Era pelo domingo, véspera quase da colheira. O milharal estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dias antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.
Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno.
- Não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de "malícia" num cupim velho do pé de maria-preta. Não esquecesse...O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões, foi ao paiol de palha de arroz mais uma vez avaliando com, a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes de coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno.
- Ora, deixassem lá em paz os passarinhos.
Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.
O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando do outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão, - nesses dias sem pingo dágua - galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde e galharada esguia, toda tostada desde a época de queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada. Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera ninho dessa estação.
O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-os num repente, surpreendido. É que a picadela incisiva, dolorosa rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.
E enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-o, persistentes, seus olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...
O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha....
Era um urutu, o terrível urutu do sertão, para qual a mezinha doméstica, nem a dos campos, possuíam salvação...
- Perdido...completamente perdido...
O réptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta: e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo "jacaré" inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.
Então, sem vacilar, num movimento inda mais brusco, apoiando a mão molesta à casa carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.
E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, com um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...
(TROPAS E BOIADAS)
Canícula - calor muito forte.
embira: Folha broto da palmeira buriti, do qual se extrai uma fibra mais fina denominada seda que se usa para fabricação de cordas, redes, esteiras, ...
coivara
substantivo feminino
- 1.BRASILEIRISMO•BRASILquantidade de ramagens a que se põe fogo nas roçadas para desembaraçar o terreno e adubá-lo com as cinzas, facilitando a cultura; fogueira.