quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Orígenes Lessa - SHONOSUKÉ Obras primas do Conto Brasileiro

 





Clemente Vidal  deixou o carro à porta do bar e entrou para um rápido aperitivo. Sempre era melhor estar ali à vontade solitário na sua mesa, do que ouvir o matracar odioso e pretensioso dos seus colegas de clubes encharutados e maledicentes. Passeou o olhar preguiçoso pela modéstia do bar, pelos bebedores esparsos, bebendo pelo gosto simples de beber, sem imposições sociais, sem determinismos elegantes.

   Surge uma figurinha amarela. Dois traços telegráficos, fingindo olhos. Uma ligeira elevação, com dois furinhos, fazendo nariz. Boca larga e branca, os dentes salientes.

   - Retrato, senhor?

  Clemente Vidal examinou-o com atenção, enquanto a figurinha estranha, sem colarinho, camisa suja, paletó enrolado, um bonezinho sobre o cabelo pretíssimo,insistia, mostrando uns calungas.

   - Retrato,, senhor?

  Clemente mediu-o com um sorriso.

  - Quanto?

  - Cinco mil-reis.

   - Faça...

   O japonesinho retirou do bolso o crayon, pôs sobre o joelho uma folha de papel, fixou um olhar apertadinho no cavaleiro elegante, e começou a riscar rapidamente no papel fumaça. Um , dois, tês riscos. Zás, zás, zás...Lá saía o homem, com a curva aquilina do nariz, as olheiras empapuçadas, o  ar desdenhosos de olhar e sorrir, o charuto grande a ajudar o jeito orgulhosos da boca.

  Enquanto riscava, Clemente Vidal o examinava. Era uma figura comum de caricaturista internacional, a cinco ou dez mil-réis a careta, desses vagabundos que se aguentem por qualquer coisa e em qualquer terra, armados com um crayon barato e uma folha barata de papel cartão.

    - Gosta, senhor?

   Clemente gostou. Pelo preço...Pela extravagância da ideia....Aquilo seria Natural num bar ou num cabaré de Paris ou de Londres. Num de São Paulo, à hora movimentada do triângulo, era uma originalidade sua que havia de ser comentada com sucesso no seu clube...

   - Você quer beber?

   - Obrigado, senhor.

   Ele insistiu. Pôs o japonesinho a seu lado, fez vir um "americano", começou a correr os outros desenhos que ele trazia, como amostra. Curiosos, um traço  interessante, uma certa originalidade, uma linha muito  pessoal. Quem seria ele? Indagou. O rapazinho informou, sumariamente com um sorriso. Filho de operários. Seis anos de Brasil. Família faminta. Antigo pasteleiro, ex- vendedor de amendoim, aprendiz fracassado de pedreiro, garção sem sucesso. Um grande amor pela arte. Sem estudos, sem dinheiro. Um amigo desesperado dos livros. Um pouquinho de inglês. Um português bastante desenvolto. Leituras. Uma coleção inútil de desenhos. Agora, como artista ambulante, geralmente almoçando e jantando, coisa  que muito tempo desconhecera.

   Clemente  Vidal, interessado, começou a ver na cara sem expressão do rapaz a possibilidade de uma blague(piada) formidável. Riquíssimo, culto, várias viagens à Europa, várias cópulas em Paris, várias bebedeiras em Roma e Veneza. Vidal era um Mecenas em São Paulo. Conhecia e discutia arte. Centenas de quadros e estátuas da sua galeira haviam alimentado muito artista patrício e  provocaram a admiração e o espanto dos amigos. Fazia  estudar dois cantores pobres em Paris, alimentava e vestia, em Roma, três futuros gênios da pintura indígena. Isso, do seu bolso.À custa do estado, quando senador precoce e preclaro, facilitara os estudos de dezenas de outros, e era olhando como pai da futura arte brasileira, como um animador , como um Médicis ou figurão da Renascença, espantosamente surgido no país da maledicência. Papai Vidal, como o chamavam. Seu nome patrocinava todas as mostras de arte, seu dinheiro financiava concertos, sua palava estimulava os estreantes, sua adega embebedava artistas, críticos e admiradores. Tudo aquilo fora feito a sério. Não estimulava por pilhéria, não animava por blague. Quando falava em arte, estrangeira e  mesmo  nacional, quando discutia cubismo, dadaísmo, futurismo, surrealismo, coisas da Rússia, de Paris ou da favela, era sempre como entendido, como autoridade, como crente. Mas olhando  aquele japonesinho, que devorava muito canhestro as empadas que fizera vir, Clemente Vidal começou a imaginar uma blague, a primeira que se aninhava nos seu cérebro desenhador prematuro. E se lançasse aquele rapaz? E se  lançasse mãos daquele garoto para pregar uma peça infinita, um bluff imortal na papalvice incomensurável do público? Vidal sabia, no fundo, que as admirações literárias e artísticas, como as glórias mais incondicionais, são efeito simplesmente da sugestão e do esnobismo.

   Ele mesmo admirara assim muita gente e fora forçado a pagar milhares de francos por obras de arte em que francamente nada havia senão uma obrigação esnobe de admirar. Era coisa assinada por fulano,por sicrano. Paris dizia que fulano era gênio. Beltrano clamara, em Roma, que sicrano compendiava e empacotava a história da arte.E lá ele e os  outros conhecedores se haviam forçados ao "colosso", "extraordinário", "genial", ao desembolso dos pacotes de liras ou de francos. Um pouco de vaidade pessoal acariciavam ainda o seu pensamento. Ele tinha prestígio. Ele era ouvido. Lançara artistas de valor. Parte por mérito seu, parte maior pelo mérito deles. Mas aquele japonesinho, sem valor pessoal, se ele o fizesse, era obra sua.pilhéria inconfundível.

  Sorria, enquanto falava o rapaz. A ideia tomava vulto. Havia de lançá-lo. Dentro de um ano, ele seria famoso, seria aclamado como gênio, venderia quadros por fortunas e então Clemente Vidal contaria a toda gente a  extensão e eo sentido da peça que pregara ao público.

   - Como se chama você?

   - Shonosuké Shini...

   - Basta Shonosuké. Não é preciso mais. Escute: Você é um grande artista. Apareça amanhã em minha casa....

   Deixou-lhe um cartão e saiu.

   Clemente Vidal vestiu o rapaz, fotografando-o antes com os seus trajes miseráveis e, antegozando a pilhéria, chamou três amigos de confiança,  contou-lhes os planos expôs a forma de ação, instalou o japonês num " atelieir" e iniciou a publicidade.

    Dias depois começaram a sair as notícias. Um jornal da tarde publicava uma longa reportagem romanceada  sobre o artista estranho e original que passara fome, que vendera pasteis, que fora garção, mas trazia em si a posse de uma arte vigorosa, fortíssima, pessoal, liberta de todos os moldes clássicos( era tão fácil quem não os conhecia...) diferentes de tudo o que faziam, de Apele a Foujita, com todos os altos e baixo da escala, todos os artistas presentes e passados.

    O jornalista era do conchavo. Agia de acordo com o plano traçado. Lançara a coisa como uma reportagem imprevista, cheia de afirmações vagas, sem responsabilidade, falando em coisas gerais,, arte pessoal, ausência de influência clássicas, fuga aos modelos, tradicionais, traço original.

      Uma semana depois vinha um crítico. dizia ter visitado o "atelier" de Shonosuké. Não se comprometia também, mas aproveitara a ocasião para desancar violentamente a arte nacional, insinuar perfídias sobre a mulher de um pintor em voga, ridicularizar a Academia Nacional de Belas Artes, e maldizer o público pela sua indiferença das coisas do espírito. Sobre Shonosuká, mesmo, pouca coisa. Mas o leitor desprevenido ficava imaginando que o artista humilde era tudo aquilo que os outros não eram.

  O diretor de um terceiro jornal, e terceiro iniciado na tramoia, aceitou logo algumas ilustrações em página nobre feitas pelo rapaz.

  Começaram a aparecer as notas de redação, as sugestões aos cronistas desprevenidos, por parte da direção. Na crônica social, na página de arte, nas mundanidades surge o nome de Shonosuké.


  Um cronista de coração sensível, sabendo-lhe das horas de fome e da origem humilde, aclamou-o, sem lhe ter visto os quadros, um futuro  Foujita, o Foujita brasileiro. O jornal tem grande circulação. O homem tem admiradores. A bobagem é lida. A frase pega.

    E Clemente Vidal e seus amigos, de acordo com a combinação prévia, começam a falar com seriedade no pintor, que trabalha com entusiasmo, inspirado e surpreso, produzindo febrilmente.

    Dentro de um ano - garantira Vidal - dentro dum ano, Shonoskè será tido como gênio por todo São Paulo...

  A profecia prometia realizar-se. Por parte pela sugestão, parte pela necessidade de agradar, toda a imensa confraria da sua galeria de arte e especialmente da sua adega começava a concordar. Comentava-se as ilustrações publicadas. Apresentações assinadas por Vidal abriram ao moço as portas de poucas revistas da cidade. Os representantes das revistas cariocas enviavam para o Rio reproduções de desenhos seus. D. fulana, d. fulaninha, que entendiam de arte, falavam com reserva, mas já falavam no japonês.

   - Ele promete...

   Quem ouvia dizer " ele promete" ia dizer mais adiante que ouvira: "ele é um colosso".

   E os jornais insistindo. E as notas sucedendo-se. E a seriedade dos conjurados. E o japonesinho trabalhando.

           @@@


 Veio a exposição. Foi um escândalo, um clamor. Vidal ordenara preços altíssimos nos quadros. Os estudos mais modestos custavam seiscentos, oitocentos mil réis. o preço impunha....E, para dar o exemplo, no dia da inauguração Vidal adquiria dois quadros, um de  15 e outro de 12 contos, que o artista, como era natural não cobraria. Mas a notícia correu, a massa acreditou, a exposição encheu-se, os comentários foram rumorosos, a imprensa acorreu, e as notícias, as críticas, as discussões, multiplicaram-se.

   - Para o Vidal pagar aquela fortuna...

   - Para o jornal dizer aquilo...

   Choveram os compradores. Ninguém queria ficar atrás. A galeria de d. fulana, as paredes de d, fulaninha tinham que se ornamentar com outros contos de reis em poucos dias estava tudo vendido. Shonosuké enriquecera espantado boquiaerto sem poder compreender

            E as discussões em torno de seu nome. - O jogo das cores na arte de Shonosuké ...Shonosuké e as mulheres...Os coelhos de Shonosuké...O preto e o branco no pincel de  Shonosuké...a expressão de sentimentos na obras de um pintor nipônico....Ainda é possível o gênio? - e outros temas e problemas atulhavam jornais e revistas.

    Havia detratores, é claro. Artistas, críticos, professores. Mas via-se bem: invejosos, despeitados, passadistas, fósseis, cérebros obtusos, impotentes do espírito, eunucos da arte..

    Fulano falava porque nunca vendera um quadro por 500. Aquele outro berrava porque tivera a exposição às moscas. O crítico tal protestara porque não lhe ofereceram dinheiro.

  E assim os verdadeiros entendidos se encarregavam de defender a obra do artista imprevisto e vitorioso.

  Um ano depois, já não havia mais dúvidas. O Foujita nacional vencera em toda a linha. Não somente São Paulo, todo o país acreditava. Até de Paris o chamavam. Foi quando Clemente Vidal e seus amigos resolveram desmascarar a troça. Contar tudo. Revelar a pilhéria. Mostrar que haviam passado uma peça infinita, memorável, na papalvice do público. provar que pouquíssimos não haviam caído. Mostrar que até Paris fora no conto... Clemente Vidal aguardava com uma volúpia sem nome o dia da revelação, que chegara mesmo a assustá-lo. A glória criada era realmente impressionante. Não ficava bem a um homem como ele, cheio de responsabilidades políticas, respeitado nos meios artísticos, zombar do público- que valia dizer: do seu eleitorado - com uma blague assim. Talvez não ficasse bem. Mas a glória de realizar uma partida assim inédita e o respeito pelo seu nome, que ficaria prejudicado quando se estudasse a obra de Shonosuké, deram-lhe a coragem final para revelar. Havia alguns que não tinham concordado. Esses fariam côro em seu favor, aclamando o seu espírito e vingando-se nos otários. Só d. fulana e d. fulaninha não haviam de gostar, mas essas não gostavam nunca de tudo o que o senador prematuro praticava. Não fazia mal...

         @@@


 Quando a notícia rebentou, o escândalo chegou a Abalar paredes. Houve gargalhadas, insultos e censuras:

    - Isso não se faz...- disse um crítico que caíra...

  - Isso é um desrespeito para cm o publico...

   Um cabo eleitoral que compara quadros deu um murro noa r:

   - E pensar que é um senador. Mas o eleitorado há de vingar-se.

  - Coisa mais sem graça...- disse d. fulana.

  Mas quem mais se divertiu foram os passadistas, impotentes, fósseis, eunucos e outros pejorativos, de acordo com os que haviam admirado. Vingavam-se agora. Humilhavam os compradores, os apologistas, os ingênuos.

   - Passadismo, heim? Impotência, não é?

   E um rumor de gargalhadas se alastrava pelos salões elegantes, pelos clubes, pelas redações. Tão grande, que deixou quase despercebido o suicídio do japonesinho, no seu "atelier" abandonado.

   @@@

 O interessante é que Shonosuké era realmente um homem de gênio. 



                             FIM        






Sobre a obra do autor: A espontaneidade e frescura da sua prosa, a agudeza das suas observações, a finura da "verve" e habilidade que punha na fidelidade das suas fotografias instantâneas de pedaços da vida diária. 

substantivo feminino
  1. 1.
    entusiasmo e inspiração que animam a criação e o desempenho do artista, do orador, do poeta.
    "a v. de Picasso e de suas obras"
  2. 2.
    POR EXTENSÃO
    graça ou vivacidade que caracterizam uma personalidade, ou o que ela produz.

  3. Um pouco mais lirismo para  suavizar o realismo descaridoso e a ironia perversa  com que impregna quase todos os seus trabalhos. Um pouco mais de mentira à dura e áspera realidade.



substantivo masculino de dois números
  1. indivíduo rico que protege artistas, homens de letras ou de ciências, proporcionando recursos financeiros, ou que patrocina, de modo geral, um campo do saber ou das artes.


cópula. Significado de Cópula. substantivo feminino Ligação, união. O ato sexual; coito, copulação. Linguística Palavra que une dois termos de uma oração ou ...



preclaro
adjetivo
  1. 1.
    de origem nobre; distinto, ilustre, insigne.
    "vem de p. estirpe"
  2. 2.
    que se distingue pelo mérito, pelo saber; ilustre, notável, famoso.

  3. "p. mestre"

PASSADISTA
caturras, retrógrados, saudosistas.

Caturra.

 substantivo masculino e feminino Pessoa teimosa, de opiniões extravagantes, que gosta de contradizer e de discutir. Pessoa apegada a usos e coisas antigas. [Brasil] Planta da família das euforbiáceas
  1.  

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