domingo, 6 de novembro de 2016

AS FLORES DA IDINHA - CONTOS DE ANDERSEN

  Pobrezinhas da minhas flores! - exclamou Idinha. - Morreram...Tão lindas que estavam ontem! E agora, com todas as pétalas caídas! Por que ficaram assim?
   Indagava isto do estudante, que estava sentado no sofá. Estimava-o muiTo, porque ele sabia contar as histórias mais bonitas do mundo, e também recortar bonecas de papel, tão graciosas: corações, com dançarinas dentro; flores, castelos com portas que a gente podia abrir e fechar. Era um estudante muito alegre, aquele. E ela tornou a perguntar, mostrando-lhe o ramo, já murcho:
   - Por que estão hoje as minhas flores assim desmaiadas?
  - Não sabes, o que aconteceu? As flores foram ao baile esta noite, por isso estão abatidas.
    - Mas as flores não podem dançar! - gritou a menina.
   - Não pouco! Quando escurece, e nós estamos dormindo, elas se põem a pular alegremente; quase todas as noites as flores vão ao baile.
   - E as crianças também podem ir ao baile delas?
  - Podem, sim; as margaridinhas pequeninas, e os lírios do vale, todas dançam.
  - Mas onde é que elas dançam?
     - Ora, quando sais das portas da cidade não vês aquele enorme castelo onde o rei passa o verão, e em cujo jardim há toda a casta de flores? Não tens visto os cisnes, que se aproximam nadando, quando a gente lhes atira migalhas de pão? Pois ali, organizam-se bailes esplêndidos!
   - Ontem ainda estive com a mamãe - disse Idinha - mas não há uma única folha nas árvores, nem uma só flor no jardim. Que fim levaram? Havia tantas, no verão...
   - Estão dentro do castelo. Assim que o rei e a rainha voltam para a cidade, as flores abandonam imediatamente o jardim e vão divertir-se no castelo. Queria que a visses! As duas rosas mais viçosas sentam-se no trono: são o rei e a rainha. Os amaranto vermelhos enfileiram-se aos lados, e saúdam com toda a reverência: são os camaristas. Vão chegando todas as outras flores, e começa o baile. As violetas azuis representam os guardas- marinha, e dançam com jacintos e açafrões, aos quais tratam de " senhoritas". As tulipas e os lírios de alto talo são damas respeitáveis, que vigiam para que todos dancem á vontade, e todas as coisa estejam em ordem.
  - Mas ninguém ralha com as flores, por dançarem assim no palácio do rei? - indagou Idinha.
   - A verdade é que ninguém o sabe. É certo que lá uma ou outra vez o mordomo do castelo, que lá fica de guarda, entra durante a noite; mas no que as flores ouvem o tinido das chaves que ele carrega, calam-se e tratam de se esconder por detrás das cortinhas, e só ficam de fora as cabeças. O velho diz lá consigo: " Estou sentindo perfume de flores por aqui!" Contudo não as pode ver em, parte alguma.
  - Mas isto é uma coisa magnífica! - disse Idinha, batendo palmas. - E eu também posso ver as flores?
  - Podes, sim. Quando fores lá outra vez, lembra-te de espiar pelas janelas, que hás de vê-las. Hoje andei por lá e olhei para dentro; vi um grande lírio amarelo, recostado no sofá, espreguiçando-se todo; era uma dama da corte.
  - E as flores do Jardim botânico também vão ao baile? Elas podem ir tão longe?
  - Sim, sim! Elas podem voar, quando querem ir. Não vês essas lindas borboletas - branca, amarelas e vermelhas? Não parecem flores? Pois é o que ela eram mesmo. Agitaram tanto as pétalas no ar, como se fossem asas pequeninas, que se desprenderam do caule e saíram voando. Depois que já sabem voar bem, elas obtêm licença para esvoaçar durante o dia, e não voltam a ficar espetadas nas hastes, e assim as pétalas acabam por se virar em asas verdadeiras. Tu mesma já o tens visto. Mas é possível que as flores do Jardim Botânico não tenham estado nunca no castelo do rei, e nem saibam mesmo que lá se celebram essas festas noturnas. E vou dizer-te agora uma coisa: podes causar uma grande surpresa ao professor de botânica que mora aqui ao lado. Tu o conheces, não é? Pois bem; quando fores ao seu jardim, conta a uma das flores de lá que todas as noites há uma grande festa no castelo; a flor dirá logo o segredo às outras, e todas voarão para lá, de modo que quando o professor voltar ao jardim não encontrará nenhuma! E nunca poderá saber o que aconteceu!
   - Mas como há de a flor contar à outras, se as flores não falam?
  - Sim: falar não falam mesmo; mas entendem-se por sinais. Nunca notaste que, por mais leve que seja a brisa, as flores se voltam umas para as outras, e movem as pétalas? Pois entendem-se tão bem por esse meio como nós com as palavras.
  - E o professor entende os sinais delas?
  - Sim, entende. Uma manhã ele desceu ao jardim e surpreendeu uma urtiga a fazer sinais com as folhas para um cravo vermelho. Dizia-lhe que era tão encantador, que ela, a urtiga, estava apaixonada por ele. Mas o professor não gostou daquilo e bateu-lhe nos dedos - isto é, nas folhas da urtiga. Ora, os dedos dele é que ficaram ardendo, porque a urtiga queima; e desde esse dia nunca mais ele chegou perto dela.
   - Que coisa engraçada! - dizia Idinha, rindo de contentamento.
   - Mas como podes meter semelhantes asneiras na cabeça de uma criança? - perguntou então o Conselheiro, que estava de visita, e também sentado no sofá.
   Já se vê que era um homem prosaico, e não podia suportar o estudante; e sempre resmungava, quando o via recortar suas figuras tão divertidas e grotescas; ora um homem pendurado na forca, com um coração na  mão - porque era um ladrão de corações - ora uma bruxa montada em uma vassoura, e com o marido espetado na ponta do nariz. E, sem poder conter-se, de tão zangado, o sisudo cavalheiro saía sempre com o mesmo argumento:
   - Mas como é possível meter semelhantes tolices na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas, nada mais!
   Sem embargo, Idinha achou muito divertido tudo o que lhe contou o estudante a respeito das flores, e meditou muito no caso.
   As flores baixavam a cabeça porque estavam exaustas, de dançar a noite inteira; sentiam-se, talvez, até doentes. Levou-as, pois, para junto dos outros brinquedos, que guardava em cima de uma linda mesinha, cuja gaveta estava cheia de coisas bonitas. Dormia a boneca Sofia em uma caminha, e Ida disse-lhe:
   - Anda, Sofia, levanta-te imediatamente; terás de dormir esta noite na gaveta. As coitadas das flores estão doentes, e precisam da tua cama; talvez isso lhes faça bem.
    E, sem maiores considerações, tirou-a da caminha; a boneca aborreceu-se tanto que não disse uma palavra: não lhe agradava nada ter de ceder seu leito!
   Ida deitou então as flores na caminha da boneca cobriu-as bem com o cobertor, recomendando-lhes que não se mexessem; que ia trazer-lhes chá, e no dia seguinte já estariam curadas, e poderiam levantar-se. Correu o cortinado, para que o sol não lhes desse nos olhos.
   Durante o dia não pode deixar de pensar no que lhe contara o estudante, e antes de se deitar foi olhar, através das cortinas da janela, para as flores preciosas da mamãe - narcisos e tulipas; e disse-lhes baixinho:
   - Agora já sei onde vão vocês: ao baile!
   As flores fingiram que não e entendiam, mas a Idinha sabia bem de tudo.
  Já deitada, ficou a pensar no baile das lindas flores, no castelo do rei: seria lindo, se pudesse presenciá-lo! E perguntava consigo:
   - Será possível que minhas flores tivessem estado lá?
    Adormeceu, e mais tarde despertou, justamente quando sonhava com as flores e com o estudante, que o homem respeitável havia repreendido. E dizia:
   - Minhas flores ainda estarão dormindo na cama da Sofia? Quem me dera sabê-lo!
    Soergueu o corpo, olhando para aporta, que ficara entreaberta. Lá do outro lado estava as flores e os brinquedos. Escutou um momento, e apareceu-lhe que tocavam piano na outra peça, mas o som que ouvira era muito baixinho, e tão suave, como jamais ouvira.

                                                


                                                     


  - Com certeza minhas flores estão a esta hora dançando - pensou ela. - Quem me dera vê-las!
  Contudo não ousava levantar-se, receando despertar os pais.
   - Ah! Que bom se e elas entrassem aqui!
   Mas as flores não entraram no quarto, e a música continuava; era deliciosa. Oh! Era muito bonito...Não podia resistir àquela tentação! Saltou do leito, foi até a porta, na ponta dos pés e espiou pela fresta. E que quadro engraçado o que viu! Não havia luz, mas via-se tudo muito nitidamente; a luz,  que iluminava o quarto, brilhava quase tanto como luz do dia. Os jacintos e os narcisos formavam duas grandes filas; tinham todos abandonado o peitoril da janela, deixando lá somente os canteiros vazios. As flores, aos pares, executavam danças graciosas formavam figuras, segurando-se mutuamente pelas grandes folhas verdes, enquanto giravam agilmente. Ao piano estava sentado um grande lírio amarelo, que Ida julgava já ter visto naquele verão. Sim, lembrava-se bem de ouvir o estudante dizer:
   - Que lírio parecido com a dona Lina!
  Todos tinham rido deste dito; mas agora Ida via que de fato havia grande semelhança entre a flor e a moça: tocava da mesma maneira, sorrindo e voltando o rosto dourado ora para um lado ora para outro, e acompanhando o compasso com a cabeça. Ninguém olhava para a Idinha, mas a menina bem viu um grande açafrão subir de um salto para a mesa, onde estavam os brinquedos; chegou-se à cama da boneca e puxou o cortinado. As flores doentes ergueram-se imediatamente, fazendo sinais para as outras, indicando que também queriam tomar parte no baile. O velho quebra-nozes, em forma de boneco, cujo queixo estava partido, levantou-se para cumprimentar, com a maior cortesia, as belas flores, que já não pareciam nada doentes; sentiam-se tão animadas que saltaram para o chão, para se divertirem com a outras.
  Ouviu-se então um ruído, como se alguma coisa tivesse caído da mesa. Ida olhou para aquele lado e viu que era o cetro da Folia, que recebera no carnaval, e que saltara para o chão, como se também fosse flor; e estava muito elegante: tinha na ponta uma bonequinha de cera, com um chapéu de aba larga, como do Conselheiro rabugento. e dava saltos entre as flores, batendo ruidosamente com seus três tamanquinhos vermelhos, pois dançava a mazurca, uma dança que as flores não executavam, porque eram muito delicadas: não poderiam produzir aquele barulho do sapateado.
   Mas de repente a bonequinha de cera, que rematava o cetro, começou a crescer, e, erguendo-se acima das flores de papel que o adornavam disse:
   - Mas como é possível meter semelhante tolices na cabeça de uma criança? São fantasias estúpidas, e nada mais!
   E a boneca de cera parecia-se naquele momento com o Conselheiro, com  seu chapéu de aba larga - tão rabugenta e tão amarela como ele. Mas as flores de papel bateram-lhe nas perninhas delgadas e ele tornou a encolher-se , e ficou de novo a bonequinha de cera. Diante de espetáculo tão divertido, não pode Idinha conter o riso. O cedro continuava dançando, e o Conselheiro viu-se obrigado a fazer a mesma coisa, sem poder livrar-se daquilo: ora crescia e  engordava, ora se reduzia à forma da bonequinha de cera amarelente, com um chapéu preto, de abas largas. Afinal as outras flores, principalmente as que tinham descansado na cama da boneca, intercederam em favor dele, e o cedro cedeu. Nesse momento ouviu-se uma forte pancada dentro da gaveta onde estava deitada Sofia, a boneca de Ida. O quebra-nozes correu, deitou-se na beira da mesa, abriu bem o queixo, e assim foi puxando a gaveta devagarinho. Sofia ergueu a cabeça, olhou, muito admirada, para a sala, e disse:
   - Parece que há baile aqui hoje! Como não me disseram nada?
    - Queres dançar comigo? - perguntou o quebre-nozes.
  - Olha só que par, para dançar comigo! - disse a boneca, virando-lhe as costas.
  E o sentou-se na beira da gaveta, esperando que alguma flor fosse convidá-la para dançar. Não a convidavam, e ela pôs-se a tossir:
   - Quef! Quef! Quef!
   Nem assim apareceu flor alguma. Enquanto isso o quebra-nozes dançava sozinho; e não era mau dançarino, por sinal.
    Como as flores não lhe davam atenção. Sofia deixou-se cair no soalho, fazendo grande barulho; então todas elas correram, rodeando-a, e indagavam, solícitas, se não estava machucada. Mostraram-se todas muito atenciosas, especialmente as flores da Idinha, que tinham dormido na sua cama. Não estava machucada, não; e as flores agradeceram-lhe a cama que ela lhes emprestara. Levaram-na para o meio da sala, que o luar iluminava, e dançaram com ela, enquanto as outras flores formavam círculo. Sofia, muito satisfeita, declarou que as flores podiam continuar a dormir na sua cama, pois ela se acomodava muito bem na gaveta. Mas as flores responderam:
  - É muita bondade tua; mas nós não teremos muito tempo para nos aproveitar do oferecimento, que agradecemos cordialmente: amanhá estaremos mortas. Deves pedir à Idinha que nos enterre perto  da sepultura do canário: assim tornaremos a despertar no verão que vem, e mais belas do que agora.
   - Não, vocês não hão de morrer! - exclamou Sofia com calor, beijando as flores.
  Nesse momento abriu-se a porta e entraram na sala, dançando, muitas outras flores. Ida não sabia de onde vinham, e supôs que tinham saído do palácio do rei. Abriam a marcha duas rosas magníficas, coroadas de outo - eram os soberanos. Vinham depois os cravos mais lindos, os mais belos goivos de ouro, cumprimentando a todos os presentes. Traziam uma banda de música. Grandes papoulas e peônias sopravam em cascas de ervilhas, até ficara rubras. Os jacintos silvestres e os alvos lírios do vale repicavam, como se fossem pequeninos sinos. Era na verdade uma orquestra extraordinária! Chegaram muitas outras flores, e todas dançavam: violetas azuis e primaveras vermelhas, margaridas e lírios silvestres. E beijavam-se carinhosamente, as flores. Era lindo de ver! Afinal despediram-se umas das outras, e a Idinha também foi para a cama, sem que ninguém a visse, e sonhou com tudo o que presenciara.
   Assim que se levantou, no dia seguinte, foi ver se as flores ainda estavam na cama da boneca. puxou o cortinado e viu-as ali - mais murchas, mais abatidas do que na véspera. Sofia também estava deitada na gaveta, profundamente adormecida.
  - Não te lembras do que tens para me dizer? - perguntou a menina.
  Mas Sofia parecia muda: não disse uma palavra.
   - Ah! És muito má! E todas elas dançaram contigo!
   Foi buscar então uma linda caixinha de papelão, com passarinhos pintados na tampa, e pôs dentro dela as flores murchas dizendo:
   - É uma esquife muito bonitinho. Quando vierem meus primos da Noruega, eles me ajudarão a enterrá-las no jardim; e na primavera as minhas flores vão ressuscitar, mais lindas e mais frescas do que este ano.
   Eram os primos dois alegres meninos: Gustavo e Adolfo. O pai lhes tinha dado dois arcos novos, que levaram para mostrar à priminha; ela lhes contou a história das pobre flores mortas, e pediu-lhes que a ajudassem a enterrá-las.
   E lá se foram eles, os meninos adiante, de arco ao ombro; e a Idinha os seguia, levando a linda caixinha com a flores mortas. Beijou-as e colocou-as depois, com caixa e tudo, na pequena cova que tinham aberto. E Adolfo e Gustavo dispararam duas setas por cima do túmulo - pois que não tinham espingardas nem canhão.
FIM

Um conto longo requer tempo e dedicação. então peço, que compreendam que postarei aos poucos!

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