sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A PENA E O TINTEIRO - CONTOS DE ANDERSEN

 





Era no gabinete de um poeta. o tinteiro achava-se sobre a mesa, e alguém disse:
  - É estranho quanta coisa pode sair de um tinteiro! Qual será a próxima obra? É na verdade estranho!
   - Sim - disse o tinteiro- É prodigiosa! E é o que estou sempre a dizer. - Dirigindo-se à pena e aos outros objetos que estavam ali e podiam ouvi-lo, continuou:
   - É quase inacreditável. Realmente, não sei qual será a futura obra que vai sair, quando o homem se põe a me sugar. Uma gota que tira de dentro de mim basta para encher meia página de papel, e quanta coisa pode  estar contida nela! Sou na verdade uma coisa muito singular! É de mim que saem todas as obras do poeta, todos esse seres vivos que o leitor julga conhecer, os sentimentos ternos, o humor, as encantadoras descrições da natureza...Eu mesmo não compreendo, porque não conheço a natureza; mas tudo isso está em mim! Foi de mim que saíram e continuam saindo aquelas multidões de moças, lindas e graciosas, de galhardos cavalheiros, montando soberbos corcéis; de cegos e aleijados - e nem eu mesmo sei quanta coisa mais. Mas, palavra de honra! Faço tudo isso sem pensar.
   - Nisso tens razão - disse a pena. - Tu pensas absolutamente em nada; a não ser assim, saberias que apenas forneces o líquido; dás a matéria líquida, para que eu possa manifestar o que reside em mim, aquilo que escrevo. Sim! Quem escreve é a pena! Homem nenhum o põe em dúvida. E no entanto, a maioria dos homens tem tanta compreensão da poesia como um tinteiro velho.
    - Ora, tu não tens muita experiência. Mal faz uma semana que estás servindo, e já te gastaste até a metade! Imaginas que és o poeta...Não passas de uma servente; antes que viesses já tive muitas outras da tua espécie, tanto da família dos patos, como de fabricação inglesa:  conheço tanto a pena de tubo, como a de aço. Muitas já me auxiliaram, e ainda hei de me servir de muitas outras, quando vier o homem que faz os movimentos em meu lugar, e escreve o que sai do meu interior.
   - Panela de tinta!
     Á tardinha voltou o poeta. Assistira a um concerto, ouvira um excelente violinista, e sentia-se arrebatado por aquela arte maravilhosa. O artista tirava do instrumento sons prodigiosos: ora fazia-o vibrar, como sonoras gotas d'água, ora como pérolas a rolarem; já, era um coro de passarinhos gorjeando, já, o murmúrio do vento num pinheiral. O poeta tivera a impressão de ouvir o pranto do próprio coração, mas em melodias que pareciam ressoar em uma voz de mulher. Era como se vibrassem não só cordas do violino, mas também o cavalete, e as cravelhas, e o tampo. Fora um concerto extraordinário!
   Era certamente difícil, tocar assim; mas parecia apenas um passatempo; era com os e o arco dançasse pelas cordas, acima e abaixo. Diria até que qualquer pessoa poderia imitá-lo...O violino soara por si, o arco tocara sozinho; ambos, sozinhos, faziam tudo, e os ouvintes esqueciam o mestre que os conduzia, inspirando-lhes vida e alma.
   Sim, quem fica esquecida era o mestre; mas o poeta lembrou-se dele; pronunciou-lhe o nome e tomou nota de suas impressões.
  - Que coisa ridícula, o violino e o arco a se vangloriarem de suas façanhas!E, contudo, nós, homens, quantas vezes o fazemos - o poeta, o artista, o inventor, o cientista, o general - todos o fazem! E no entanto, somos apenas os instrumentos, tocados pela mão de Deus, Nosso Senhor. A ele somente se deve toda a glória. Nós nada temos de que nos orgulhar.
   Sim! Foi isso o que poeta escreveu, em uma parábola, a que chamou "O Mestre e os Instrumentos".



   - Quem levou uma boa sova, foste tu! - disse a pena, quando de novo se achou só com o tinteiro. - Não o ouviste ler em voz alta o que eu escrevi?
   - Sim, ele leu aquilo que eu te dei para que escrevesses. Foi uma bofetada que levaste, pela tua arrogância. Nem sequer percebes quando és alvo de ironias...Dei-te uma bofetada, saída diretamente do meu interior: eu, ao menos, conheço a minha própria malícia.
    - Pote de tinta!
   - Vareta de escrever!
   Cada um ficou com a certeza de ter respondido dignamente; e tal certeza é agradável. Tendo essa certeza, a gente pode dormir sossegada, e foi o que fizeram, pena e tinteiro.
   O poeta, esse, não dormiu. Brotavam nele os pensamentos, como jorravam os sons do violino: rolavam como pérolas, uivavam como o vento da tempestade nas florestas; e ele sentia nesses pensamentos o próprio coração, e percebia que era um raio que vinha do eterno Mestre.
   Unicamente a Ele pertence toda a glória.

FIM

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