quinta-feira, 18 de julho de 2019

-Graciliano Ramos MEU SÓSIA ---Graciliano Ramos

  Aquilo já não podia ser uma simples coincidência, e o fato, a força de se repetir, acabou por me impressionar. Era a quarta ou quinta vez que eu pedia uma obra para ler e, decorrido algum tempo, o funcionário vinha me avisar que a mesma já estava em mãos de outro consultante. Ora, os assuntos que me preocupavam então e, por longos meses me fizeram um assíduo frequentador da Biblioteca Nacional, são todos de interesse restrito: antigas relações de viagens, velhas crônicas fradescas - tudo relativo à História da America. É que tinha um romance em preparo e nele haveria páginas de evocação ao brutal despertar do Novo mundo, sob o pulso implacável dos Conquistadores.
    Note-se que sempre fui avesso a revelar os meus projetos literários e nem mesmo aos amigos mais íntimos costumo falar no que ando fazendo ou ainda pretendo escrever. Não será isso, talvez, um traço de modéstia, mas porque tenha a superstição de que as obras muito anunciadas dificilmente se realizam, ou quando chegam a ser executadas, nunca correspondem ao que delas se esperava. Haverá também outra razão. Não sei contar muito bem o que ganhará quando for definitivamente passado para o papel . Aliás, Flaubert também sofria desse mal e nada lhe era mais penoso do que resumir, em conversa o que seria o entrecho de qualquer dos seus romances.

Resultado de imagem para imagens de bibliotecas


   Por isso tudo, não é sem muito constrangimento que me reporto ao livro que estava escrevendo e era sem dúvida alguma a minha máxima preocupação de todos os instantes. Pelo menos até um mês atrás, quando fiz atroz descoberta. Mas como não falar nele se foi por ele, justamente, que conheci o meu sósia, o homem que passou a infernar a minha vida, que me impede de escrever, e até roubou as minhas ideias? Por outro lado, que me importa agora falar num livro, que já sei irremediavelmente perdido, ao qual nunca mais, pelo menos eu, pude ajuntar uma só linha, e que se algum dia vier a ser publicado, mesmo trazendo o meu nome não terá sido concluído por mim?
    E é tanta essa a minha certeza que, mesmo sem o sentir, já vou contando tudo isso no passado e, linhas acima, caiu-me naturalmente da pena: "É que eu tinha um romance em preparo". Tinha. Já não tenho mais. O outro que o continue, se quiser. E há de continuar. Pois se de um mês para cá, enquanto eu não posso fazer mais nada, ele se dedica ativamente ao mesmo assunto e dados que eu ainda pretendia colher, ilações a que esperava chegar, já foram conseguidos por ele e enchem os seus cadernos de notas, que deveriam, ser tomadas por mim, se o seu cérebro não se adiantasse ao meu, ou melhor, não se apropriasse de todas as minhas ideias.
   Mas ainda se se tratasse apenas de um trabalho histórico e puramente documental, de que as fontes bibliografias teriam de ser as mesmas, principalmente para dois indivíduos que se servem da mesma biblioteca....Contudo , ainda assim, haveria a espantosa coincidência na seriação com que vinham sendo feitas as pesquisas: todos os livros lidos numa mesma ordem e quase que ao mesmo tempo. Mas se fosse só isso...E o que trabalho  propriamente de criação individual, a fabulação artística, a trama do romance? Ainda aí, tudo ele me havia roubado: os personagens que entrariam em ação, o desenrolar dos acontecimentos, os lances mais emocionais.
   Mas não vamos precipitar as coisas. Tenho tanto o que contar...
   Como disse, a primeira suspeita que tive do meu sósia, ou melhor, de alguém que se entregava à mesma natureza de estudos que eu, foi quando notei que os livros solicitados por mim, na sala da biblioteca, já estavam em mãos de outra pessoa, que pelos mesmos se interessava.

Resultado de imagem para imagens de bibliotecas

            Se da primeira ou da segunda vez essa coincidência não me deu o que pensar, da quarta ou quinta cheguei a supor certa má vontade do servente que habitualmente me atendia. Este porém, manteve-se no que me informara e, ante o meu ar de dúvida, prontificou-se a mostrar-me a papelada em que o livreiro fora requisitado. Disse-lhe que não precisava, embora não deixasse se achar estranho que a História del Orinoco, do Padre Joseph de Gumilla, já estivesse outro consultante de olhos grudados na mentiralhada de suas páginas. Enfim,,,Mas dois dias depois, cena idêntica se repetiu com relação à obra de Labat:  Nouveau voyage aux iles I'Amerique, depois, com o trabalho de Barrere. Nouveau relation  de  la France Èquinoxiale. Era demais. Contra os meu hábitos, relanceei os olhos pela sala, a ver se me palpitava quem seria o meu competidor de estudos. O funcionário pareceu adivinhar-me o pensamente e veio em meu auxiíio: -  " O senhor quer saber quem é que está lendo esse livro? Hoje eu sei, porque fui eu quem ainda há pouquinho trouxe ele. É um moço que está lá naquele canto, o segundo a contar da janela". E apontou um tipo que ficava de costas para mim e, mesmo assim, eu mal podia divisar, devido a uma das colunas que guarnecem a sala. E o empregado prosseguiu: - "A graça é que ele se parece muito com o senhor e eu cheguei até confundir os dois. Só ontem é que deu pela coisa, porque o senhor esteve também aqui na mesma hora que ele. Isso ainda mais despertou a minha curiosidade, embora essas questões de parecência sejam sempre muito duvidosas. Não sei se é porque nos figuramos diferentes do que os outros nos vêem, mas o fato é que dificilmente aceitamos os sósias que nos dão. Contudo, lembrei-me de que nos últimos tempos. já vários amigos haviam aludido a um rapaz que diziam ser a minha cara e com quem se tinham dado vários quiproquós a meu respeito. Mais uma razão para que eu quisesse conhecer o leitor que li estava , o homem que lia as mesmas coisas que eu.
   Felizmente, o meu desejo pode ser satisfeito logo depois, quando o vi levantar-se, deixando o livro e papéis sobre a mesa. Iria, talvez, fumar no corredor, ou então fazer qualquer consulta ao fichário. Aproveitei o ensejo para dar também algumas tragadas e tive tanta sorte que cheguei a tempo de lhe estender o meu fósforo, pois que o vi apalpar os bolsos, tendo um cigarro ainda por acender entre os lábios.
   Confesso que senti um verdadeiro abalo ao defrontar-me com meu sósia. E parecia-se mesmo comigo? Bem examinado - não, conforme o detido exame que disfarçadamente lhe pude fazer depois, enquanto estivermos ali no avarandado, apenas por alguns minutos, mas bem próximos um do outro. Não, não era o meu retrato. Talvez fosse um pouco mais alto do que eu. Pelo menos, era um pouco mais robusto, o que lhe dava certa elegância de porte. Seus cabelos não seriam tão louros quanto os meus. Teria o rosto mais longo, o nariz mais forte, as sobrancelhas  mais vincadas. Mas só pelo fato de eu andar rebuscando todas essas minúnicas, há de ser ver que a semelhança era muita. Sobretudo no conjunto, acrescido pelo mesmo bigodinho bem aparado sobre o lábio e os óculos de aros grossos e escuros, que ambos usávamos. E talvez que ainda menor fosse a diferença, se ele não estivesse todo de brim claro e eu com um terno de casimira  escura. Aliás, só dei verdadeiramente por isso, quando, já em casa, olhando-me num espelho, cheguei a ter certa surpresa por não estar também de claro. Penso não ser preciso dizer mais para comprovar o quanto me confundi com ele. E no entanto, não creio lhe ter causado a menor impressão. Dir-se-ia até nem ter posto reparo na minha presença. Assim, tão depressa teve o cigarro aceso, limitou-se a dizer-me um "obrigado" entre dentes ( que pena não ter falado um pouco mais alto  para que eu pudesse também comparar as nossa vozes), e foi encostar-se à balaustrada, de tal modo que eu só o via agora de perfil. Mas quem sabe lá? Eu também não contive o meu espanto? Qual! Ele não deve ter dado pela nossa parecença, do contrário a sua curiosidade havia de traí-lo de uma maneira ou de outra. E não foi isso o que aconteceu comigo, que não lhe despreguei mais os olhos de cima,a té que ele, tendo acabado de fumar tornou à sala de leitura.
   Eu é que já não pude mais ler. todas as minhas ideias convergiam para a pessoa do meu sósia. Precisava conhecê-lo, interrogá-lo. E se a nossa semelhança não se detivesse apenas no físico? Aquela referencia pelos mesmos estudos...Dar-se-ia que também tivesse a minha psique, pensasse como eu, sentisse como eu? Se era assim, explicar-se-ia a minha incapacidade intelectual dos últimos dias. Em plana febre de produção, em pleno ímpeto do trabalho, fora como se me tivessem estancado de súbito as fontes da energia criadora. As leituras, mal conduzidas ou feitas com desatenção, não me traziam mais as valiosas contribuições para a documentação histórica. O romance , apenas iniciado, mas que dia a dia  ganhava em substância e avultava aos meus olhos, perdia-se agora em conjeturas nevoentas e lances fugidios. Tudo desarticulado. Tudo tornado a um estado caótico, que fazia o meu desespero. Tinha até a impressão de que o meu cérebro já não podia mais pensar, não conseguia coordenar ideias. Ora, se conseguia, não as retinha por tempo duradouro. E tudo aquilo coincidindo com o aparecimento daquela criatura enigmática, que tanto se parecia comigo e compulsava os mesmos livros que eu.     Seria que também pensasse por mim, que me estivesse roubando as ideias? Mais forte do que eu ele era. Mais vigoroso. Mais desenvolto. Se fossemos gêmeos, eu seria o seu irmão franzino, o mais enfezado, talvez o doente. (Na verdade a minha saúde nunca fora das melhores). Nada mais natural, portanto, que ele tivesse também a supremacia da inteligência.
  E de onde surgira aquele tipo? Voltava-me eu a perguntar. Do Rio é que não era. Se vivesse aqui, é evidente que eu deveria conhecê-lo. Em abono disso, datavam de pouco os tais equívocos a que já me referi, quando amigos meus o tomavam por mim. E vieram-me pensamentos loucos. Se ele cometesse um crime sem flagrante, mas do qual surgissem testemunhas ou indícios da sua responsabilidade, poderia cair sobre mim a inculpação que lhe coubesse.
     Esse receio mais se enraizou no meu espírito dias depois, apoiado num episódio de que falarei daqui a apouco. Quero antes dizer da ansiedade em que vivi até que o pude avistar pela segunda vez. Isso só ocorreu  quase uma semana depois do nosso primeiro encontro, embora nos dias subsequentes eu não fizesse outra coisa senão subir e descer as escadas da biblioteca. Está bem visto que já não me levavam até lá as pesquisas bibliográficas, ainda que uma vez ou outra, a pretexto de permanecer na sala de leitura, me visse obrigado a pedir qualquer livro. A minha maior curiosidade era por conhecer o nome do meu sósia. Assim que o conseguisse, teria uma pista segura para partir em outras indagações. E lembrei-me dos boletins em que os consultantes da biblioteca são obrigados a exarar o nome e residência. Desde que ele estivesse presente, não me seria difícil conseguir de qualquer contínuo que me obtivesse esses dados, pela identificação do número lançado sobre sua papeleta como o da carteira em que estivesse sentado. Mas era preciso que ele aparecesse e, durante seis dias, o aguardei em vão. A menos que ele não tivesse mudado de horário. Entre onze e quatro, preso à repartição, não me era possível frequentar a biblioteca. Ou seria que também com ele como comigo, se tivesse dado uma regeciemento da sede de leituras?
   Foi nesse entretempo que quase tive a certeza de que o seu nome também era Paulo. e de que modo! Através de uma cena que já não me deixava dúvidas sobre os riscos a que me expunha, tendo um sósia com aquele. Ele foi à casa de uma rapariga que eu frequentava uma vez ou outra, e ela o confundiu comigo. Disso tive a prova quando, sem lá havia uns oito dias, lá voltei uma noite, ela estranhou a minha assiduidade, uma vez que ainda na véspera fora visitá-la. Nada adiantou que eu protestasse. Nem protestei até o fim. Era tal a segurança com que lhe ouvi: - "Ora, seu Paulo, então você não esteve aqui ontem?" E concluiu com uma observação que não me deixou de magoar profundamente: "Por sinal que eu nunca te vi tão bem disposto, tão alegre. Você devia ter bebido um pedaço". ( Eu não bebo nada, por causa do meu fígado).
   E logo na bebedeira!
   Cravou-se-me de novo a espinha no cérebro. E se ele tivesse morto aquela mulher, que morava numa pensão e cujas companheiras certamente teriam visto quando ambos foram para o quarto?Eu lá sabia quem era ele, que sentimentos se escondiam por detrás daquela máscara que tanto se parecia com a minha? Pois se irmãos, sangue do mesmo sangue, educados da mesma maneira, saem às vezes tão diferentes...E voltei a matutar sobre a possibilidade de algum parentesco entre nós. Os primos que tinha, conhecia todos. Aliás, não se pareciam comigo. Meu pai, que viajara tanto, teria deixado algum filho natural? Não creio. Todos lhe reconheciam uma grande austeridade, difícil de comportar situações assim.
   Mas, então, o seu nome era também Paulo. Sim, porque do contrário ele teria dado pela confusão, uma vez que a rapariga, supondo tratar comigo, devia tê-lo chamado assim. Ou seria que ele se aproveitasse da nossa parecença e se fizesse passar por mim? Nesse caso ele já me conhecia, E até aí nossos gostos combinavam. Atraíamos a mesma mulher.
   Quando soube desse episódio tratei de botar abaixo o bigodinho. Pelo menos ficávamos com os rostos bem diferentes e seriam impossíveis as tais confusões que tanto me apavoravam. Ah, se eu também pudesse tirar os óculos! Infelizmente,não era por luxo que os usava. Nada consegui, porém, com a minha suposta transformação. Quando o vi pela segunda vez, ele estava igualmente de cara raspada e acho que, assim, ainda ficou mais parecido comigo. Cruzei-o na escada da biblioteca. ele descendo e eu subindo, às  cinco da tarde, e quase caí para trás. Desta vez, olhou bem para mim e julguei vislumbrar-lhe nos lábios um certo riso escarninho. O meu primeiro impulso foi segui-lo, mas confesso que não tive coragem. Além do ridículo, mais, do inverossímel que havia naquela situação, capaz até de despertar a curiosidade alheia, senti uma espécie de parada súbita de todas as minhas energias, como alguém que vi ter um desfalecimento. O meu crânio dir-se-ia oco. Faltavam-me as pernas.Tanto assim que, à entrada do edifício, enquanto o via atravessar apressadamente a avenida, cheguei a procurar apoio numa parede e aí fiquei por alguns instantes, aguardando as forças me voltassem.
  Desse dia em diante, dificilmente consegui calma para olhar-me num espelho. passei até a evitá-los. e cada vez me achava mais parecido com a  figura que eu vira e quando tinha diante de mim a própria imagem, ia a ponto de me perguntar: - "Serei eu mesmo?" Nada mais que  nos distinguisse, depois que o observara de chapéu( um feltro cinza como o meu) e com um terno claro que talvez proviesse da mesma peça em que fora cortado o que eu vestia. Nem mais aquelas pequenas diferenças fisionômicas, estabelecidas a custo quando do nosso primeiro encontro.Agora, até me parecera lobrigar nele a pequena cicatriz que tanho no lábio superior, lembrança de uma queda em pequeno e que se escondia sob o bigode. há ou não há razões para já ter dúvidas quando me vejo face a face com um espelho?
   Foi por isso que passei a me mostrar menos na rua. Temia os amigos e conhecidos, no receio de que tivessem dado novas confusões entre mim e o meu sósia. Até  então, nada tinha ido além de simples enganos, sem nenhuma importância, mas quem me garantia que, a seguir,  eu já não pudesse ter sido acusado de faltas graves e até delituosas? Assim, agora a minha vida era o mais possível de casa para a repartição e da repartição para casa.
   Apenas não dominava a tentação de me aproximar da biblioteca e, por vezes, subir à sala de leitura. Não preciso dizer que um único fito me levava ali: observar outra vez o meu sósia, ver se lhe conseguia o nome todo. Nunca mais pensei no meu  romance, ou, quando  pensava, era com dor e revolta, por constatar a minha absoluta impossibilidade de continuá-lo. E ainda seria capaz de me entregar a qualquer trabalho intelectual? Era o de que começava a duvidar, depois que o outro se atravessara no meu caminho e parecia dotado de força bastante para exaurir toda a minha vitalidade, toda a minha energia criadora.
   E ficaria nisso? A sua ação maléfica não iria também até a minha saúde física? Se nunca fora muito forte e sofrera sempre de uma coisa ou de outra, depois que o conhecera o meu alquebramento era completo. Todos me achavam mais magro. A minha palidez era de impressionar. E isso em menos de dez dias  É verdade que quase não comia e, à noite, só podia ter por sono uns cochilos rápidos, entremeados de sobressaltos e pesadelos. Mudara tanto, que até deixei de ir à repartição, eu que era dos funcionários mais assíduos. isto porque queria frequentar a biblioteca nas horas que coincidiam com o meu expediente. Não fora às cinco horas que eu me cruzara com ele na escada, já de volta das suas pesquisas? Pois lá iria também das onze às cinco e, se possível, sem arredar pé da sala de leitura.
  Embora o meu estado de espírito não permitisse nenhum esforço cerebral, coonestar a minha presença ali, era preciso que em interessasse por qualquer obra. Assim, passei a requisitar diariamente os dois volumes de Richard Spruce:" Nores of a botanist on the Aamazon and Andes." Como grande parte do meu romance devia girar em torno da célebre tribo das Amazonas, de Orellana, alguém me recomendara muito a leitura dessa obra, onde iria encontrar dados muito interessantes a respeito. Na verdade, pelo  índice, e, depois quando estive a folhear as páginas, pude verificar que manancial não teria descoberto ali para discutir a origem das famosas mulheres guerreiras. Mas era tarde. O meu romance estava bem morto nas poucas laudas escritas e numa amontoado de notas.
   Com o Spruce entre as mãos, mas os olhos cravados na porta de entrada, por três dias fiz ponto na sala de leitura, das onze às cinco. Já ia almoçando, como se fosse  para a repartição, e apenas de vez em quando abandonava a cadeira para fumar um cigarro no corredor. E todo esse sacrifício, essas intermináveis horas de ansiedade em pura perda. Nada do meu sósia aparecer. Contudo, não desistia. Que a repartição fosse aos diabos. Aquilo era uma questão de vida ou morta. E voltei no quarto dia. e voltei no quinto. Sempre pontualmente, como se entrasse na inspetoria. Às onze e pouco já estava agarrado ao Spruce. Como sabia de cor a sua catalogação, era quase maquinalmente que enchia o boletim.
   Foi só no sexto dia que ele apareceu. Saberei contar as cenas que ocorreram daí por diante? Pelo menos, até um certo ponto. estou certo de que isto não vai coincidir com o que se diz por aí. Mas que importa? Recordo-me bem de tudo. Tenho as imagens bem nítidas.
   Eu já estava na sala mais ou menos uma hora quando vi o meu sósia entrar, ir até a mesa dos funcionários que presidia à sala, a fim de lhe entregar a papeleta de pedido, e depois encaminhar-se para a cadeira em que se sentara da outra vez. Assisti a tudo isso num verdadeiro estado de fascinação e só tinha olhos para acompanhar-lhe os menores gestos. Por sorte, o meu lugar era muito bom e, sem ser visto por ele( a menos que não se voltasse para trás) ficava em situação de poder observá-lo quanto quisesse. Preciso dizer que, cada vez mais, era maior a nossa parecença? Chegava a sentir-me mal e, a todo momento assaltava-me o medo de que  alguém, dando pela coisa , começasse a fazer escândalo pela presença, ali, de dois indivíduos perfeitamente iguais. Daí a mina falta de ânimo para tomar a iniciativa que era o único motivo das minhas ida à biblioteca.
    Como pedir a alguém que me fosse verificar, pela papeleta, o nome do consultante que me interessava? isso poderia justamente, despertar a atenção sobre nós dois. A começar pelo próprio servente, que não era o mesmo do turno da tarde, aquele que já dera pela nossa semelhança. Estava eu fazendo essas reflexões, quando vi que o meu sósia tinha gestos de impaciência e discutia com o empregado, quando este, distribuindo livros passara pela sua mesa e lhe dissera qualquer coisa. Sem dúvida, como tantas vezes acontecera comigo, já fora pedido em consulta o livro solicitado por ele. Tive um estremeção de júbilo. Desta vez estava vingado. Mas  dir-se-ía que eu era alvo da atenção ambos. seria o Spruce a obra  que ele queria? Agarrei o volume com mais força e abaixei a cabeça sobre as suas páginas, simulando estar profundamente mergulhado na leitura.
   Não tardou que o contínuo surgisse ao lado: -" O senhor me desculpe. Mas tem aí um moço que precisa muito fazer uma consulta nesse livro que o senhor está lendo. Ele disse que não demora nada. O livro volta agorinha mesmo. Não vê que eu sabia que ele estava aqui, porque sou eu que venho servindo o senhor todos estas dias". "Pois não". Foi isso o que respondi? Nem sei. Estava tão perturbado. Passei-lhe os dois volumes evitando olhar na direção  do meu sósia, que com certeza havia de estar voltado para a minha mesa,a companhando a cena com interesse. O empregado observou-,e: - "Não. Ele só quer o segundo volume. Assim, o senhor pode ficar com este". Só a furto, tão grande era a minha perturbação, pude seguir os gestos do meu sósia, quando o volume lhe foi entregue. Vi que ele o abriu apressadamente, como quem já o manuseara muito e vai direito a uma determinada página. Depois, passou a tomar notas, escrevendo a lápis num grande caderno. tal como eu os usava. Acho que tudo isso não consumiu mais que dez minutos. Quando o contínuo tornou à minha mesa, para restituir-me o volume, transmitia-me os seus agradecimentos.
     Mas já não tinha tempo a perder. Percebi que meu sósia preparava para sair e qualquer coisa me impelia a acompanhar-lhe os passos. Agora, podia até aborda-lo. Não fora ele que provocou aquela aproximação entre nós? Enchi-me de coragem. Iria falar-lhe. Por que é que se interessava pelo Spruce? Seria também  por causa das Amazonas?
    Alcancei-o no patamar da escada:
   - Faz favor...(Eu devia ter uma ar de perfeita humilhação e só Deus sabe o esforço que tive de despender para dirigir-me a Ele). - Faz favor... Era eu que estava lendo o volume do Spruce.
  Olhou-me com grande sobranceria:
   - Ah, sim. Não vê que eu tinha urgência de fazer  uma consulta.
   Mas ele não dava pela nossa parecença? Não via que éramos o retrato um do outro? Notei que se não me apressasse, ele se iria embora.
    Desculpe a minha curiosidade, mas com tenho observado que as nossas leituras coincidem...Já várias vezes pedi livros que o senhor estava consultando. Hoje foi ao contrário. O senhor é que se interessava pelo Spruce que eu estava lendo.
    - Sim, e o que tem isso?
   - E que eu estava escrevendo um romance e fiquei com receio....
    Ele atalhou-me rápido;
 - Mas , meu amigo, as ideias andam no ar e os assuntos, até que sejam aproveitados, não são propriedade de ninguém. o senhor está com medo que os nossos livros saiam iguais? De fato, estou escrevendo um romance apoiado numa grande documentação histórica e que terá como núcleo a tribo das Amazonas. É esse também os seu? Mas isso não tem importância. Pelo contrário, será até curioso. O senhor não vai dizer que seu entrecho seja o meu, que as minhas personagens sejam as suas.
   E em poucas palavras fês-me o resumo da sua fabulação, dando-me o nome dos figurantes que nela entrariam, o desenrolar dos episódios, as paisagens que descrevera,
   Eu devia estar lívido. era o meu romance que lhe saltava da boca, sem tirar nem pôr. Com um sorriso diabólico, o meu sósia arrematou:
   - Mas mesmo que assim fosse, a vitória será daquele que o publicar primeiro: Paulo de Alencastro que sou eu ou...Como é seu nome?
   Foi aí, quando ouvi o meu nome, que lhe pulei ao pescoço e rolamos juntos a escada.
   Agora estou aqui, na Casa de Saúde. Os ferimentos não foram graves, mas tenho ainda por algum tempo, devido à fratura da perna. Parece que um automóvel me pegou de raspão e atirou-me a distância. Dizem que eu me joguei escada abaixo, como um louco, gritando, e vim parar no meio da avenida, onde um automóvel me atropelou. E o outro? Ninguém acredita que eu me tivesse atracado com alguém e rolássemos juntos a escada. Mas como é que se explica a poça de sangue, que ficou no lugar do acidente, e deu que os jornais falaram? Dos meus ferimentos é que não foi. A não ser a fratura interna, eu só tive contusões e escoriações. E o sapato igualzinho ao meu, que entregaram, no local, aio enfermeiro da Assistência? Eu não perdi nenhum. Continuava com os dois pés calçados, podem dizer o que quiserem. Falam numa alucinação. para mim, o outro está gravemente ferido, e está qui. Ainda ontem, quando eu ia para a sala de curativos, num carrinho, ao passar pelo corredor, ouvi alguém que gritava com a minha voz.

                                   FIM      (HISTÓRIA PUXA HISTÓRIA)

( Obrigada pela paciência meu leitores querido)

entrecho
/ê/
substantivo masculino
  1. conjunto, série de eventos que compõem a ação de uma obra ficcional; enredo, urdidura, intriga.

ILAÇÕES
O mesmo que: conclusões, consequências, corolários, deduções, ...



parecência

Significado de parecência

Bras. Semelhança, o mesmo que parecença.

Definição de parecência

Classe - substantivo

Esta palavra tem 11 caracteres, 4 vogais e 7 consoantes.




Significado de Quiproquó

substantivo masculinoEngano, erro que consiste em tomar-se uma coisa por outra.

Definição de Quiproquó

Classe gramatical: substantivo masculino
Separação silábica: qui-pro-quó
Plural: quiproquós
Feminino: quiproquóa 

Exemplos com a palavra quiproquó

Um quiproquó teve então início.Folha de S.Paulo, 10/04/2011
A trama levinha --um quiproquó por causa de uma bolsa de grife - também estava melhor amarrada do que de outras vezes.Folha de S.Paulo, 09/03/2012
quiproquó

OUTRAS INFORMAÇÕES SOBRE A PALAVRA

Possui 9 letras
Possui as vogais: i o u
Possui as consoantes: p q r
A palavra escrita ao contrário: óuqorpiuq


Compulsava

1- Consultar; estudar; examinar; folhear; manusear.



Significado de Fito

substantivo masculinoAquilo que se almeja; alvo, objetivo: seu fito era ser famoso.O que é alvo de desejo; intenção, intento, intuito.Etimologia (origem da palavra fito). Forma regressiva de fitar.adjetivoQue permanece olhando fixamente para; fixo, cravado: olhos fitos no céu.[Zoologia] Cuja olha está fixa, parada, falando dos animais.Etimologia (origem da palavra fito). Do latim fictus.

Sinônimos de Fito

Fito é sinônimo de: alvofimintuitomirapropósitoobjetivointentofixo,imóvelintençãocravado

Definição de Fito


Classe gramatical: adjetivo e substantivo masculino
Flexão do verbo fitar na: 1ª pessoa do singular do presente do indicativo
Separação silábica: fi-to
Plural: fitos 

quarta-feira, 3 de julho de 2019

-ERNANI FORNARI POR QUE MATARAM O VIOLINISTA -ERNANI FORNARI


POR QUE MATEI O VIOLINISTA

Antes de mais nada, devo explicar por que motivo escrevi o Sem Aplausos, conto hoje tão famoso e já traduzido em mais de dez idiomas, a despeito( segundo lamentou um lamentável crítico norueguês) do fim trágico e desumano que dei à personagem central.
  A história da origem desse conto é a seguinte:
   Na mesma noite em que se verificava, em Chicago, o espantoso incêndio - quase digo espaventoso! - de um de seus maiores teatros( se não me falha a memória, a Michigan Theatre), no qual morrera mil setecentas e oitenta e três pessoas - vamos! um recorde em matéria de carbonização coletiva! - recebia eu daquela cidade um cabograma bastante singular. Calcule-se isto: importantíssima companhia de seguros gerais, a General Insurance Company of Chicago, encomendava-se, com toda a urgência, um conto literário, " meio realista e meio romântico", que deveria ter por tema um incêndio num teatro.
   Ora, tratando-se de empresa norte-americana, e de seguros, tão extravagante incumbência tinha, percebe-se logo, um único escopo: aproveitar o lutuoso acontecimento nacional - esses práticos americanos! - para uma intensa propaganda da referida companhia seguradora.
   Relutei um pouco, o entanto, em satisfazer a solicitação da General Insurance, embora, está-se a ver, me desvanecesse e honrasse sobremaneira o haver meu nome , entre o de milhares de escritores de renome, sido lembrado e escolhido para tal tarefa. Minha relutância era ditada não só por escrúpulo sentimental, muito natural aliás, em se tratando de um brasileiro como eu, mas ainda por desagradar-me francamente fazer obras de empreitada. Sempre entendi que o escritor só deve escrever  quando sente a "necessidade fisiológica" de escrever - se me expresso convenientemente.
   Convenhamos, porém, que cinco dollars por linha não é, por aí, uma dessas ofertas diante das quais os escrúpulos do homem mais sentimental possam resistir por muito tempo. Vai daí então, um dia, decidi-me e escrevi, com rara felicidade - modéstia à parte - o tal conto que, há já alguns anos, todo o mundo conhece e, ainda hoje, lê com o mais vivo interesse e profunda emoção, apesar de certos erros e incorreções das primeira edições inglesa e japonesa.
  Agora, porém, seja-me permitido dizer que, inicialmente o meu trabalho era muito diferente desse que corre por esse mundo sensacionalista. Tinha até outro título, quiça bem mais sugestivo que Sem Aplausos.
   Para que se possam bem avaliar as transformações a que está sujeita uma obra de arte, e possam também os leigos na matéria enfronhar-se na sutil metafísica das composições literárias, vou transcrever aqui o aludido conto, tal qual foi originalmente escrito. Isso feito, exporei as razoes poderosíssimas que me levaram a matar o formoso e genial violinista - crueldade de que venho sendo tão rudemente acusado por alguns confrades despeitados com a repercussão do meu célebre conto:
   Ei-lo , num resumo, em sua forma primitiva:

  O "MAL-AGRADECIDO"

 " O vozerio chiado das mulheres; a parla monótoma dos homens; por vezes, o pigarro ruidoso de algum mundano resfriado e a tosse perra de algum milionário contrabandista e asmático; o zumbido do enxame das galerias; os cheiros promíscuos de carnes " prósperas" e de essências finas, e os jorros feéricos das luzes, invadiam o ambiente de  preguiça e sonolências boas.
   Mãos tenras e transparentes de louras misses abandonavam-se com sedução estufadas  sobre o mainel do balaústre dos camarotes, cujo revestimento de veludo vermelho dava realces macabros à alvura daquelas estranhas florações. Estofadas e graves matronas, que haviam comparecido ao concerto unicamente para exibir seu último Patou, investigavam, de luneta em punho, o "mau gosto" dos vestidos das outras mulheres e a autenticidade das jóias que enchiam a platéia de estilhaços de luz e centelhas inquietas.
   Em baixo - alguns homens encasacados e carecas a quem irritavam o atrito dos tafetás  e aquele zum-zum de coletividade, retiravam-se para os corredores, pletóricos e desconfiados com as galerias.
   Em cima - estudante e operários, irreverentes e brutais, jogavam chalaças aos "homens" daquelas mulheres tão ricas, tão lindas  e, sobretudo, tão distantes.
   Na rua - a chuva espelhava o asfalto das avenidas movimentadas e barulhentas.
   A campainha deu o último sinal. Os que ainda fumavam e discutiam, nos corredores, abandonaram o cigarro e entraram precipitadamente a tomar os lugares.
                @@@
   Com os olhos fincados no infinito, dava o artista a impressão de que tocava para um público invisível. Divino prestigiador de sons, arrancava do violino, com a vara mágica do arco, cabalisticamente, para jogá-los dentro das almas - fogo de artifício e abismos vertiginosos, cristais partidos e uvas machucados, num deslumbramento que se fazia delírio  e embriaguez.
  Por vezes, seus dedos longos e nervosos, tomados de delirium tremens, cabriolavam sobre o braço do instrumento, com se fossem diabos assanhados de dor sobre o chão esbraseado da Cidade Dolorosa. Outras vezes, tocava em tantas cordas ao mesmo tempo, faziam-se seus dedos tão suaves, tão suplicantes e evocativos, que parecia estar seu arco, lá fora, a correr sobre os  fios de água com que a chuva encordoava a noite.
   Sempre, porém, aquela sensação de arrebatamento e angústia, com se todo o teatro, sentado num balanço enorme, a cortar o espaço num vai-e-vem ansioso, estivesse suspenso no ultimo andar do arranha-céu mais alto de Chicago.
            3%%%
   De súbito - que é isso?! - gritos abafados, passos em correrias, rumores de móveis arrastados, e rac-rac de papeis machucados, vieram sobressaltar o auditório.
   - Que é isso?!
    Levantaram-se todos a um tempo, com curiosidade espavorida. Foi um minuto de cem anos. O violino  silenciou, num stacatto, aumentando a confusão. Era como se aquele instrumento, calando-se tão rapidamente, protegesse a toda aquela gente. os espectadores, de pé, burburinhando, numa bisbilhotice, medrosa de quem espera saber, sem querer ver, procuravam a causa do tumulto que eles mesmos, já agora, provocavam.
     - Ai!
    - Meu Deus!
   E o negrinho indicador - que orgulho tinha o pobrezinho de sua libré vermelha! - precipitado dos balões abaixo, tomba ao comprido sobre o gume dos espaldares e resvala para o chão, molengo e estrebuchante, perto de uma dama que desmaia. Quase ao mesmo tempo, a goela escancarada do palco vomita sobre a multidão histérica uma baforada de fumo.
   Era a resposta.
   Imediatamente, chamas dançatrizes, aos requebros, numa coreia acrobática e desengonçada, a trepar pelos cenários, bastidores e bambinelas, invadem a cena para  representar a verdadeira Dança do Fogo. O palco lança à plateia línguas enormes de labaredas, num crepitar satisfeito, como se fosse a bocarra de um dragão vagneriano a estalar  gulosamante os beiços.
    Gritos e gemidos, choros e clamores de mulheres e de homens desvairados ou esmagados pela turba em fuga; fragores por toda parte de quedas de caibros, portas e  colunatas; estrépitos de gente a atirar-se das frisas e dos camarotes; metralhar de lâmpadas elétricas a estourar na ribalta e nas gambiarras - ecoavam tetricamente pela abóboda azul do velho teatro,
    A acústica aumentava o terror-pânico dando ao menor ruído intensidades cósmicas de elementos em fúria. As saídas eram poucas para tanta gente - e queriam todos passar ao mesmo tempo.
   Matavam-se para não morrerem.
   O artista ante aquele espetáculo de fogo e de lamentos, embebedou-se de horror.
   Abraçado ao violino, açoitado pelas chamas, apedrejado pelas fagulhas, quedou-se, estuporado, bobo, grudado ao soalho, duro e parado com a estátua de sal da legenda bíblica, enquanto a fumaça, cada vez mais espessa, apertava-lhe a garganta com seus moles dedos de gás carbônico, asfixiando-o. Quando, com  esforços sobre-humanos. conseguiu mover-se, já era tarde.
   E lá ficou, estirado junto de escada de que tombar. Um círculo de fogo estreitava o cerco à sua volta, apertando-o num grilhão de labaredas.
                @@@
   Sobre o leito número 3, imóvel, inchado de ataduras, jazia um monstro todo branco, mal feito boneco de algodão e gaze.
   E, naquele instante, ele descerrou os olhos, com quem desperta de um sono igual ao de Lázaro.
   Silêncio absoluto.
  Pelos orifícios da ligadura, fixou os olhos para o que lhe estava à frente: deitado numa cama, perto da janela, um homem todo enfaixado abria e fechava a boca, gemendo- gemido que ele não ouvia! Incrédulo, olhou novamente: mais além, sempre em frente, também num leito de ferro, um rapaz barbado, magro, cor de vela de promessa, enxotada, com uma coisa  que tanto podia ser um braço como um bambu, as moscas que, pressentindo cheiro de decomposição, lhe pousavam sobre a face cadaverizada.
   Que estranho lhe parecia tudo aquilo! Que casa era aquela? Por que aquela quietude tumular no meio de tanta gente que parecia sofrer e gemer?
   E ficou-se a considerar, olhos no teto, abstratamente mover-se. Não o conseguiu: uma dor dilacerante gritou-lhe o " não pode!" que paralisa o gesto.
  Foi então que se lembrou de tudo.
   De tudo mesmo:
   Olhou-se, devagar, quase a medo, ainda com um resto de esperança de que a realidade lhe dissesse que tudo aquilo de que estava se lembrando não passara de um sonho agoniante e mau. E eis que se surpreende naquele estado absurdo e ridículo, enrolado, como uma múmia preciosa, num sudário de algodão hidrófilo. Quis então apalpar-se. Mas como?  se já não tinha...se já não tinha...
   E o rugido que lhe explodiu na alma toda concentrada na garganta, foi a sanção de sua irremediável desgraça. Pôs-se a gritar desatinadamente, a olhar para todos os lados:
  - Onde estão meus braços?! Onde estão meus braços?!
  Ah, aleijado!
    O enfermeiro correu imediatamente para ele , ajudando-o a recostar no travesseiro.
   - Que é que está sentindo? Machucou-se?
   E o pranto brotou-lhe do coração bom como as searas, convulsivamente. De uma coisa somente lembrava-se ele agora:nunca mais poderia tocar.  Nunca mais! Nunca mais sentiria ecoar em seu cérebro e tombar dentro do coração, em troca das semente de Beleza que espalhava pelo mundo, o tempestuosos rebramir dos "  bravos" e a chuva  dessedentante das palmas - ventania que, dando ondulações de mar a seu trigal de ouro, espalhava o pólem de novas fecundações; linfa que, mitigando o tantalismo de seu sonho de perfeição, era verdadeira selva de sua arte interpretativa.
   Esquecido das dores que lhe queimavam a carne, da sede viva que lhe escaldava a boca, deixou pender a cabeça sobre os pensamentos - porque sobre o peito não podia. E seus pensamentos eram como caudas de cometas, que por onde passam destroem tudo: Ter que continuar a viver! Ter que tornar a andar pela terra! Andar! Não! Arrastar-se, rastejar, com um réptil asqueroso e feio, por  este  mesmo mundo que o vira sobrevoar, divino e belo de triunfo em trinfo, impotente, agora na plenitude da sensibilidade, quebradas em pleno voo suas asas da Glória, trazendo acorrentada ao corpo inútil uma alma surda e muda aos chamamentos de si mesma! Sentir a música interior vibrando, e não ter meios de expressão para ela! Ouvir aplausos glorificando outros menos capazes que ele, e não poder exclamar: "Eu sei tocar melhor!" Ouvir aclamações vitoriando outros tão grandes e tão artistas como ele e não poder gritar: " Eu sei tocar assim!" E nem ao menos ter uma só mão para agarra-se à morte! Por que não o haviam deixado morrer entre os escombros do teatro, confundidas as suas cinzas com as de seu violino?
   E  as lágrima iam-lhe umedecendo , a pouco e pouco, as gazes.
   Nesse instante, viu vagamente, como quem olha através de um aquário de cristal, o vulto de alguém junto de sua cama. Viu, sem compreender , o enfermeiro afastar-se apressadamente, depois de haver dito qualquer coisa ao vulto, que se aproximava cada vez mais.
   Era um bombeiro. alto, grisalho, cara rosada a estampar comoção. o bombeiro disse-lhe qualquer coisa carinhosa, que o violinista não pode ouvir.
   Ele porém, não precisava ouvir - adivinhava tudo.
   - Foi o senhor quem me salvou, não foi? - perguntou, a voz sumida, como se ela rompesse das profundidades de uma caverna. Veio ver como está passando o monstro, não é?
    O bombeiro, com os olhos marejados de lagrimas, sacudiu a cabeça, confirmando por confirmar.
      Através dos buracos da ligadura, os olhos do, artista fuzilaram como dois infernos. Que raiva lhe deu aquele homem de faces lisas, de aspecto saudável e, sobretudo, com as duas mãos intactas!
   - Escute - tornou, com voz débil. - Chegue-se mais, que quero agradecer-lhe.
    O homem acercou-se da cabeceira do leito e inclinou bem o rosto sobre os lábios do desgraçado, a fim, de ouvi-lo melhor.
   Inopinadamente, nem esforço violento, munindo-se de toda a energia de que era ainda capaz seu físico combalido, o violinista arrancou das profundidades pulmonares um estalo seco, e, com a boca cheia, cuspiu bem na cara de seu salvador.
    - Toma, bandido! - urrou. - Era o que tu merecias!!"
                           @@@@

Esse era o conto.
   Como se vê, muito diferente e bem menor que o atual.
Agora, porém, vem a parte pungente e extraordinária desta amende honorable:
   Mal eu terminara de reler as laudas já escritas, e, fatigado, pousava a caneta sobre a escrivaninha, quando ouço passos no corredor. Como minha velha governanta tinha o hábito de levantar-se, às vezes, alta madrugada para trazer-me à biblioteca uma chávena de chocolate, pensei que deveria ser ela. Esperei. Bateram  à porta, fortemente. pela violência, devia ter sido com o pé. Surpreso, exclamei:
  - Entre!
   -Não posso abrir a porta, - retrucou uma voz desconhecida do homem, voz de entonação estranha, rouca.
   Um homem, àquela hora tardia, dentro de minha casa? Levantai-me de um salto. Abri a gaveta, tirei o revólver, empunhei-o e, sorrateiramente, pé ante pé ( não fosse artimanha de algum ladrão!), fui até a porta e escancarei-a de chofre.
   Fiquei, porém, interditado de susto. Diante de mim avultou, como uma aparição fantasmal, um especto horrendo, uma "coisa" que de humana tinha apenas  a forma do tronco, Sem braços, trazia, em lugar da cabeça,um embrulho amarfanhado de carne, ouriçada aqui e ali de tufos de cabelos ruivos e duros. A cara, transformada numa massa informe, qual se houvessem a tirado nela um punhado de polme esverdeado e gosmento,assemelhava um busto de argila ainda por  modelar, plástica e úmida.
   Recuei apavorado.
   O fantasma entrou na biblioteca, a arrastar os pés, chaplinescamente trágico. Aproximou-se bem do quebra-luz e, voltando-se para mim, bradou a chorar:
   - Contemple-me! Olhe-me bem e goze a sua obra! Veja o que sua crueldade fez de mim, veja - um ridículo aleijão humano! ...Eu, que era o encanto das mulheres dos pássaros, serei, de hoje em diante, o espantalho até das crianças. Por simples capricho estético, sua impiedade joga-me vivo num mundo que me queria tanto, e que, agora, fugirá de mim horrorizado. Julgou talvez que seria desumano matar-me, não é? E por que?...Então não compreende que a vida para mim, já agora, é mil vezes pior do que a morte, porque é fazer-me morrer e ressuscitar sessenta veze por minuto? Por que consentia que me salvassem? Diga! Por que fez isso, senhor? Por que? - E dos buracos dos olhos tombavam lágrimas grossas como glicerina.
    - Mas,eu...
   - Sei o que vai dizer. A técnica, as injunções da forma, não é assim?  Mas sua vaidade implacável de autor cruel esquece, em benefício de sua criação artística, oque será da vida de sua criatura. Que lhe importa que alguém, sofra por sua culpa, se o senhor consegue obter, com essa vida e com esse sofrimento um miserável efeito literário?..Bárbaro que é! Acaso já pensou no destino miserável que me espera lá fora? Eu, um dos maiores artista de meu tempo, de pires de lata à boca, à porta dos Cafés, vivendo da comiseração reunira, vivendo mais da grandeza do que fui que do farrapo imundo que hoje sou, a esmolar em nome de meu passado esplendor! Veja. - e soluçava - veja o seu violinista célebre, acabando, para não morrer de fome, grotesco fenômeno de circo, a cabeça enfiada anum capuz, para que a sua cara não repugne os espectadores, pintando e escrevendo com os pés, com os pés desarrolhando garrafas, preparando omelettes e comendo-as em cena, para a basbaquice das plateias plebeias. Com os pés! - eu que trazia nas mãos para transmiti-la aos homens, toda a emoção musical das esfera celestas! - E caiu de joelhos, suplicando-me. Mate-me, senhor! por piedade! Não me deixe assim na terra, senhor! Não posso viver sema quelas mãos em que eu carregava o universo da minha arte! Mate-me, pelo amor de Deus!
   Não sei, em verdade, quanto tempo durou essa dolorosa entrevista com minha personagem, nem o que ela disse mais. Recordo-me apenas que, quando eu quis falar, ela já havia desaparecido, a porta de meu gabinete estava novamente cerrada, e eu, de caneta na mão, nervoso, reformava integralmente o meu conto, que, como é sabido de todos, termina desta maneira dramática:
   " E o violinista, levando a mão à cabeça( é oportuno relembrar que, no Sem Aplausos, o violinista perde somente uma das mãos), pegou das ligaduras todas e, com repelão feroz, arrancou o penso, as ataduras que lhe envolviam o busto, cravou com gana os dedos  crispados no rosto em chaga viva, e rasgou, raspou, até  encontrar a alma e puxá-la por ali, e libertá-la para sempre."
     @@@
   O mais interessante, porém, é que dois dias após haver enviado para Chicago, pela  Western, o referido conto, recebia eu da General Insurance outro cabograma em que ela me consultava sobre a possibilidade  de eu, reformado o final do  Sem Aplausos, fazer com que o violinista sobrevivesse ao incêndio, para que  - esse  práticos americanos! - também ele " pudesse gozar das  vantagens de um seguro conta acidentes".
   Revoltou-me tanto prosaísmo,e, inflexível em meus princípios estéticos, respondi, desabrido:
   " Arte é arte. Violinista morto. Impossível ressuscitá-lo. Saudações".
                               Ernani Fornari
 












cabograma
substantivo masculino
  1. TELECOMUNICAÇÕES
    mensagem telegráfica transmitida através de cabo submarino; cabo.



esbraseado
adjetivo
  1. 1.
    transformado em brasa.
  2. 2.
    muito quente.