A família está toda reunida na sala de jantar. O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpando numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade: Dona Bernardina, sua esposa, está muio entretida a limpar a gaiola de um canário belga. Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distraí-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossa folhas diárias.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
- Papai, que é Plebiscito!
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
- Papai?
Pausa.
- Papai?
Dona Bernardina intervém:
- Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar que lhe faz mal.
O senhor rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
- Que é? que desejam vocês?
- Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
- Ora, essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito!
- Se soubesse não perguntava.
O Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola.
- Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
- Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
- Que me diz?! pois a Senhora não sabe o que é plebiscito?
-Nem eu nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
- Ninguém, alto lá! Eu creio que tenho dado prova de não ser nenhum ignorante.
- A sua cara não me engana. Você o que é, é muito prosa. Vamos: se sabe diga o que é plebiscito! Então? a gente está esperando! Diga!...
- A Senhora o que quer é enfezar-me?
- Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa, quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, o menino ficou sem saber!
- Proletário...- acudiu o Senhor Rodrigues - é o cidadão que vive do seu trabalho mal remunerado...
- Sim, agora sabe porque foi ao dicionário. Mas dou-lhe um doce se me disser o que é plebiscito, sem se arredar desta cadeira.
- Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
- Oh! ridículo é você mesmo que se faz. Seria tão simples dizer: "Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho".
O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
- Mas se eu sei...
- Pois, se sabe diga!
- Não digo para não me humilhar diante de meu filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! vá para p diabo!
E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. No quarto havia o que ele mais precisava na ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
***
A menina toma a palavra:
- Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
- Não tosse tolo, observa Dona Bernardina, e confessasse francamente que não sabe o que é plebiscito.
- Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão:
- Sim! sim! façam as pazes! diz a menina num tom amigo e suplicante. Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito.
Dona Bernardina dá um beijo na filha e vai bater à porta do quarto.
- Seu Rodrigues, venha sentar-se, não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa e vai sentar-se na cadeira de balanço.
- É boa! brada o Senhor Rodrigues, depois de largo silêncio; é muito boa! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!
A mulher e os filhos aproximam-se dele. O homem continua num tom profundamente dogmático:
- Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há por ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
- Plebiscito é uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! è mais um estrangeirismo.
FIM
Plebiscito -Plebiscito é um voto ou decreto passado em comício, originariamente obrigatório apenas para os plebeus. Hoje em dia, o plebiscito é convocado antes da criação da norma, e são os cidadãos, por meio do voto, que vão aprovar ou não a questão que lhes for submetida. Wikipédia
E o Senhor Rodrigues viu certo no dicionário: na Roma antiga, decreto aprovado em comício popular, orign. obrigatório apenas para os plebeus.
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