sábado, 25 de julho de 2020

Machado de Assis- Missa do Galo

           



  Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela tinha trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
    A casa em que eu estava hospedado era do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Ás dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez ouvindo dizer a Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe  que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía, e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a pincípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumamar-se, e acabou achando que era muito direito.
   Boa conceição! Chamavam-lhe a "santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos.
  No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar, pode ser até que não soubesse amar...
       Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Magaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Côrte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala de frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e saíria sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria a outra, a terceira ficava em casa.
   - Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? - Perguntou a mãe de Conceição.
  - Leio, D. Inácia
  Tinha comigo um romance, os "Três Mosqueteiros", velha tradução, creio, do "Jornal do Comércio". Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um cadeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo negro de D'Artagnan e fui-me às aventura. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas; Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas. Mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, eitura. um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da lEram uns passos no corredor que ia da sala de visita à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
  - Ainda não fui? - perguntou ela.
  - Não fui; parece que ainda não é meia-moite.
   - Que paciência!
  Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não despertada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
   - Não! qual! Acordei por acordar.
   Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; parecia não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não aflingir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
   - Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
   - Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos "Mosqueteiros".
   - Justamente: é muito bonito.
   - Gosta de romances?
   - Gosto.
  - Já leu a "Moreninha"?
   - Do Dr. Macedo? Tenho lá em Magaratiba.
   - Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
   Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando so olhos por entre as pálpebras meio cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços para umedecé-los. Quando acabei de falar, não me disse nada, ficamos assim alguns segundo. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
   Talvez esteja aborrecida, pensei eu.
   E logo alto:
   - D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu....
   - Não, não ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia.Tem tempo. Você perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
   - Já tenho feito isso.
   - Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
   - Que velha o que , D. Conceição?
   Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas: agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com os desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custava levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objetto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a  mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
   - É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
  - Acredito, mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça; São João não digo, nem Santo Ântonio...
   Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármote da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços muito claros e menos magros do que se poderia supor. A vista não era nova para  mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar de pouca claridade podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outrras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber  por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrier e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, reprimia-me:
    - Mais baixo. Mamãe pode acordar.
  Então saía daquela posição, que me enchia de gosto tão perto ficavam as nossas caras. realmente, não era preciso falar alto para se ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me  que eram pretas. Conceição disse baixinho:
    - Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
    - Eu também sou assim.
   - O quê? - perguntou ela, inclinando o corpo para ouvir melhor.
   Fui sentar-me na cadeira que ficava oa lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
    - Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando custa-me a dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, tono a deitar-me e nada.
   - Foi o que lhe aconteceu hoje.
   - Não, não - atalhou ela.
   Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu me desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava uma  outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprima-me:
   - Mais baixo, mais baixo...
   Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoas, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite que me aparecem trancadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Umas das que ainda tenho frescas é quem em certa ocasião, ela que apenas era simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respsito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estrmeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espehlo, quie ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
  Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópratra"; não me recordo o asunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareceiam feios.
  - São bonitos - disse eu.
   - Bonitos são; mas estão manchados. E depois, francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
   - De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
   - Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode por na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
   A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Pensei que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça a minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeios, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando pensou no passsado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabua que casara aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como o princípio, e quase não saía da mesma atitude. Não tinha os grande olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
  - Precisamos mudar o papel da sala - disse daí a pouco, como se falasse consigo.
   Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie do sono magnético, ou que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os ohos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua o silêncio era completo.
   Chegamos a ficar por algum tempo - não posso dizer quanto -interamente calados. O rumor único e escasso era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou de uma espécie de sonolencia; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estrar devaneando. subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: ! Missa do Galo! Missa do gGalo!"
   - Aí está o companherio - disse ela levantando-se. - Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo e ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
   - Já serão  horas? - perguntei.
   - Naturalmente.
   Missa do galo! repetiam de fora, batendo.
  - Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.
  E com o mesmo balanço do corpo. Conceição enfiou pelo corredor adentro, pisando mansinho. Sai à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fiquei à conta dos meus dezessete anos.
   Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a, como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apolexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que se casara com o escrevente juramentado do marido. 

 FIM







substantivo masculino
  1. LINGÜÍSTICA
    palavra, locução ou acepção mais agradável, de que se lança mão para suavizar ou minimizar o peso conotador de outra palavra, locução ou acepção menos agradável, mais grosseira ou mesmo tabuística: dianho(por ' diabo ', palavra que o povo procura evitar), a interj. caramba (por 'caralho', tabuísmo) etc.


Socapa. substantivo feminino Disfarce. Dissimulação. locução adverbial À socapa, disfarçadamente, dissimuladamente. Meneses trazia amores ci


comborça 

amante de homem casado ou de homem com outra amante. Do céltico *combortìa, «aquela que compartilha ...


Ébrio significa embriagado ou bêbado. O termo é utilizado para designar aquele indivíduo que se embriaga por hábito, que é dado ao vício de beber.

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