quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A SOMBRA- CONTOS DE ANDERSEN

    Nas terras quentes, o sol é abrasador, como todos sabem; e lá as pessoas ficam com a pele escura, da cor do mogno. E foi para essas terras que resolveu ir um homem instruído, natural de país frio; julgava que havia de viver, lá da mesma maneira que na sua terra natal, mas em breve verificou que se enganara!
   Viu-se obrigado a permanecer dentro de casa, como todas as pessoas sensatas; as portas e janelas tinham de conservar-se fechadas o dia inteiro: era como se a casa inteira dormisse, ou estivesse vazia.
   A rua estreita, cheia de moradias altas, estendia-se de modo que o sol batia em todas as casas, da manhã à noite. E o calor tornava-se verdadeiramente insuportável!
   O sábio das regiões fria era jovem, e parecia muito inteligente; começou a imaginar que estava em uma fornalha ardente, e isto foi agindo sobre o seu espírito, de sorte que chegou a emagrecer. Até a sua sombra começou a minguar, e ficou muito menor do que era quando ele estava no seu país; além disso, o sol fazia-a desaparecer: ela só era vista de manhã e à tardinha, quando ele estava no horizonte. Era então um prazer vê-la. Assim que traziam luz para o quarto, a sombra estirava-se na parede, e até pelo teto, de tão grande que ficava; porque precisava de muito espaço para todo o seu comprimento. O homem sábio ia para o balcão, para se distender; e assim que as estrelas começavam a espiar lá do céu azul, ele se sentia revigorar.
    Começavam então a aparecer outras pessoas em todas as sacadas da rua - porque nos países quentes todas as janelas tem sacadas, e a gente precisa respirar ar fresco. E tudo se movimentava na rua, tanto embaixo como em cima. Alfaiates, sapateiros e toda a espécie de pessoas saíam para as calçadas; vinham para fora, cadeiras e mesas, e velas acesas- sim, mais de mil velas ardiam. E um conversava e outro cantava, e outros ainda caminhavam, e sinos tocavam; e passavam burrinhos com suas campainhas - porque os asnos também traziam campainhas- dlin, dlin, dlin! Moleques da rua gritavam e apupavam, estourando balões; vinham também gatos-pingados, porque havia funerais com salmos e hinos; e passavam ainda as carruagem que iam e vinham, e as pessoas que chegavam...Sim, em verdade era grande o movimento na rua. Somente numa casa, a que ficava em frente daquela onde morava o estrangeiro, o silêncio era completo; e contudo alguém a habitavam porque havia flores no balcão; estava tão viçosas que certamente eram regadas- sim, ali morava forçosamente alguém. A porta ficava aberta até tarde da noite, mas lá dentro era escuro, pelo menos na sala da frente. Do interior da casa vinham sons de música. O estrangeiro sábio achou aquilo maravilhoso; mas...talvez isso fosse só na sua imaginação, porque ele achava tudo maravilhosos ali naquelas terras quentes, exceto o sol. O senhorio do estrangeiro disse que não sabia quem alugara a casa em frente; lá não se via ninguém; e quanto à música, achava-a excessivamente fatigante. E explicava:
  - Parece que uma pessoa se põe ali a estudar trecho, dizendo consigo: " Hei de aprendê-lo!" e contudo, nunca chega a tocar direito, por mais que se exercite.
  Uma noite o estrangeiro acordou- ele dormia com a porta da sacada aberta- e, como vento tinha levantado a cortina, pareceu-lhe que da casa da frente vinha uma claridade estranha; todas as flores brilhavam como chamas vivas, com as cores mais lindas, e no meio das flores estava uma jovem, esbelta e graciosa - e parecia que ela mesma também brilhava: àquela luz sentiu-se até ofuscado. Abriu bem os olhos...sim! estava bem acordado! Saltou da cama, foi devagarinho para para a janela e espiou por detrás da cortina; mas a moça desaparecera, as flores já não brilhavam; estavam ali, frescas e viçosas como sempre; a porta ficara entreaberta, e lá dentro, muito longe, soava a música, tão suave, tão delicada, que podia na verdade levar a gente a sonhar. Parecia uma música encantada. Mas...quem morava ali? Onde ficava, de fato, a entrada da casa? Porque tanto na rua principal como na travessa do lado, todo o rés-do-chão era cheio de lojas, que não poderiam servir de entrada da casa. Uma noite o estrangeiro tomava a fresca, na sacada. A luz ardia no quarto, mesmo por detrás dele; era pois muito natural que sua sombra se projetasse na parede da casa fronteira. Sim, lá estava ela bem em frente, sentada entre as flores da outra sacada; e quando o estrangeiro se movia, a sombra também se movia, como o faz qualquer sombra.
  - Creio que minha sombra é o único ente vivo que está naquela casa- disse o sábio. - E como fica bem entre as flores! A porta está entreaberta: a sombra podia agora entrar lá dentro, olhar em roda, e voltar para me dizer o que há por lá...Vamos! Presta-me esse serviço, minha sombra!
   E continuou, por brincadeira:
   - Fazem-me o obséquio de entrar lá! Então, não vais?
   Fez um sinal com a cabeça para a sombra, e a sombra também lhe fez sinal.
   - Mas então? Entra, entra! Não fiques aí parada!
  O estrangeiro levantou-se, e a sua sombra também se levantou lá na sacada do vizinho da frente; o estrangeiro voltou-se e a sombra também se voltou. Sim! Se alguém tivesse prestado atenção, teria visto muito distintamente a sombra entrar pela porta entreaberta da casa do vizinho, justamente no instante em que o estrangeiro entrou no seu quarto, deixando cair atrás de si a comprida cortina da janela.   

   No dia seguinte, de manhã, o estrangeiro saiu para tomar café e ler os jornais.
  - Mas que é isto? - disse ele, quando ia andando ao sol. - Que é da minha sombra? Ah! Então ela foi mesmo ontem à noite àquela casa e não voltou. Mas é um coisa muito esquisita!
   Aquilo aborreceu-o, não tanto por ficar sem sombra; mas é que sabia a história do homem sem sombra. Era muito conhecida no seu país, lá nas terras frias; e se agora voltasse e contasse lá o seu caso, diriam que estava plagiando, coisa que não tinha necessidade de fazer. Deliberou, pois, nada dizer; o que foi uma resolução muito sensata.
   À noite tornou a ir para sacada. Deixara a luz atrás do lugar onde ia ficar, porque sabia que a sombra sempre quer ter o dono por anteparo; mas - que coisa estranha! - não conseguiu que ela viesse. Fez-se pequenino; fez-se grande; mas nada de aparecer a sombra. E o sábio dizia:
  - Olá! Olá!
   Tudo foi inútil.
   Era uma coisa muito aborrecida. Mas nos países quentes tudo cresce muito depressa; e mal se passaram oito dias ele notou, com muita alegria, que lhe brotava das pernas uma nova sombra, quando estava ao sol. Em três semanas já tinha uma sombra respeitável, que foi continuando a crescer durante a viagem que ele fez para o seu país, nas terras do Norte; de sorte que afinal obteve uma sombra tão comprida e tão larga, que era mais que suficiente.
    Ficou então no seu país, e escreveu livros a respeito de tudo o que era verdadeiro e bom e lindo no mundo; e passaram-se dias, e anos - sim! muitos anos tinham rolado por sobre a sua cabeça!
    Uma noite estava ele sentado no seu quarto quando bateram de mansinho à porta.
   - Entre! - disse ele.
   Mas como ninguém entrasse, foi abrir a porta e viu um homem tão extraordinariamente magro que teve uma sensação esquisita ao dar com ele. Estava o estranho muito bem vestido - devia ser um cavalheiro.
  - A quem tenho a honra de falar? - perguntou o sábio.
  - Sim, não me enganara - disse o estranho. - Logo imaginei que o senhor não me reconheceria. Deitei corpo, e agora até tenho carne; e tenho roupas, como vê. O senhor certamente nunca pensou que havia de me ver nestas condições...Não conhece mais a sua velha sombra? Sem dúvida nunca esperou ver-me de volta...Tenho tido muita sorte, desde que nos separamos. Melhorou muito, em todos os sentidos. E se eu quiser comprar a minha libertação do serviço, tenho meios suficientes para isso.
   E ao dizer essas palavras fazia tilintar uma pena de bugigangas de ouro que lhe pendiam da cadeia do relógio; e meteu a mão na grossa corrente de ouro que usava ao pescoço. E como lhe resplandeciam os dedos, cheios de anéis de brilhantes! E tudo aquilo era pura gema! Nada de quinquilharia!
   - Não! Não volto a mim, de surpresa! - disse o sábio. - Mas que significa isto?
   - Certamente que é alguma coisa fora do comum disse a sombra. - Mas o senhor mesmo não é um homem comum; e eu, como o senhor bem sabe, lhe segui os passos desde criança. Assim que o senhor achou que eu já podia andar sozinho no mundo, tomei o meu caminho; acho-me hoje em ótimas circunstâncias; mas nasceu-me um desejo de vê-lo ainda uma vez antes que o senhor morra- porque o senhor há de morrer algum dia, não é? Além disso desejava tornar a ver esta terra, pois bem sabe que a gente sempre guarda o mesmo amor à terra natal. Vejo que o senhor obteve outra sombra. Devo-lhe eu alguma coisa, ou à outra sombra? Se assim for, será obséquio dizer-me quanto é.
   - Não, mas isto...E és realmente tu? - disse o sábio. - É coisa extraordinária! Nunca pensei que a sombra antiga de um homem pudesse tornar a vir ter com ele!
  - Diga-me quanto tenho de lhe pagar - disse a sombra - porque não gosto de ficar devendo a ninguém.
  - Mas que ideia é essa tua? De que dívida falas? És tão livre como qualquer outra pessoa. Estimo muitíssimo saber que tiveste tanta sorte. Senta-te, amigo velho, e conta-me o que te aconteceu, e que viste na casa do nosso vizinho da frente, lá - nas terras quentes.
   - Sim, contar-lhe-ei tudo - disse a sombra sentando-se. - Mas o senhor vai me prometer que, onde quer me encontre, não dirá a ninguém nesta cidade que eu fui a sua sombra. Tenho ideias de casamento, visto que possuo mais que o suficiente para sustentar uma família.
  - Fica descansado - disse o sábio. - A ninguém direi quem és atualmente. E aqui está a minha mão: promete-o, e é o bastante, entre dois homens de palavra.
   - Entre um homem e uma sombra de palavra - retificou a sombra.
   Era na verdade assombroso ver quanto se assemelhava a um homem. Vestia-se inteiramente de preto, e a roupa era da mais fina qualidade; os sapatos de verniz, e o chapéu, daqueles que podem ser dobrados para dentro, de modo que só o que aparece é a aba e o fundo da copa - além das coisas de que já se falou: berloques, cadeia de ouro, anéis de diamantes. Sim, a sombra estava muito bem vestida, e era na verdade a roupa que lhe dava a completa aparência de um homem.
  - Vou agora contar todas as minhas aventuras - disse a sombra.
  E sentou-se, firmando os sapatos lustrosos com todo o peso de que dispunha sobre o braço da nova sombra do sábio, que jazia aos seus pés, como um cãozinho. Aquilo parecia arrogância; mas talvez fosse apenas para obrigar a sombra nova a aferrar-se ao seu dono. Mas a outra conservava-se sossegada e tranquila no chão, disposta a ouvir tudo atentamente; porque também ela desejava saber de que maneira uma sombra pode libertar-se, e fazer a sua independência.
  - Sabe o senhor quem morava na casa fronteira? - disse a sombra.     - Era a mais encantadora de todas as criaturas; a Poesia! Estive lá três semanas, mas isso valeu tanto como se eu tivesse vivido ali três mil anos, e lido tudo o que foi composto e escrito; poesia e prosa. Posso bem dizê-lo, porque é a pura verdade: eu vi tudo, e sei tudo!
    - A poesia! - disse o sábio. - Mas sim, sim! Ela vive muitas vezes como anacoreta. A Poesia! Sim, eu a vi- por um instante curtíssimo, mas meus olhos estavam pesados de sono...Ela apareceu na sacada, e era tão radiosa como a aurora boreal; e as flores que a cercavam pareciam chamas vivas. Mas dize tudo...entraste na sacada, passaste pela porta de vidro, e então...
   - Então, achei-me na ante-sala. O senhor ainda estava sentado, olhando para a frente, lá do outro lado. Não havia luz; era uma espécie de penumbra, apenas, mas estavam abertas as portas de uma fila de salas, todas iluminadas. Tão densa era aquela massa de luz, que certamente me teria matado, se eu tivesse ido imediatamente ter à presença da jovem; mas fui prudente e refleti antes de entrar.
   - E que viste então? - perguntou o sábio.
   - Vi tudo, e dir-lhe-ei tudo. Mas...não é por arrogância, mas como um homem livre, que sou, e com os conhecimentos que possuo- em falar na minha posição no mundo, nem na minha opulência - desejava que o senhor me falasse com menos familiaridade, e de vez em quando se lembrasse de me dizer senhor.
    - Peço-lhe desculpas, senhor- disse - o sábio. É um hábito antigo em mim, não muito fácil de extirpar. O senhor tem todo o direito e não me esquecerei de sua recomendação. Mas agora o senhor deve  dizer-me o que viu?
    - Tudo - disse a sombra.- Porque eu vi tudo, e sei tudo!
   - E como era lá dentro das salas? Havia ali a frescura dos bosques? Ou a paz solene de um templo? As salas eram como firmamento estrelado, que vemos do alto de uma montanha?
     - Ali, havia de tudo! - retrucou a sombra. - Eu não penetrei, é verdade, senão até a ante-sala; não passei da ante-sala, onde reinava uma meia luz, mas ali mesmo me sentia perfeitamente bem. Vi tudo, e tudo sei. Em suma, estive na antecâmara da Corte da Poesia.
   - Mas que foi que o senhor viu? Viu todos os deuses dos tempos antigos atravessando os vastos salões? Viu os heróis dos tempos passados que combateram ali? Viu crianças amáveis brincando e narrando seus sonhos?
   - Digo-lhe que lá estive, e portanto vi tudo o que havia. Se o senhor houvesse entrado também, não teria permanecido um ser humano, mas eu ali me tornei um homem! Além disso, aprendi a conhecer a minha essência interior, minhas qualidades inatas, minha afinidade natural com a Poesia. É verdade que no tempo em que estive como senhor, eu não me preocupava com isso, mas o senhor há de se lembrar de uma coisa: como eu ficava grande ao nascer e ao pôr do sol. Entretanto, ao meio-dia mal podia ser distinguida. Eu não compreendia então a minha essência interior: foi na antecâmara que ela se me revelou; e tornei-me um ser humano! Saí dali em plena maturidade, mas o senhor já não estava nas terras quentes. Sendo homem, sentia-me envergonhado de sair como estava; não tinha sapatos, nem roupas; e faltava-me também aquele exterior verniz humano, pelo qual se reconhece um homem; e tomei uma resolução - e vou dizer-lhe tudo, porque o senhor não vai publicar isso em um livro - escondi-me por detrás de um doceira, sem que a mulherzinha sonhasse a quem estava abrigando. Só me aventurei a sair à noite; vaguei pelas ruas à luz do luar; espichei-me pelas paredes acima, o que me lisonjeava singularmente a vaidade. Andei abaixo e acima, espiei para dentro dos quartos, pelas mais altas janelas, e até pelo teto; espiei onde ninguém podia espiar, vi o que ninguém mais viu, o que ninguém devia ver! E a verdade é que este mundo é um mundo muito mau, e eu não seria um ser humano se não estivesse estabelecido o fato de que o homem tem certa importância na escala da criação. Vi as coisas mais inacreditáveis da parte de esposas, maridos, pais, e até das "doces, incomparáveis crianças". Vi o que nenhum mortal tem o poder de ver, mas que todos gostariam de conhecer, isto é: a maldade de seus vizinhos. Se eu tivesse escrito um jornal, seria lido com avidez; mas escrevi diretamente às pessoas, e foi um pânico geral nas cidades por onde passei. Todos tinham medo de mim, e todos me amavam tanto! Os professores consideravam-me um professor; os alfaiates davam-me roupas novas( tenho o guarda-roupa bem guarnecido); o administrador da casa da moeda cunhava novas moedas para mim; e as mulheres diziam que eu era belo: e assim foi que me tornei o que sou hoje. E agora devo despedir-me do senhor. Aqui está o meu cartão; moro do lado do Sol nesta rua, e estou sempre em casa nos dia de chuva.
   E a sombra foi embora.
  - Que coisa extraordinária! - disse o sábio.
  Meses e anos se passaram; um dia a sombra tornou a aparecer.
   - Como passa? - perguntou ela.
   - Ah! - disse o sábio. - Escrevo sobre a verdade, e sobre o bem, e o belo; mas ninguém quer ouvir falar em tais coisas! Estou desesperado, porque isso me aflige tanto!
   - Aí está o que eu nunca faço! Eu engordo e fico forte, e é o que todos devem fazer. O senhor não compreende o mundo; dessa maneira vai acabar por adoecer. O senhor deve viajar!" Olhe, vou fazer um passeio no verão; poderia acompanhar-me. pensava mesmo em convidar um companheiro. Quer ir comigo como minha sombra? Seria para mim um grande prazer...E pagarei todas as despesas.
  - Oh! Não...isto é demais!
   - São opiniões - disse a sombra. - Seria bom para o senhor, viajar. E todas as despesas da viagem ficariam por minha conta.
   - Não...é absurdo - retrucou o sábio.
  - Mas o mundo é assim mesmo, e assim será sempre!
   Depois de dizer isto a sombra retirou-se.
  O sábio não ia lá muito bem. Vivia cheio de cuidados e tristezas; e tudo o que dizia sobre a verdade, o bem e o belo era caviar para a multidão - como se diz, em linguagem familiar - era o mesmo que lançar pérolas a porcos. E o sábio acabou por adoecer.
  - O senhor está que parece uma sombra - diziam-lhe os amigos.
   - O senhor deve ir a uma praia de banhos - disse a sombra, que foi visitá-lo outra vez. - É o seu único recurso. Vou levá-lo, em recordação de nosso velho conhecimento. Custearei as despesas da viagem, e o senhor pode depois publicar uma descrição dela; e fazê-la humorística, se quiser. Quero ir a uma praia de banhos, porque a minha barba não cresce direito - o que não deixa de ser uma espécie de doença - e um homem deve ter barba. Agora trate de ser sensato e aceite o oferecimento; e viajaremos como amigos.
   E fizeram a viagem. A sombra era agora o dono, e o dono era a sombra. Andaram de carro, a pé e a cavalo juntos; iam lado a lado, ou um adiante e outro atrás, segundo a posição do sol. A sombra sempre tinha o cuidado de ficar no lugar do dono, mas o sábio não se importava com isso: era homem superior, e particularmente modesto e atencioso. E um dia disse a sombra:
  - Como agora somos companheiros de viagem, e nos criamos juntos, desde a infância, por que não havemos de nos tratar por tu?  Não seria mais agradável?
   - O senhor tem razão- disse a sombra, que era agora o dono. As suas palavras são justas e bem intencionadas; e vou responder no mesmo espírito; o senhor, que é sábio deve saber quão caprichosa é a natureza humana. Há pessoas que não podem tocar em papel pardo: ficam doente. Outras sentem frio na medula quando alguém passa a unha na vidraça. Pois eu tenho exatamente a mesma sensação quando o senhor me diz tu. Sinto-me estendido no chão, reduzindo à minha primitiva condição em relação ao senhor. O senhor bem compreende que isto é um mero caso de sentimento e não de altivez. Não posso, pois, tolerar que me diga tu; mas chamá-lo-ei de boa vontade pelo seu nome de batismo, e assim, ao menos, a metade do seu desejo ficará satisfeita.
   A partir de então, a sombra passou a chamar pelo nome de batismo o seu primitivo dono.
  - Isto não é direito - pensava este. - Que eu tenha de lhe dizer senhor e ele me diga tu!
   Mas via-se obrigado a tolerar aquela situação.
   Chegaram à praia balneária, que hospedava muitos estrangeiros, e entre outros uma princesa, uma criatura muito linda, que sofria de vista-muito-aguda, moléstia verdadeiramente assustadora.
   Percebeu ela imediatamente que o estrangeiro recém chegado era uma pessoa completamente diferente de todas as outras.
  - Dizem que ele veio cá para conseguir que lhe cresça a barba; mas eu vejo qual é o verdadeiro motivo de sua vinda; ele não pode deitar sombra.
   Aquilo lhe aguçou a curiosidade, e, para satisfazê-la, ela entabulou conversação com o estrangeiro durante o passeio do dia. E como era filha de rei, não estava obrigada a observar cerimônia alguma, e foi logo dizendo:
   - A sua doença resulta de que o senhor não pode deitar sombra, não é?
   - Vossa Alteza Real deve estar melhorando consideravelmente - disse a sombra. - Sei que sua moléstia consiste em ver tudo muito claro; mas essa percepção está diminuindo: tenho uma sombra, por sinal, fora do comum! A senhora não vê aquela pessoa que está sempre a meu lado? Outros tem uma sombra comum, mas eu não posso suportar coisas vulgares. Há pessoas que dão aos criados, para libré, roupas mais finas do que as que elas próprias usam, da mesma maneira eu quis ter o prazer de ter um sombra vestida como um homem- sim, a senhora mesma vê que eu até lhe forneci uma sombra. Não deixa de ser dispendioso, é certo; mas eu gosto de ter coisas assim extravagantes.
    - Será possível - pensou a princesa - que eu esteja curada? Então estes banhos são os melhores do mundo! Hoje em dia a água tem propriedade admiráveis! Mas vou permanecer ainda aqui, porque isto está ficando muito divertido! Este príncipe estrangeiro - porque deve ser um príncipe - agrada-me em extremo. Oxalá que não lhe cresça a barba, senão irá embora dentro em pouco!
   À noite a filha de rei dançou com a sombra no grande salão de baile. Ela era leve, mas ele era mais leve ainda; a princesa nunca vira um par semelhante. Disse-lhe ela onde morava; ele estivera lá, em ocasião em que aprincesa se encontrava ausente; tinha espiado pelas janelas do palácio tanto embaixo como em cima. Ouvira isto, e aquilo, e mais aquilo; podia, portanto, dar tais respostas à filha do rei, e fazer tais alusões, que a deixaram, na verdade, assombrada. Devia ser aquele o homem mais instruído do mundo, e sentia um respeito desmedido pela sua sabedoria. Assim foi que, quando ela dançou de novo com ele, sentiu-se apaixonada - fato que não passou desapercebido à sombra, porquanto os olhos da princesa quase lhe traspassavam o corpo. Dançou com ele ainda pela terceira vez, e estava quase a ponto de lhe dizer o que sentia; mas foi prudente: lembrou-se do seu país, e do seu reino, e de tanta gente sobre a qual havia de reinar um dia.; E disse consigo:
   - É homem muito inteligente -isso é muito bom; dança admiravelmente - e isto é igualmente muito bom; mas a questão é: terá sólidos conhecimentos? É uma consideração muito importante, e preciso submetê-lo a uma prova.
   E ela começou imediatamente afazer-lhe uma série de perguntas muito difíceis, a quem nem ela própria poderia responder; e a sombra mudou de expressão.
   - O senhor não pode resolver estas questões?
  - Eu teria podido resolvê-las, sim, mesmo quando era criança; acho até que minha sombra, que lá está junto da porta, é capaz de responder às suas perguntas.
   - Sua sombra? Mas isso seria na verdade maravilhoso!
   - Não afirmo que ele possa responder - disse a sombra - suponho-o apenas. Acompanha-me há tantos anos, e ouve-me conversar tantas vezes...sim, creio que ele pode responder. Mas permita Vossa Alteza Real que eu lhe observe que ele tem tanto orgulho de ser tomado por um ser humano que, para que conserve o bom humor- o que é indispensável para o acerto das respostas - deve ser tratado como um homem de verdade.
    - Mas eu compreendo bem esse capricho! - disse a princesa.
  E, dirigindo-se ao sábio, que lá estava perto da porta, falou com ele sobre o sol e a lua, as verdes matas, os habitantes da terra, tanto de perto como de longe; e tudo respondeu ele com siso e sabedoria.
   - Que homem não há de se aquele que tem uma sombra tão sábia! pensou a filha de rei.- Será uma benção para o meu povo e para o meu reino se eu o escolher para marido...E assim será.
   Não foi difícil o acordo, mas a princesa não queria que se publicasse o contrato de casamento senão enquanto retornasse ao seu reino.
   - Ninguém saberá uma palavra disto - disse a sombra - não o direi nem mesmo à minha sombra!
    E a sombra lá tinha suas razões particulares para falar desse modo.
    Estavam agora na terra onde morava a princesa. E a sombra disse ao sábio:
   - Escuta, meu bom amigo: sou agora tão feliz e tão poderoso que mais não é possível. Desejo, por isso mesmo fazer por ti alguma coisa fora do comum. Viverás para sempre comigo no palácio, irás comigo na carruagem real, e terás um salário anual de cem mil risdales. Mas para isso, terás de ser chamado sombra por todo o mundo; e nunca deixarás perceber que foste homem algum dia; e uma vez por ano, quando me sentar na sacada, à luz do sol, ficarás estendido a meus pés, como uma sombra de verdade! Porque agora ficas sabendo que vou casar com a filha do rei; e o casamento será hoje mesmo!
   - Não! Isso seria levar o absurdo muito longe! - Protestou o sábio, - Não posso, não quero submeter-me a isso! Mas...seria nada menos que iludir a nação inteira, e a filha do rei! A filha do rei, assim enganada! Revelarei toda a verdade; direi que eu sou um homem, e tu não passas de uma sombra - e que de homem tens apenas a roupa!
   - Ninguém te acreditará- disse a sombra. - Sê razoável, senão chamo a polícia.
  - Vou imediatamente falar com aprincesa!
   - Mas eu irei primeiro-replicou a sombra - e tu, meu finório, irás para a prisão!
   E dito e feito - porque os guardas obedeceram àquele que ia casar com a filha de rei.
   - O senhor está tão trêmulo! - disse a princesa, quando a sombra entrou na sala. - Que aconteceu? Não vá adoecer logo hoje, que vamos celebrar nosso casamento!
   - Acabo de passar pela coisa mais espantosa que se possa imaginar! - explicou a sombra. - Imagine só... sim, é verdade que o cérebro de uma pobre sombra não pode ser muito resistente...mas imagine! Minha sombra enlouqueceu. Julga agora que se tornou um homem, e que eu...mas imagine só! - que eu sou a sua sombra!
   - É espantoso! Mas está preso, não é ?
   - Claro que sim! E receio muito que jamais se recobre...
   - Coitada da sombra! - disse a princesa. - É na verdade muito infeliz! Seria até obra de caridade libertá-lo do fio de vida que tem; e, como as criaturas de nossos dias são tão prontas em tomar partido pelo povo miúdo contra os graúdos, parece-me de boa política livrarmo-nos dele em segredo!
   - Sinto muita pena, porque era um servo fiel - murmurou a sombra , fingindo suspirar.
   - Que caráter nobre é o seu! - disse a princesa, curvando-se diante dele. 
    À noite a cidade inteira resplandecia de luzes; os canhões disparava -Buuum! Buuum! Os soldados apresentavam armas. Era um grande casamento aquele! A filha de rei e a sombra apareceram na sacada, para se mostrar ao povo, e para ouvir ainda maiores aplausos.
   O sábio, esse não ouviu nada - porque já tinha sido executado.
FIM

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