo cheio de manchas escuras.
Viram então que era uma princesa de verdade; sentira o grão de ervilha, mesmo debaixo de vinte colchões e vinte acolchoados de penas. Só mesmo uma princesa de verdade podia ter a pele tão sensível!
Então o príncipe casou com ela, pois sabia agora que tinha achado uma verdadeira princesa.
E o grão de ervilha foi enviado ao Museu, onde ainda deve estar, se ninguém o tirou de lá.
E isto é uma história verdadeira...
FIM
segunda-feira, 23 de janeiro de 2017
A FURA-NEVE - CONTOS DE ANDERSEN
Era inverno. O ar estava muito frio e o vento, cortante; mas atrás da porta e do ferrolho havia calor e conforto. Atrás da porta e do ferrolho jazia a flor com o seu bolbo, coberta pela terra e pela neve.
Um dia caiu uma chuva. Rompendo a camada de neve, algumas gotas penetraram na terra; tocaram no bolbo e falaram-lhe do mundo iluminado lá de cima. Depois veio o raio de sol, fino e pontiagudo; penetrou também através da neve, chegando até o bolbo, que sentiu uma espécie de prurido.
- Entra! exclamou a flor.
- Não posso - disse o raio de sol. - Não tenho força suficiente para abrir. Mas quando vier o verão, então já estarei bem forte.
- Quando vem o verão? - perguntou a flor.
E cada vez que um novo raio de sol rompia a neve ela repetia a pergunta?
- Quando vem o verão?
Mas estavam ainda muito longe os dias estivais. Ainda a neve se estendia sobre a terra, e todas as manhãs a água aparecia coberta de uma camada de gelo.
- Como está tardando! Como está tardando! - dizia a flor. - Sinto uma excitação, um prurido! Preciso de me esticar, de me espreguiçar. Preciso abrir este ferrolho, e sair, para dizer "Bom dia" ao verão.
E a flor esticava-se, esforçando-se lá dentro para romper a fina camada exterior, que a chuva amolecera, a terra aquecera, e o raio de sol afagara. E ia rompendo por baixo da neve, com um gomo branco-esverdeado na haste verde, já provida de folhinhas espessas e estreitas, que pareciam abrigá-la.
- Se bem-vinda! - cantava cada raio de sol.
E a flor foi-se içando para a neve, para o mundo da luz. Os raios do sol a acariciaram e beijaram, ela desabrochou inteiramente, branca como a neve, toda enfeitada de listrinhas verdes. Cheia de alegria, mas também de humildade, baixou a cabeça.
- Lindíssima flor! - cantaram os raios do sol. - Como és fresca e delicada! Tu és a primeira! Tu és a única! Tu és o nosso amor! Repicas, anunciando o verão, o belo verão, à cidade e ao campo. A neve vai derreter-se; os ventos frios serão enxotados e nós dominaremos por toda a parte. Tudo vai ficar verde! E tu terás companhia- lilases, e rosas, e cítisos. Mas tu és a primeira, e tão delicada, e tão fininha!
Era imensa a alegria. Parecia que o ar cantava e retinia; parecia que os raios de luz penetravam as folhas e a haste da flor. E ela se erguia, tão frágil e tão delicada, contudo, tão vigorosa na sua beleza juvenil! Erguia-se no seu vestido branco com as fitas verdes, e dava ideia do verão. Mas o verão ainda longe. Ainda havia nuvens de vez em quando a encobrir o sol; ainda sopravam ventos impetuosos.
E os ventos e o mau tempo diziam:
- Chegaste muito cedo. Nós ainda predominamos aqui, e vais sentir o nosso poder; terás de sujeitar-te a ele. Era melhor que tivesses ficado em casa, em vez de sair assim, a te ostentares, antes do tempo.
E que frio cortante! Os dias que vinham não traziam nenhum raio de sol. Era um tempo capaz de congelar uma florzinha! Mas aquela possuía mais força do que ela mesma imaginava. Era robusta a sua alegria, e também a sua fé no verão que havia de chegar, que lhe fora anunciado pelos seus profundos anseios, e confirmado pelo brando calor do sol. Assim ia-se conservando de pé, nos seus trajes brancos, em meio da neve branca; e baixava a cabeça quando os flocos de neve caíam, pesados e densos, e sopravam os ventos glaciais.
- Tu te quebrarás - disseram eles. - Vais murchar, vais murchar! Por que saíste? Por que te deixaste iludir?
O raio de sol enganou-te! Agora estás vendo, louca do verão.
- Louca do verão! - repetia ela, numa fria manhã.
- Louca do verão! - clamaram, rindo, algumas criança que entraram no jardim. - Aqui está uma! Que linda! Tão linda...e é a primeira...é a única!
Essas palavras alegravam a flor; faziam-lhe bem. Eram palavras que se assemelhavam aos tépidos raios do sol. Na sua alegria, a flor nem sequer sentiu quando a quebravam. Achou-se abrigada em uma mãozinha de criança; foi beijada por uma boca de criança; foi levada para uma sala quente. Lá, olharam-na olhos suaves; foi posta na água tão refrescante, tão animadora...
A filha da casa, uma bonita mocinha, já fizera a Primeira Comunhão, e tinha um amiguinho que também já a fizera e estudava agora para depois se empregar.
- Ele deve ser o meu "louco do verão" - disse ela, tomando a flor delicada e colocando-a sobre um pedaço de papel perfumado, em que estavam escritos alguns versos.
Aqueles verso falavam da flor, começavam com " louco de verão", e terminavam com "louco de verão". E diziam mais: " Sê tu, meu louco de inverno, meu amigo!"
Sim, porque ela o enlouquecera com e esperança do verão.
E tudo isso estava escrito nos versos, que foram dobrados em forma de carta, com a flor imprensada dentro. Agora ela ficara em trevas; trevas, como as que conhecera quando estava dentro do bolbo. E a flor foi viajar; foi posta na mala do correio, foi apertada e empurrada - o que não era nada agradável. Mas isso tudo também teve seu fim.
Acabara a viagem. A carta foi aberta e lida pelo moço. E como ele ficou alegre! Beijou a flor e guardou-a, com os versos, em uma arca em que já estava várias cartas bonitas, mas nenhuma outra tinha flor. Era esta a primeira, a única, como a haviam chamado os raios de sol. E dava prazer meditar nisso.
E ela teve bastante tempo para meditar. Meditou enquanto ia passando o verão, e enquanto se ia embora o longo inverno; e depois era de novo verão, quando ela retornou à luz.
Mas desta vez o moço não estava, oh! não estava absolutamente alegre! Pegou nas castas com arrebatamento e atirou longe os versos, de modo que a flor caiu ao chão. É verdade que ela estava imprensada e murcha, mas seria por isso que ele a a tirou ao chão? Em todo o caso, sentia-se melhor ali do que se tivesse sido lançada ao fogo, onde cartas e versos se transformaram em chamas. Mas que sucedera? Ora, o que sucede tantas vezes: a flor enganara o moço - e isso era uma brincadeira: durante o verão, escolhera outro namorado.
No dia seguinte, o sol da manhã veio luzir sobre a pequenina fura-neve esmagada, que parecia agora pintada no chão. A criada veio varrer o quarto; levantou-a e colocou-a em um dos livros que estava sobre a mesa, supondo que dali tivesse caído, durante a arrumação. A flor achava-se de novo entre versos; versos impressos, desta vez, que são mais distintos do que os versos escritos: pelo menos custaram mais dinheiro.
Passaram-se anos. O livro lá estavam na prateleira. Um dia alguém o retirou dali. Abriu-o e leu-o. Era um bom livro: " Versos e Canções" do velho poeta dinamarquês Ambrosius Stub, que vale a pena ler. O homem que lia virou a página.
- Uma flor! Uma fura-neve, uma louca do verão...uma louca da poesia! Foi sem dúvida de propósito que a puseram neste livro. Pobre Ambrosius Stub! Também foste um louco do verão, um louco da poesia...Vieste antes da tua época, por isso andaste, fustigado pelos ventos cortantes, peregrinado como hóspede de ricos morgados - uma flor em um copo d'água, uma flor metida em uma carta rimada! Louco do verão e louco do inverno, brincadeira e loucura - e ainda assim o primeiro, o único, o poeta vigoroso e juvenil da Dinamarca daquele tempo...Sim, fica neste livro, como um sinal, pequenina flor branca. Bem acertado andou quem aqui pôs!
E a fura-neve foi outra vez posta no livro. E sentiu-se ali muito honrada e muito feliz: sabia agora que era um sinal em um magnífico cancioneiro, e que aquele que fora o primeiro a descrevê-la e a cantá-la, tinha sido também uma florzinha branca, um louco do verão também considerado como louco em uma época hibernal.
A flor entendia essas coisas lá a seu modo, como todos nós interpretamos, à nossa maneira, qualquer assunto.
E aí a história da fura-neve.
FIM
sexta-feira, 20 de janeiro de 2017
A ROSA MAIS LINDA DO MUNDO - Contos de Andersen
Era uma vez uma rainha que possuía no seu jardim, em qualquer estação do ano, as flores mais esplêndidas de todos os recantos da terra. Ela preferia, contudo, a rosa a qualquer outra flor; por isso cultivava todas as espécies, desde a roseira brava das matas, cujas folhas cheiram a maça, até a lindíssima rosa de Provença. Cresciam rosas nas muralhas do castelo; rosas serpeavam enlaçando as colunas e os umbrais das janelas, entravam pelos corredores, estendiam-se pelo forro das salas, diferençando-se umas das outras pelo aroma, pela forma e cor das pétalas.
E, contudo, agora moravam naquele palácio a dor e a amargura: a rainha adoecera, e os médicos declararam que ela ia morrer.
Mas, ainda assim, dissera o mais sábio deles:
- Há uma probabilidade de salvação: ide em busca da mais bela rosa do mundo, aquela que é a própria expressão do amor mais sublime e mais puro. A rainha escapará à morte, se pousar nessa rosa os olhos antes que estejam apagados.
E vinham de todos os lados pessoas que traziam rosas; gente moça e gente velha traziam rosas, as rosas mais lindas que desabrochavam pelos jardins - mas nenhuma delas era a rosa que se buscava por toda a parte. Era preciso encontrar a flor do jardim do amor; mas qual delas, entre tantas que ali floresciam, qual seria a expressão do amor mais sublime, do amor mais puro?
Os poetas celebravam a rosa mais linda do mundo, e cada qual enaltecia a sua. Levou-se a mensagem às mais remotas regiões do país; fez-se um apelo para que todos os corações harmonizassem suas pulsações com o ritmo do amor; cada classe social, cada idade, recebeu um apelo especial.
- Até agora - declarou o sábio - ninguém disse o nome da flor; ninguém indicou o sítio do sarcófago de Romeu e Julieta, nem as do túmulo de Santa Walpurgis - se bem que seu aroma recende sempre em todas as canções. Nem são tampouco as flores que brotam das lanças sangrentas de Arnoldo Winkelried, regadas com o sangue sagrado do herói morto pela pátria - ainda que não haja morte mais doce, nem rosa mais vermelha do que o sangue que brotou daquele peito. Não é ainda aquela flor milagrosa, que o homem cultivou durante dias, durante anos, em longas noites não dormidas, na vigília do seu humilde gabinete de estudo, e à qual sacrificou o verdor de seus anos - a rosa maravilhosa da ciência.
- Pois eu seu onde vive ela - disse uma mãe feliz, que, com o filhinho nos braços, se aproximou do leito da rainha. - Eu seu onde se acha a rosa mais bela do mundo! A rosa que é a expressão do amor mais sublime, do amor mais puro, brota nas faces do meu filhinho querido, quando, revigorado pelo sono, abre os olhos e me sorri com todo o carinho.
- Sim, é bela essa rosa - disse o sábio. - Mas há outra mais bela.
- Sim! Há uma muito mais bela - disse outra mulher. - Vi-a eu, e não pode haver rosa mais sagrada!
Mas era pálida, como as pétalas da rosa branca. Vi-a nas faces da rainha, que, pondo de parte a coroa, carregava nos braços o filhinho doente, naquela longa e dolorosa noite. Ela chorava, beijava-o, e rezava por ele, como reza uma mãe nas horas de terror.
- Sim! Sagrada e maravilhosa é, pelo seu poder, a rosa pálida da amargura; mas ainda não é essa a que procuramos.
- Não! A rosa mais esplêndida - disse o velho e piedoso bispo - via-a eu diante do altar do Senhor. Viu-a luzir, como o semblante de um anjo. As donzelas aproximava-se da mesa do Senhor, para renovar as promessas do batismo. Nas suas faces frescas floresciam e desmaiavam rosas. Havia entre elas uma menina que erguia os olhos para o céu com a maior pureza, com todo o carinho de sua alma: era aquela a expressão do amor mais sublime, mais imaculado!
- Bendita seja ela! - disse o sábio. - Mas nenhum de vós chegou a mencionar a rosa mais bela do mundo.
Nesse instante entrou no quarto uma criança, o filhinho da rainha. tinha os olhos rasos de lágrimas, e trazia nas mãos um grande livro aberto: era encadernado em veludo, e tinha grandes fechos de prata.
- Olham mamãe, escuta o que li aqui!
E, sentando-se junto do leito, leu a criança o que estava escrito no livro sobre Aquele que se entregou a si mesmo para morrer na cruz, a fim de salvar os homens - e todas as gerações futuras.
- Não há amor tão imenso quanto esse!
Passou sobre as faces da rainha um reflexo de rosas. Brilhavam-lhe agora os olhos, ao ver como das folhas daquele livro surgia a rosa mais linda, a imagem daquela rosa que brotou do sangue de Cristo no tronco da cruz.
- Vejo-a! - disse a rainha. - Nunca há de morrer quem avista essa rosa - a rosa mais bela do universo!
FIM
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
NO ÚLTIMO DIA - CONTOS DE ANDERSEN
O dia mais sagrado entre todos os dias é aquele em que teremos de morrer: o dia solene dia da transformação. Já pensando seriamente nessa hora tremenda, inelutável e derradeira, que terás de passar nesta terra?
Era uma vez um homem, um fanático, como se costuma dizer, um desses que lutam pelo Verbo, que para ele era a Lei; um servidor zeloso de um Deus zeloso...E agora se achava a Morte ao pé da sua cama, a Morte, de rosto carrancudo.
- Chegou a tua hora. Tens de seguir-me- disse a Morte, tocando-lhe os pés com o dedo glacial.
Os pés do homem gelaram. A Morte tocou-lhe então a testa, depois o coração, que se despedaçou àquele contato. A alma seguiu o anjo da Morte.
Entretanto, naqueles poucos segundo que se escoaram, durante o transe, passou, como passam as altas e negras ondas de um mar, pelo agonizante, tudo quanto a vida lhe trouxera, tudo quanto a vida nele despertara. E assim, com um único olhar, devassa as profundezas insondáveis e abrange com o raio de um só pensamento o caminho incomensurável: desvenda, com um só olhar, num conjunto imenso, os enxames inumeráveis de astros, de globos e mundos, na vastidão do espaço.
Em semelhante momento, sente-se o pecador tomado de aflição: não lhe resta mais nada a que se apegar, e ele tem a sensação de que vai afundando num infinito vazio. Não assim o homem justo; esse reclina serenamente a a cabeça, como uma criança resignada: " Seja feita a Vossa vontade!"
O homem que ali estava morrendo, porém, não tinha alma de criança: sentia-se homem. Não se horrorizava, naquele momento, como o pecador; sabia que tinha a fé verdadeira. Observara os preceitos da religião em todo o seu rigor. Não ignorava que milhões de pessoas tinham de transpor a via larga que conduz à condenação: seria capaz de aniquilar-lhes os corpos a ferro e fogo, com são e serão sempre aniquiladas as suas almas.O seu caminho, porém, dirigia-se para o céu, onde a graça lhe abriria a porta - a prometida graça.
E a alma acompanhou o anjo da Morte: mas antes, dirigiu ainda um último olhar para o leito onde jazia a imagem de barro, vestida com a mortalha branca, uma imagem estranha do seu próprio Eu....
Iam caminhando, e voando. Atravessavam uma vasta sala, mas essa sala era ao mesmo tempo um bosque; ali a natureza cerceada, amarrada, estacada e arranjada em fileiras - era, enfim, tratada artificialmente, como os antigos jardina francesas: era uma mascarada!
- Eis a vida humana! - disse o anjo da Morte.
Todos andavam mais ou menos disfarçados. Nem todos os que trajavam veludos e se cobriam de ouro eram na verdade os mais nobres e mais poderosos; e nem todos os esfarrapados eram de fato os mais pobres e humildes. Que mascarada, esquisita, aquela! E - o que parecia mais estranho - cada pessoa trazia, escondida sob a s vestes, alguma coisa que procurava furtar aos olhares das outras. Contudo, sacudiam-se uns aos outros, violentamente, para que objeto escondido aparecesse; via-se então apontar a cabeça de um animal a careta de um macaco, um bode grotesco, uma serpente viscosa, um peixe meio morto.
Era o animal que nos aflige a todos: o animal que se arraigou no homem. E todos aqueles animais iam pulando, dando saltos, na ânsia de avançar. Cada pessoa procurava cingir bem ao corpo a roupa, mas vinha outra que a afastava, gritando:
- Vejam, vejam! Olhem! Aqui está ele! Aqui esta ela!
E cada qual queria desnudar a miséria do outro.
- Que animal trazia eu? - perguntou a alma peregrina.
O anjo da Morte apontou para um vulto soberbo que estava em frente deles. Tinha a cercar-lhe a cabeça uma auréola brilhante e multicor; mas junto do coração do homem estavam ocultos os pés do animal: os pés de um pavão. A auréola era apenas a cauda cintilante da ave.
Continuaram a andar e ouviram vozes desagradáveis que se elevaram dos galhos das árvore; eram vozes humanas:
- Ó andarilho da Morte! Não te lembras de mim?
Eram os maus pensamentos, os maus desejos do tempo em que vivia, que lhe dirigiam aquela pergunta:
- Não te lembras de mim?
Por um momento a alma sentiu-se tomada de pavor: reconhecera as vozes, os maus pensamentos e desejos que assim se erguiam, como testemunhas em um tribunal. E exclamou:
- Na nossa carne, na nossa natureza perversa, nada existe de bom. Mas os maus pensamentos que havia em mim não chegaram a se concretizar em atos. O mundo não viu o mau fruto.
E tratou de se apressar, para escapar aquela vozeria importuna. Mas as grandes aves negras esvoaçavam em roda dela, gritando, como se quisessem dar a notícia ao mundo inteiro. A alma dava saltos, como um veado perseguido, mas a cada passo tropeçava em seixos pontiagudos, que lhe dilaceravam os pés, magoando-os dolorosamente.
- De onde vem estas pedras que cobrem a terra, como folhas secas?
- São palavras imprudentes que deixaste escapar. Elas feriram profundamente o coração do teu próximo - mais profundamente do que essas pedras te esfolam os pés?
- Eu não tinha essa intenção - disse a alma.
- Não julgues, para que não sejas julgado! - brandou uma voz nos ares.
- Todos nós pecamos - exclamou a alma, tornando a erguer-se. - Observei a Lei, obedeci ao Evangelho, fiz o que pude, não sou como ou outros...
Estavam então diante da porta do Céu, e o anjo que guardava a entrada perguntou:
- Quem és? Dize-me qual é a tua fé, e comprova-a pelos teu atos!
- Cumpri rigorosamente todos os preceitos. Humilhei-me à vista do mundo. Odiei e persegui o mal e os maus.
-És, então, um dos sequazes (pessoas que seguem outras pessoas ou alguns princípios.)de Maomé?
- Eu? Não! Jamais!
" - Todos os que tomarem a espada morrerão à espada", diz o Filho. Tu não tens a sua crença. Serás, talvez, um filho de Israel, que dirá, como Moisés: " Olho por olho dente por dente!" Um filho de Israel, cujo Deus zeloso é o deus somente do teu povo?
- Sou cristão!
- Não o reconheço nem na tua fé, nem nos teus atos. A doutrina de Cristo é feita de reconciliação, amor e graça.
- Graça! - ecoou a voz pelo espaço infinito.
Abriu-se a porta do Céu, e alma adejou para ir ao encontro daquela magnificência.
Mas a luz que dela irradiava era tão penetrante, tão deslumbrante, que a alma recuou, como se tivesse diante de si um gládio, desembainhado. Soavam melodias tão suaves e tão comoventes, como nenhuma voz humana poderia desferir. A alma, tremendo, foi-se abaixando cada vez mais. Mas a claridade celestial penetrou-a, e ela sentiu e percebeu o que jamais sentira com tamanha força: o peso do seu orgulho, da sua dureza e dos seus pecados - fez-se a luz no íntimo do seu ser.
- O que realizei de bom no mundo foi porque não pude proceder de outro modo: mas o mal que fiz...esse vinha de mim mesmo!
E a alma, ofuscada pela luz celeste, tão pura, caiu desmaiada: toda enovelada em si própria, abatida, estava ainda imatura para a benção do Céu. E, lembrando-se do Deus severo e justo, não se atrevia a murmurar:
- Graça!
E foi então que veio a graça - a graça que não esperava!
O céu de Deus enchia o espaço infinito; o amor de Deus pulsava em todo ele, abundante e inesgotável. E as vozes cantaram:
- Ó alma humana! Torna-te compassiva, santa, magnífica e eterna!
E todos nós - todos nós recuaremos tremendo, no último dia de na nossa vida terrena, como aquela alma; recuaremos tremendo, diante do esplendor e da magnificência do Reino Celestial; cairemos profundamente; havemos de nos prosternar em humildade. E todavia seremos erguidos pelo Seu amor, sustentados pela Sua graça. Esvoaçando por novas veredas, purificados, melhores e mais nobres, cada vez mais próximos da magnitude daquela luz, por ela fortalecidos, seremos capazes de subir até a eterna claridade!
FIM
quinta-feira, 12 de janeiro de 2017
O HOMEM DE NEVE - CONTOS DE ANDERSEN
Faz um frio tão agradável que todo o meu corpo está dando estalinhos! - dizia o homem de neve. - E este vento até anima agente. Mas olhem só aquele homem de brasa, como arregala os olhos. Pois sim! Vou segurar bem os meus caquinhos de telha!
Era o sol, que ia declinando e não tardava a se esconder.
E é que o homem de neve tinha no lugar dos olhos dois caquinhos de telha; a boca era um velho ancinho, de sorte que podia mesmo dizer que tinha dentes.
Nascera no meio das brincadeiras dos meninos, que celebraram a sua aparição com repiques de guizos e estalidos de chicotes.
Entrou o sol e apareceu a lua cheia - grande, redonda, brilhante e linda no céu azul.
- Lá vem ele agora do outro lado! - disse o homem de neve, pensando que era o sol que tornava a aparecer. - Acho que lhe dei uma lição, porque já não me encara do mesmo jeito. Pois que fique pendurado lá em cima, e me dê luz para que eu possa enxergar! Que bom se eu soubesse andar! Um passeio seria coisa deliciosa...Se eu pudesse, iria escorregar no gelo, lá embaixo, como aqueles meninos. Mas nem sequer sei caminhar!
- Vau! Vau! Vau! - latiu o velho cão, lá no pátio. Estava rouco, e já não podia dizer Au! Au! Au1 - como os outros cães. Apanhara aquela rouquidão no tempo em que vivia dentro de casa, e passava o dia deitado ao pé da chaminés. Mas assim mesmo continuou:
- Daqui a pouco, o sol te ensinará a correr...Vi como ensinou o teu parente, no inverno passado, e a todos os que vieram antes dele, anos atrás. Vau! Vau Vau! Todos eles lá se foram!
- Não te entendo bem, amigo. Queres dizer que aquele lá de cima vai ensinar-me a correr? Pois olha, quem correu foi ele, quando o encarei energicamente! E agora vem voltando devagarinho, do outro lado.
- Como é ignorante! Não é admirar, pois que mal acabas de nascer...Aquela que vês lá em cima agora é a lua; e o que viste caminhar há pouco e já foi embora é o sol. Amanhã há de voltar, e fica certo de que te ensinará a correr para a sargeta! Não tarda a mudar o tempo. Sei disso, pela dor que sinto na perna traseira, a esquerda...É ...o tempo vai mudar!
- Não entendo o que ele diz - pensou o homem de neve - mas pressinto que me fala de coisas desagradáveis. Aquele que me olhava tanto, e que foi embora é o sol, como lhe chama ele - também não é meu amigo: tenho esse pressentimento!
- Vau! Vau! - ladrou o cão.
E deu três voltas, e deitou-se a dormir no seu canil.
Mudou, de fato, o tempo. Pela manhã, espesso nevoeiro encobria toda a região. Soprou depois um vento glacial, e o frio aumentou; parecia tolher os movimentos das pessoas. Mas quando saiu o sol - oh! que esplendor! - Árvores e arbustos, cobertos de flocos de neve, formavam um bosque de coral branco; todos os galhos e raminhos estava coalhados de flores de alvura deslumbrante. Os galhinhos e talos, que no verão ficam completamente encobertos pela folhagem densa, apareciam agora: era um tecido rendilhado, como teia de aranha alvíssima, toda polvilhada de reflexos de luz. O videiro agitava os galhos pendentes ao sopro do vento: tinha vida, como no verão. Era um quadro magnífico!
Quando rompeu o sol, tudo resplandeceu e faiscou; dir-se-ia que alguém andara semeando pó de diamante pela imensa alfombra de neve.
- Que maravilha! - disse uma jovem que entrou no jardim, companhada de um mancebo.
Pararam junto do homem de neve, contemplando, cheios de admiração, as árvores acesas de mil reflexos. E a moça, radiante de alegria, continuou:
- Nem no verão vi paisagem tão linda!
- Mas também só no inverno se pode ter um rapagão como este - disse o moço, apontando para o homem de neve. - E está muito bem-feito!
Ela riu, cumprimentou o "rapagão", e afastou-se com o mancebo; e a neve rangia sob os seus passos, como se caminhassem sobre polvilho.
- Quem são aqueles? - perguntou o homem de neve ao cão. - Estás aqui há mais tempo; não os conheces?
- Ora se conheço! Ela me acariciou o pelo mais de uma vez, e ele me atirou um osso com restos de carne. Nunca hei de morder a nenhum deles!
- Mas quem são, afinal? - insistiu o homem de neve.
- São noivos. Em breve viverão no mesmo canil, e roerão o mesmo osso. Vau! Vau!
- Então são criaturas como eu e tu?
- São da família do meu senhor. Quem nasceu ontem não pode mesmo saber grande coisa! Bem se vê isso contigo...Eu tenho anos e anos de idade, e de experiência. Conheço toda a gente da casa, e até já conheci dias melhores - no tempo em que não me acorrentavam aqui no frio. Vau! Vau! Vau!
- Mas se este frio é magnífico! - disse o homem de neve - Vamos, conta, conta! Mas para com essa corrente que me faz tremer todo o corpo.
- Vau! Vau! Vau! - começou o cão. - Dizem que dantes eu era um cachorrinho muito bonito. Dormia então em uma cadeira forrada de veludo, e andava no colo da dona da casa. Beijavam-me o focinho, e enxugavam-me as patas com um lenço bordado. Chamavam-se Fiel - lindo e querido Fiel. Mas fui crescendo, e fiquei muito grande para andar no colo; deram-me à aia, e passei a viver no porão. Daí onde estás se vê a janela. Dá uma espiadela, e verás a morada onde um dia fui amo!Porque amo é o que eu era, na morada da aia. Os quartos não são tão grandes como lá no sobrado, mas ainda assim se vive ali com comodidade, e é mais agradável: não havia em roda de mim crianças a me sacudirem e darem puxões. E a comida era tão boa, ou melhor ainda. Tinha minha almofada - só minha - e havia na sala uma estufa, a melhor coisa do mundo, num tempo destes. Deitava-me debaixo dela a todo comprimento. Ah! Ainda sonho com aquela estufa! Vau! Vau! Vau!
- E é bonita, a tal estufa: Serás parecida comigo?
- Nem de longe! É exatamente o contrário. Ela é bem pretinha, e tem um pescoço comprido, comprido, que vai acabar na parede. Come tanta lenha, que até lhe saí fogo pela boca, em faíscas. A gente se chega, para ao lado dela, ou embaixo, e tem uma sensação muito agradável. Quem sabe se poderás vê-la daí?
O homem de neve olhou a viu uma coisa brilhante, parecida com aquilo que o cão acabava de descrever.
- E por que a abandonaste? - perguntou ele. - Como pudeste deixar um lugar tão bom?
Tinha uma vaga suspeita de que a estufa era uma criatura feminina.
- Ora, foi à força - explicou o cão. - Enxotaram-me da casa, e amarram-me aqui, nesta corrente. Não vê que eu mordi a perna do fidalguinho, filho do amo, porque me tirou com um pontapé, o osso que estava roendo. "Osso por osso!" pensei eu. Eles lá, porém consideraram isso de outra maneira, e desde esse dia fiquei acorrentado. Perdi até a voz. Não vês como estou rouco? Vau! Vau! Vau! Nem posso mais falar como outros cães...Vau! Vau! Vau! E foi assim que acabou o caso.
Mas o homem de neve já nem ouvia o que o outro contava. Olhava pensativo, para o porão, para a habitação da aia; lá estava a estufa, tesa sobre os quatro pés de ferro. E era da altura dele
- Que batidas esquisitas sinto no peito! - disse ele. - Não poderei jamais entrar ali? Não chegarei ao pé da estufa? É um desejo taõ inocente...E tenho certeza de que se realizam todos os desejos inocentes. Quero descansar meu coração naquela estufa! E hei de entrar para vê-la, nem que tenha de quebrar a vidraça!
- Nunca entrarás lá - disse o cão. - E, se chegares perto da estufa, então sim, que és homem morto! Vau! Vau!
- Mas seja estou mais morto que vivo...Acho que estou desabando!
O homem de neve passou o dia inteiro olhando pela janela; ao escurecer, a casa pareceu-lhe ainda mais atraente. A estufa brilhava com uma luz suave - não como a da lua, nem como a do sol - um luz como só a estufa pode irradiar, quando lhe dão alimento. Quando se abria a porta da sala, e la deitava chamas pela boca, como fazem todas as estufas. E aquele chama vermelha ia refletir-se no rosto pálido e no peito do homem de neve, banhando-o de uma cor rosada.
- Não posso esperar mais! - exclamou ele. - Que linda está ela, pondo assim a língua!
Comprida foi a noite, mas o homem de neve a não a achou longa: passou-a em um sonho, perdido em pensamentos agradáveis, e tão frios, que davam estalidos.
No dia seguinte os vidros das janelas amanheceram empanados pelo gelo, que cristalizara nas flores mais fantásticas que um homem de neve poderia imaginar; mas essas flores mesmas impediram que se visse a estufa.
Iam passando as horas, e não se derretia o gelo das vidraças. Viu-se o homem de neve privado de contemplar a estufa, que tinha de ser, segundo imaginava, uma graciosa dama. Era na verdade aquele tempo de frio glacial o que mais poderia agradar a um homem de neve, e contudo não se alegrava no meio do frio. Como havia de viver feliz, se morria de saudade da estufa, que não podia mais avistar?
- É doença muito perigosa para um homem de neve - declarou o cão. - Também padeci dela, mas escapei. Vau! Vau! Vau! ...O tempo vai mudar.
E mudou mesmo: começou o degelo, E à medida que a temperatura subia, ia-se derretendo o homem de neve. Nada dizia - nem uma queixa lhe saía do corpo, era esse o sintoma mais seguro.
Uma manhã desmoronou-se; e no lugar que tinha ocupado, só via agora uma espécie de cabo de vassoura: a vara que os meninos tinham cravado no chão para sustentar a neve, que lhe iam amontoando em roda, até dar-lhe a forma final.
- Ah! Agora compreendo por que o atormentava aquele desejo tão profundo!" - disse o cão. - Ataram à vara, uma daquelas pazinhas que a gente usa para avivar o fogo da estufa. O coração do homem de neve era um atiçador! Não admira. Pois que suspirasse pela estufa daquele jeito! Agora...agora está tudo acabado! Vau! Vau! Vau!
Não demorou a chegar também o fim do inverno.
- Vau! Vau! Vau! - latia o cachorro, com o seu vozeirão rouco.
Mas enquanto ele ladrava, as meninas da casa cantavam:
" Salgueiro, tira essas luvas,
Tira essas luvas de lã!
Solta o teu canto, calhandra!
Sai da casinha, avelã!
" Vem chegando a primavera,
Canta o cuco alegremente.
E eu canto ao sol que desponta:
- Vem o sol, alegra a gente!"
E ninguém mais se lembrava do homem de neve.
FIM
domingo, 8 de janeiro de 2017
HOLGER. O DINAMARQUES - CONTOS DE ANDERSEN
"Existe na Dinamarca um velho castelo chamado Kronborg; ficava perto do Estreito de Oeresund, onde se viam diariamente passar grandes navios ingleses, russos e prussianos. E nunca deixavam de saudar o velho castelo com seus canhões: " Buuum! E o castelo respondia: !Buuum!
" E a como se dissessem: " Bom dia! e " Obrigado!"Mas durante o inverno não passava nenhum barco a vela, porque o Sund está nesse tempo coberto de gelo, e transforma-se em uma larga estrada que vai da Dinamarca à Suécia; as bandeiras dinamarquesa e sueca flutuam bem alto, e dinamarqueses e suecos por ali vão e vem, a pé e de carro; encontram-se e trocam cumprimentos: ! "Bom dia! " e "Obrigado!" Não com tiros de canhão, mas com uma aperto de mão, caloroso e amável. E compram pão de trigo e biscoitos uns dos outros - porque a gente sempre pensa que o pão estrangeiro é melhor.
"Mas a glória da paisagem ainda é o velho Kronborg; e lá embaixo, naquelas cavernas escuras e temerosas, das quais homem algum pode aproximar-se, está sentado Holger, o Dinamarques. Vestido de ferro e aço, descansa a cabeça nos braços vigorosos; a longa barba cai sobre a mesa de mármore, na qual parece ter-se enraizado. Ali ele dorme e sonha, e nos seus sonhos vê que tudo continua bem na Dinamarca. Na véspera de Natal desce ali um anjo de Deus, e diz-lhe que sonhou com a verdade, e que pode continuar a sonhar, porque a Dinamarca não corre perigo. Mas se alguma coisa a ameaçar, então Holger, o Dinamarquês, se levantará em toda a sua força; e quando ele desprende a barba, a mesa de mármore se parte em duas! Então ele sairá à frente, e combaterá de tal modo que a sua fama há de reboar por todos os países do mundo!"
Tudo isto ouviu uma noite um meninozinho, da boca do seu avô; e o menino tinha certeza de que tudo o que o avô dizia era verdade. Acontece que o velho era entalhador, desses que tem por ofício esculpir figuras de madeira para enfeitar a proa dos navios, e enquanto falava com a criança, ia cortando uma grande figura, que pretendia representar Holger, o Dinamarquês. Lá estava ele com sua longa barba, altivo de combate, e tendo a outra apoiada na cota d'armas dinamarquesa.
E o velho avô contou tantas anedotas a respeito de vários homens e mulheres célebres na História da Dinamarca, que afinal o menino começou a imaginar que ele devia saber tanto como o próprio Holger, o Dinamarquês - porque não sonhava senão com aquelas coisas. E já na cama, o menino pensava nas histórias que tinha ouvido, e apertando o queixo contra a colcha, imaginava que também ele tinha uma longa barba, e que ela se tinha enraizado na cama.
Mas o velho avô ainda estava sentado ao trabalho esculpindo a cota d'armas dinamarquesa; quando a viu terminada, olhou para a figura inteira e pôs-se a pensar em tudo quanto tinha ouvido, e lido, e contado naquela noite ao rapazinho. Inclinando a cabeça, limpou os óculos e tornou a colocá-los sobre o nariz, dizendo:
- Sim, Holger, O Dinamarquês, não virá, certamente, no meu tempo; mas aquele menino que lá está na cama, esse talvez o veja, e se ponha ao seu lado na hora da necessidade.
E o velho avô tornou a agitar a cabeça; e quanto mais olhava para o seu Holger, mais se persuadia de que era uma boa figura, a que tinha feito. Chegava quase a imaginar que tinha cor, e que a armadura brilhava como aço e ferro verdadeiros; os corações nas armas dinamarquesas iam ficando cada vez mais vermelhos, e mais vermelhos, e os leões, com suas coroas de ouro, saltavam para a frente com fúria - assim lhe parecia - enquanto olhava para eles. E o homem dizia:
- É esta certamente a mais bela cota d'armas do mundo! Os leões significam força, e os corações simbolizam amor e humildade.
Olhou para o leão de cima e lembrou-se do Rei Canuto, que submeteu a orgulhosa Inglaterra ao trono da Dinamarca. Olhou para o segundo leão e lembrou-se de Valdemar, que reuniu os Estados dinamarqueses em um só, e venceu os Vendos. Olhou para o terceiro leão e pensou em Margarida. Olhou para os corações vermelhos, que lhe pareceram ainda mais resplandecentes do que nunca; tinham-se transforado em chamas movediças, e seus pensamentos foram seguindo essas chamas, uma por uma.
A primeira levou-o a uma masmorra estreita e escura, onde jazia uma prisioneira - uma formosa mulher. Era Eleonora Ulfeld, a filha de Cristiano IV; a chama descansou-lhe no peito, e brotou em uma rosa sobre o coração da mais nobre e melhor de todas as dinamarquesas.
- Sim - disse o velho avô - isto é um coração no estandarte da Dinamarca!
E seus pensamentos seguiram a segunda chama, que o levou ao mar, onde troavam os canhões, e os navios estavam envoltos em nuvens de fumaça; e a chama descansou, como a insígnia de uma ordem de cavalaria, sobre o peito de Hvitfeldt, justamente no momento em que, para salvar a frota, ele fazia explodir o navio, perecendo com ele.
E a terceira chamam levou-o as miseráveis cabanas da Groenlândia, onde estava o Pe. Hans Egede, que tinha amor nas palavras e as ações; e a chama brilhou como uma estrela sobre o seu peito, mostrando o terceiro coração do pavilhão dinamarquês.
E os pensamentos do avô precederam a quarta chama, porque ele bem sabia onde ia dar aquela tocha suspensa. No aposento solitário da camponesa estava Frederico VI, escrevendo seu nome com giz nos barrotes; a chama tremulou ao redor do seu peito, tremulou no
seu coração - foi naquela cabana de camponês que o seu coração se tornou um coração para as armas da Dinamarca. E o velho avô enxugou os olhos, porque tinha conhecido e servido o Rei Frederico, de cabeleira branca e olhos azuis cheios de bondade; e cruzou as mãos e ficou olhando para a frente, em silêncio. Nesse momento entrou a nora do velho, para lhe lembrar que era tarde, que ele devia descansar, e que a mesa da ceia estava posta.
- Mas que linda figura o senhor esculpiu! Holger, o Dinamarquês, e a nossa velha cota d'armas completa! Parece-me que já vi este rosto!
- Não, não o viste - replicou o velho - mas eu o vi, e procurei esculpi-lo na madeira, exatamente conforme o tenho de memória. Foi no dia dois de abril, quando a frota inglesa estava fora da costa, e nós provamos que éramos verdadeiros dinamarqueses da velha raça! Eu era do esquadrão de Stteen Bille; estava no convés do Dinamarca. A meu lado estava um homem - pois parecia, na verdade, que as balas de canhão o temiam e evitavam!
E ele cantava os antigos e lindos cantos da batalha e atirava e combatia com tamanha alegria, que não parecia um ser mortal. Ainda me lembro do seu rosto até hoje; mas de onde veio ou para onde foi, não o sei; em verdade, ninguém o sabia. Tenho pensado muitas vezes que devia ser o próprio Holger, o Dinamarquês, que veio nadando de Kromborg para nos ajudar na hora do perigo. É talvez somente ilusão minha...seja como for, aqui está a sua imagem.
E a figura projetou sua sombra enorme na parede, e foi até o teto; e a sombra parecia mover-se, como se o verdadeiro Holger estivesse vivo, ali no quarto...A mulher de seu filho beijou-o, e levou-o para a grande poltrona ao pé da mesa; e ela e o marido - que era filho do velho e pai do menorzinho que estava na cama - sentaram-se para cear. E o velho falou todo o tempo dos leões dinamarqueses, e dos corações dinamarqueses e da força e cavalheirismo que eles simbolizavam. E explicou como havia outra espécie de força, inteiramente diferente da que repousa na espada; e apontava para a estante onde estavam alguns livros velhos; muito lidos e usados, entre os quais as comédias de Holberg - aquelas comédias que a gente lê e relê, e ainda torna a ler, porque são escritas com tal encanto que os caracteres nelas descritos nos parecem pessoas com quem temos vivido a vida toda.
- Vocês vêem, pois, que também ele sabia esculpir - observou o velho. - Podia esculpir o humor e os caprichos das pessoas.
E, acenando com a cabeça para o espelho, sobre o qual se achava o almanaque com a " Torre Redonda" na capa o velho continuou:
- Tycho Brahe também...também era um dos que usaram a espada - não para cortar carne e ossos humanos, mas para abrir uma larga estrada entre todas as estrelas do céu! E então aquele cujo pai era de meu ofício, o filho do velho entalhador, aquele que tinha ombros largos e cabeleira branca, aquele que eu mesmo vi, aquele cuja fama se espalhou por todos os cantos da terra! Esse, tão certo como estar eu aqui, podia esculpi na pedra...eu posso apenas esculpir na madeira. Ah! Sim! Holger, o Dinamarquês, nos auxiliou por muitos meios, para que o mundo inteiro possa ouvir falar na força da Dinamarca! E agora...vamos beber à saúde de Bertel Thorwaldesen?
Mas o rapazinho que estava na cama tinha distintamente diante dos olhos o antigo Castelo de Kronborg, pairando isolado acima do Estreito de Oeresund, e via o verdadeiro Holger, o Dinamarques, nas cavernas subterrâneas, com a barba firmemente enraizada na mesa da mármore, e sonhando com tudo o que acontece no mundo acima dele. E Holger, entre outras coisas, sonhou com o quartinho estreito e modestamente mobiliado, onde estava o entalhador; ouviu o que ali se disse, e, em sonhos, acenou com a cabeça, dizendo:
- Sm, meu bom povo dinamarquês! Lembra-te sempre de mim! Estou contigo em espírito! Não deixarei de vir quando chegar a tua hora de necessidade!
E o sol rutilava nas torres do Kronborg,e o vento levava as notas das trompas dos caçadores pelos países vizinhos, e os navios passavam e saudavam o castelo -" Buuum! Buuum! - e o Kronborg respondia -- " Buuum! Buuum!"
Mas por mais alto que os canhões digam coisa muito diferente, para que ele acorde; mas ele acordará quando for necessário, porque em Holger, o Dinamarquês, residem o valor e a força!
FIM
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