sexta-feira, 16 de abril de 2021

Peregrino Júnior - Gapuiador


























 O Brasil acabou lá atrás. O Brasil e o mundo . Ali é o inferno. Inferno verde? Qual o quê!  Literatura...Inferno de terra podre, de águas envenenadas, de espectros miseráveis e tristes.

   No ventre encharcado daquela terra empapada d'água onde o pelo hirsuto da floresta é povoado de bichos feios, os igapés lentos e turvos deslizam como negras jiboias de morno lombo oleoso.

  O  rebotalho humano que ali agoniza é a borra dos seringais abandonados, o resíduo imprestável da prosperidade que morreu com a borracha.

  Nasceram de um amor anônimo de acaso. São filhos da luxúria passiva das  caboclas errantes dos seringais e dos apetites recalcados dos seringueiros enfermos e dos  regatões sem pátria.

   Foi assim que arribou neste mundo Chico Domingos. Não conheceu os pais.   

             Não sabe donde veio nem para onde vai. Já depois que havia parado o corte do seringal. Seringueira pra ele é planta estéril e inútil.

    - Pra que cortá seringá? Borracha não vale  um vintém de mel coado....

   A terra, porém, não deixa ninguém morrer de fome naquele mundo de Deus; assaí, popunha, cacau não faltam no mato. E só subir o iguarapé e trepar nos paus... Na frente da barraca o peixe brinca contente no putirum das piracemas, ao alcance do anzol. O busto, porém, é amplo e rijo. E na cara linfática de empalemado, cor de tauá, onde a barba é uma penugem ridícula, os olhos miúdos são apagados e enespressivos: só servem mesmo para a função fisiológica de enxergar.

   Chico Domingos, abandonado na faiscação tropical daquele sol trepa na mata e espia da copa decotada das palmeira, fazendo caretas de luz na barriga oleosa do igarapé, não tem olhos para ver a surpresa espetacular da Natureza. 

  Indiferente a tudo, Chico Domingos, que só conhece  na vida a mais elementar das alegrias instintiva - a  alegria de comer - conseguiu no entanto um dia animar as sua pupilas opacas com uma visão de encantamento  Vicência.

  Descobriu a curiboca numa beiira de rio e engraçou-se dela.

  - Qué casá, cum eu, muié?

  - Se sinhô quisé, eu quero...

   Mas a curiboca não quis ie à cidade para casar ao padre.

   - Vá sozinho, seu Chico.

 - Mas assim o padre não casa nós...

  - Ora se casa, seu Chico!...Leve um paneiro de castanha  e uma pele de borracha, pro sacristão, seu Chico, e deixa está, que ele casa!

   A cabocla era ladina. E era simpática. Tinha vindo da cidade com um regatão, que, enjoado dela, a largara afinal  naquela beira do igarapé, onde Chico Domingos a encontrara por acaso e fortuna.

   Ela não queria ir à cidade com medo de encontrar o regatão, ou o pai, de cuja companhia o turco a tirara. Preferia ficar no sossego da mata.

   Chico Domingos desamarrou a montaria, botou dentro dela um paneiro de castanha e uma pele de borracha, e mupicou pra cidade.

  Mal chegou na igreja, o caboclo disse sem rodeios a que ia: queria se casar.

  - E a noiva?

- Ela não veio não...

  Mas foi logo mostrando ao sacristão os argumentos decisivos:

  - Eu trago aqui, mode pagá o casamento, este paneiro de castanha e esta pele de borracha, cunhado!

  O sacristão compreendei tudo - e não relutou; foi chama o vigário.

   - Ajoelhe-se, meu filho! E me diga como se chama você e sua noiva.

  - Eu me chamo Francisco Domingos de alcunha Chico; mas ela eu não sei como se chama não. È conhecida lá em riba por Vicência do Regatão.

   - E onde é que ela está? Preciso saber o rumo certo...

  - É na direitura do Igapé Grande.

   E indicou com um gesto largo a direção da sua barraca.

   O padre repetiu o nome dele e o da noiva, misturando-os com um grave palavreado de frases latinas, e tomando um ar concentrado de quem pretende varar as distâncias com o pensamento, abençoou com a mão generosa, no rumo indicado.

   O noivo, para que o casamento tivesse efeito mais seguro e o regatão não lhe pudesse mais disputar a mulher, corrigiu em tempo:

   - Seu vigário, pra via das duvidas, quebre a mão um bocado mais pra esquerda...

   E Chico Domingos e Vicência do Regatão, casados  pelo rumo, foram tranquilos na solidão verde da sua barraca.

 Tiveram um filho. O tejupar ficou mais alegre. E a miséria doméstica, que era repartida entre o casal, um cachorro e meia dúzia de xerimbabos, teve nesse dia mais um sócio: Elesbão.

   Elesbão cresceu, sapiranquento e pançudo, na mesma barraca triste daquele beiço de barranco. Aprendeu a nadar na porta da casa e na porta da casa aprendeu a remar, a pescar, a caçar  e a beber cachaça. Era o companheiro inseparável de Chico Domingos. E p ajudava que nem gente grande. Agarrado sempre com ele que só mucuim.

   A barraca escanchada na barranca desdentada do rio,  tinha todas as vantagens: água ao alcance da mão pra lavar os mulambos e as panelas; lameiro vasto para os xerimbabos; peixe farto para o anzol; e a montaria sempre amarrada à porta. Era só o trabalho de esticar o braço...

  Quando as águas baixam, que o rio no caixão, Chico chama o filho e o cachorro, pula pra dentro da montaria, rema para os aguaçús conhecidos, atira a linha  - e  tem o almoço certo. Enquanto espera que o peixe belisque a isca, toma chité e cachaça. Os mosquitos, dançando em volta dele e do curumim, azucrinam a solidão do rio com a sua canção de embalar...

   Quando o paneiro está cheio de tucumarés e aparaís, ele ruma a montaria pra barraca- chaco-chaco-chaco - em remadas rápidas, cantando com o filho, em cadência frouxa, uma canção mole e sem  sentido:


    Montaria deles é que nem asa de pássaro, ligeira e maneira. E quando um enterra o jacumã n'água, o outro  enterra também, sempre "mupicando" certo.

  A cocorada na beira do igarapé, os pés atolados no tijuco e as mãos imundas de sangue e lama. Vicência estrípa o pescado a golpes rápidos do quicé, atirando as gueiras e as víceras à fome paciente e resignada do cachorro Panema, que ao lado se coça melancolicamente, numa resignação silenciosa, sob a vaia incômoda da mosqueira importuna.

     Estirando na rede, o filho ao lado  num silêncio contemplativo de fatalismo, Chico Domingos espia pela porta aberta o igarapé que  corre manso lá fora, levando no lombo preto e luzidio a imagem decorativa das primeira estrelas... De quando em vez, passa de bubuia o garrancho florido de um matupá, onde as aves de plumagem pura navegavam tranquila rio abaixo.

   - Achí, até parece a boiúna!

 O peixe cozido na água e  sal, com um prato de pirão de farinha d'água, eis o banquete triste daquela família sem exigências e sem ambições. Só um gesto ágil tem eles na vida: é na mesa, quando atiram dentro da boca com as pontas dos dedos, os punhados gostosos de farinha d'água. Tem outro: quando amassam o " capitão" de mojica pro curumim engolir.

     Elesbão creceu tão pegado ao pai, que Chico Domingos não sabia arredar uam palha sem o filho. A montaria não se equilibrava n1água sem o peso deles dois. E o remo de Chico Domingos não tinha ritmo quando na popa de canoa não corta a água o jacumã de Elesbão.  Vicência às vezes tinha até ciúmes:

   - Chico mundiou o curumim de um jeito, chega deixou ele panema.

  Mas pai e filho só sabiam andar encangados; eram unha e carne. pareciam mais dois irmãos mangauas. Não se apartavam nunca. Onde um ia,levava o outro- fosse à pesca, fosse à caça, fosse no iguarapé, fosse na mata. È o curumim, apesar de pitorra e molongó, era um companheiro ágil, resistente e corajoso.

  O pessoal da vizinhança caçava:

   - O água-morna do Chico até pra comê precisa da ajuda do curumim!...

   Malgrado ter andado uns dias encarangado, Chico Domingos resolveu ir ao lago buscar qualquer coisas para comer. O Último repiquete do rio - arrastando na barriga inchada o lodo vermelho das 

"terras caídas" e os troncos feridos das árvores mortas - tangera o peixe pra longe. Não havia mais piracemas fervilhentas no perau do igarapé. E o terreiro da barraca não tinha mais pichhé dde peixe. A fomitura começava a apertar a barrriga da família.

   - Vamos gapuiar na mupeia lá de riba, curumim!

  Vicência espantou-se da coragem dele:

  - Você vai gapuiar, será?

  - E bem....

   Atirou no bucho vazio uma pussanga de pajauaru e cachaça, esqueceu a caruara que o botara molongó, pôs de banda  a mofineza que lhe quebrava a o corpo, chamou curumim, desamarrou a montaria  - e varou o igarapé,águas acima, em busca de peixe e castanha, que só podia encontrar nas mupeías e iguaçais das cabeceiras do rio.

    Agachado na proa da montaria, o traseiro apiado nos calcanhares, descarregando o peso todo do corpo nas pontas dos dedos dos pés, Chico Domingos vai espiando água, pra ver onde o peixe ciriringa. O curumim, na popa, de jacumã na mão, é o jacumaúba do barco, e não tem canso de lhe dar andamento e dir.

   De quando em vez, enjoado de tanto  bater água saru, Chico, arregaçando as calças, deixava a montaria e pulava e canarana, com água pelos joelhos, pra ver se mariscava alguma coisa. Perdido no meio dos matupás, só a cabeça  dele  aparecia, tesa  e calada ue nem uma imagem.

    Mas estava mesmo panema; nem o pari que eles botaram na boca da mupeúa não conseguiu dar nada que prestasse. A água estava saru: não batia nada...

   Após dois dias de luta estéril na mupeúa estorricada sem achar peixe, eles amarraram a montaria na barranca e vararam a mata em busca de alimento.Alguns cachos de assaí e uma cuia d'água lhes deram cabo da fome e da sede. Mas a bombeira era tamanha, que não tiveram  coragem de voltar pra casa. Chico domingos acamou umas folhas coma s mãos e deitou-se no chão, na sombra silenciosa da floresta, para descansar os ossos.

   - Estou tão panema, e malafento, filho, que não dou mais acordo de mim!

    - Estazinho doente , pai? Antão, vortemo pra trás!

   - É nada não, parente. Peresque lombeira da labuta.

   Mas vencido pela fadiga, derrreou o corpo no chão, pegando no sono de repente.

   Era à boca da noite. O sol se escondera por trás da mata espessa, e as estrelas que abençoavam o silêncio da solidão verde brincavam esconde-esconde no remanso das águas rasas da mupeúa.

    Elesbão, com a cara piririca de assaí, ficou vadiando perto do pai, até que a noite, coagulando sobre a mataria as sombras negras e compactas, apagou os olhos das pessoas e das coisas

   O curumim, vendo em volta de si apenas a iluminação intermitente dos caga -fogos, estremeceu num súbito calafrio e cutucou o pai, para acordá-lo.

   - Pai Chico, acorde que eu estou com, frio...

   Chico Domingos não respondeu. E Elesbão, agarrando-o pelo braço, para despertá-lo, sentiu-lhes as  carne geladas e imóveis. estava morto!

     O Curumim, engrolando na garganta seca os soluços de dor  de medo, acocorou-se ao lado do corpo, e velou-o a noite inteira.

   Mal riscou na mata a madrugada policrômica da Amazônia, sonora de pássaros e úmida de orvalho, Elesbão pulou pra dentro da montaria, tentando descer o igarapé, à procura de gente ou de socorro. Mas cedo se convenceu da inutilidade do seu esforço: não tinha mais talento pra remar e a sua inexperiência não lhe permitia navegar em rumo certo no labirinto difícil daqueles furos e igarapés, que ora se anastomosavam, ora se dicotomizavam, aqui aglutinando paranás, ali afogando florestas, numa desordem de caos.

   Receando perder-se, voltou ao lugar onde deixara o corpo do pai. Trouxe da montaria o terçado - e ali ficou, dia e noite, numa vigília macabra, velando o cadáver que apodrecia. O cheiro do corpo podre atraía urubus e bichos vorazes. Mas Elesbão, com o terçado em punho, lutava bravamente contra uns e outros, espantando-o com gritos sinistros de terror e de ódio:

   - Chô, bicho! Isto aqui não é carniça não...

   Os tapurus e as varejeiras iam desfibrando as carnes miseráveis de Chico Domingos, em cujas entranhas podres fervilhavam num alvoroço. E o menino, numa alucinação sem remédio, era o espectador único e forçado daquela cena dantesca. Devorado pelos vermes, decomposto pela podridão, o corpo de Chico Domingos, inchado e roxo, perdia a forma, estourava, desconjuntava-se, mutilava-se lentamente, com o arcabouço do esqueleto à mostra e as víscera túmidas a escorrer uma salmoura infecta.

  Os dia passavam, e o menino, no horror do espetáculo dramático, era um guarda silencioso, e resignado daqueles restos podres da sua carne e do seu sangue, que os bichos do mato incessantemente tentavam devorar e mutilar com uma voracidade aterradora. Quando a noite da mata engolia o sol, Elesbão tremia de terror, numa certeza de ver repetir-se a ameça brutal a que ja habituara os seus olhos pisados de espanto e fadiga: uma onça famélica, que uivava e ciscava furiosamente quebrando galhos no bambual com os pés ágeis e macios, que estalavam pisando os sacais.

   - Saí, condenada! - berrava, aterrado, o curumim, brandindo no ar a lâmina suja do  terçado. E o animal, acuado com os gritos desapoderados do caboclo, fugia sem fazer-lhe mal, não tocando no corpo decomposto que os vermes da putrefação iam liquidando sem pressa numa obra tenaz de destruição minuciosa e implacável.

   Estranhando a ausência prolongada do marido e do filho, que havia mais de duas semanas não davam sinal de vida. Vivência botou a boca no mundo e pediu socorro à vizinhança.

   Uma montaria partiu, com Vicência e os vizinhos, em busca do Chico Domingos e Elesbão, igarapé acima, sem rumo certo.

   Aqui, ali, numa forquilha de rio, eles paravam os remos, abicavam à beira d'água e gritava pro mato, com a mão em concha na boca:

   - Seu Chico! Oô seu Chico! ...Elesbão! Oô Elesbão!...

   E o apelo angustiado perdendo-se impotente na amplidão verde da mataria braba, fundia-se no quirir mal-assombrado e apagava-se sem eco na distância misteriosa e infinita.

  Depois de muito errarm assim à toa, varando igarapés e atravessando furos, penetrando igarapós e cortando mupeúas, ele dera d ecara inesperadamente com uma montria amrrada na ribanceira. Aproximaram-se: era a montaria de Chico Domingos e estava vzaia e abandonada.

  O grito dolçorido e trágico furou a mata com mais energia e confiança.

  - Seu chico!...Oô seu Chico! ...Elesbão!....Oô Elesbão....

   E, como um eco sinistro do outro mundo, de dentro da mata silenciosa veio como resposta apenas um soluço débil de desespero. Era Elesbão que já não tinha forças para gritar....


                FIM  ( Histórias da  Amazônia)




gapuiador
/ô/

adjetivo substantivo masculino
  1. AMAZONAS
    que ou aquele que pesca nos baixios, ao acaso.





LADINA

Significado de ladino. Esperto; que expressa muita inteligência, esperteza, agudeza de espírito. Espertalhão; diz-se da pessoa astuciosa que age desonestamente.   




adjetivo substantivo masculino
  1. 1.
    que ou aquele que regata ou regateia muito.
  2. 2.
    substantivo masculino
    aquele que compra por atacado e vende a retalho.



Paneiro de castanha




Sapiroquento
 e um adjetivo.
adjetivo é a palavra que acompanha o nome para determiná-lo ou qualificá-lo.

Os adjetivos "sapiranguento" e "sapiroquento" se aplicam aos olhos atacados de sapiranga ou sapiroca, isto é, aos olhos inflamados ou sem pestana .


substantivo masculino
BRASILEIRISMOBRASIL
  1. 1.
    animal de criação ou estimação; mumbavo.


 tejupar.

 Mucambo (cabana). Mucambo ou mocambo, palhoça ou tejupar são denominações dadas a moradias ...


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