quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O TITEREIRO - CONTOS DE ANDERSEN

Havia entre os passageiros um homem de idade; mas seu rosto tinha uma expressão tão jovial que, se  não era fingida, ele devia ser a criatura mais feliz do mundo. E era-o, conforme dizia , e ouvi de sua própria boca.
    Era dinamarquês, diretor de um teatro ambulante. carregava consigo todo o elenco, dentro de um grande caixote, pois se tratava de um teatro de fantoches.
    Seu inato bom humor fora purificado, disse ele,por um candidato à Politécnica; e essa experiência é que o tornara completamente feliz. a principio não compreendi isso, mas ele me contou a história inteira, e é a que aqui vou narrar, conforme ele a expôs.
    " Era na cidadezinha de Slagelse. Eu dava um espetáculo na sala dos Correios e tinha um público brilhante, composto todo de crianças, com exceção de duas matronas. mas de repente entra na sala um vulto vestido de preto : senta-se , ri nos trechos apropriados, bate palmas quando convém - era enfim um espectador fora do comum! Eu estava cheio de curiosidade; informaram-me que era um candidato do Instituto Politécnico de Copenhague, mandando àquele lugar para instruir a população provinciana.
    " Às oito em ponto terminava o espetáculo, pois as crianças tem de se recolher cedo, e é preciso pensar também na comodidade do público. Às nove horas o candidato começou sua preleção e suas experiências; e desde esse dia fui seu ouvinte. Era para mim coisa estranha ver e ouvir todas aquelas novidades, a maioria das quais ficava além do meu alcance. contudo , dessa observação brotou-me uma ideia; se os homens podem alcançar tal sabedoria, sem dúvida hão de ter o poder de se conservar por mais tempo, isto é, o poder de não acabar no momento em que são postos na cova.
    " O que ele fazia era uma série de pequenos milagres; no entanto, tudo era tão natural como a própria água!
    " No tempo de Moises e dos Profetas, aquele candidato da Politécnica teria sido declarado um dos sete sábios do país; na Idade Média, seria queimado. Durante a  noite inteira não pude conciliar o sono, e quando, na noite seguinte, dei outro espetáculo, ao qual o candidato também assistiu, meu bom humor transbordava. Já ouvi falar de um ator que nos papéis de galã só pensava em uma única espectadora: representava para ela somente, esquecia das outras pessoas que enchiam a plateia. Pois a minha "espectadora" era o candidato da Politécnica, o único para quem eu representava.
      " Terminada a sessão todos os títeres foram chamados à cena, e o candidato da Politécnica convidou-me para tomar um copo de vinho no seu quarto. Falou-me então de minhas comédias, e eu falei-lhe da sua ciência; acho que ambos encontramos nisso o mesmo prazer. Mas havia muitos passos, na matéria que ele expunha, que nem sempre era capaz de explicar: por exemplo, o caso de um pedaço de ferro que, ao cair por uma espiral, se torna magnético. Como se opera a transformação? É que o espirito se apodera dele. Sim : mas de onde vem o espírito?
    " Pois a mesma coisa sucede com os seres humanos neste mundo, segundo creio: Deus deixa-os cair através da espiral do tempo e o espírito apodera-se deles; é assim que surge um Napoleão, um Lutero ou outra figura semelhante.
    "- O mundo inteiro é uma cadeia de milagres- disse o candidato.  -Mas nós já nos habituamos a vê-los, de tal modo que os consideramos como coisas cotidianas.
    "E o homem falava e explicava . E era como se ele me abrisse a cabeça! Confessei francamente que se não fosse já um velhote, iria sem demora cursar o Instituto Politécnico, para aprender a examinar direitinho as costuras do mundo, apesar de me considerar, mesmo sem esses conhecimentos, uma das  criaturas mais felizes do mundo.
     " - Uma das criaturas mais felizes! - disse ele, como se saboreasse aquelas palavras . - O senhor é feliz?
     "- Sou sim; sou feliz, e sou sempre bem-vindo em todas as cidade onde chego com a minha companhia. È certo, contudo, que há uma coisa que eu bem desejaria possuir, e que às vezes me pesa sobre o bom humor, como um pesadelo: eu gostaria de ser diretor de um elenco vivo, de uma verdadeira companhia de criaturas humanas.
     " - O senhor desejaria então que seus fantoches ganhassem vida, que se tornassem atores de verdade, e queira ser seu diretor? E acha que seria, se o conseguisse, completamente feliz?
     "Ele tinha lá suas dúvidas, e discutimos o caso, sob todos os aspectos, sem chegar a um acordo. Mas tocamos nossos copos e bebemos o excelente vinho. Deve ter havido, no entanto, algum sortilégio, porque a não ser assim eu teria ficado embriagado, o que não aconteceu. Conservei sempre as ideias claras. A luz do sol inundava a sala e os olhos do candidato também irradiavam luz, a luz do sol. Elas me traziam à lembrança os deuses antigos, com sua eterna juventude, no tempo em que andavam pela terra, visitando-nos, a nós , mortais. E foi o que lhe disse; ele sorriu então, e eu juraria que era mesmo um deus disfarçado, ou pelo menos pertencia à família deles.
    " E era mesmo: meu supremo desejo ia realizar-se. Os fantoches ganhariam vida, e eu seria diretor de uma companhia de criaturas humana. Erguemos um brinde em hora desse fato,esvaziando nossos copos.
    " Ele meteu todos os meus bonecos em uma caixa e amarrou-a à minhas costas. Depois  me fez escorregar por uma espiral. Ainda ouço o ruído da queda. Achei-me deitado no soalho - disso tenho toda a certeza. A companhia inteira saltou da caixa : o espírito apossara-se de todos nós. Os fantoches tornaram-se excelentes artistas, como eles próprios diziam, e era eu o diretor. Tudo estava preparado para o primeiro espetáculo. A companhia inteira queria falar comigo, e o público também, me disputava. A dançarina afirmou que a casa viria abaixo, se eu não me equilibrasse em um pé só: era ela a figura mais importante  do elenco, e exigia que como tal a tratassem.À que fazia o papel da rainha impunha que se lhe desse este tratamento mesmo fora do palco, para não perder a prática. Outro artista, cuja única função era entregar uma carta , dava-se ares tão importantes como o primeiro galã, e afirmava que no conjunto artístico tinham ambos igual valor. O herói pediu um papel que consistisse só em deixas: sairia da cena com elas e seria aplaudido pelo público. A prima-dona queria exibir-se somente com luzes vermelhas, que combinavam com o seu tipo : não toleraria luzes azuis.
   " Ah! Perdi o fôlego e também a cabeça. Sentia-me a criatura mais miserável do mundo. Era um novo gênero humano aquele que me rodeava. Só tinha um desejo: vê-los todos de novo na caixa, e jamais ter-me tornado diretor! Disse-lhes com toda a franqueza que no fundo não passava de títeres; e , ao ouvir essas palavras, mataram-me.
      "Achei-me deitado na cama, no meu quarto.
      " Como fui ter ali e como me separei do candidato da Politécnica, é coisa que só  ele podia explicar: eu não sei de nada . O luar batia no soalho, onde se encontrava o caixote dos fantoches virado; todos os títeres estavam na maior confusão, grandes e pequenos - o elenco inteiro. Ah! Mas eu não perdi tempo: saltei da cama e logo todos eles entraram na caixa, uns de cabeça, outros de pé. Fechei o caixote, batendo a tampa com estrondo, e sentei-me em cima , dizendo:
     " - Agora vocês vão ficar aí dentro, e Deus me defenda de desejar outra vez que se tornem de carne e sangue!
     "Sentia-me aliviado: tinha recuperado o bom humor; voltara a ser mais feliz dos mortais. o candidato da Politécnica me purificara literalmente. E, radiante de contentamento, adormeci ali mesmo, sentado no caixote. Na manhã seguinte - a dizer a verdade, era meio-dia; mas eu tivera um sono maravilhoso, e dormira até tarde - de manhã, achei-me ainda sentado ali, feliz , sabendo agora que meu desejo era afinal insensato.
    " Perguntei pelo candidato da Politécnica: ele já havia partido, como os deuses gregos ou romanos.
     "Mas desde então tenho sido o mais feliz dos homens. Sou um diretor feliz. Meu elenco não resmunga, e meu público menos ainda: é , ao contrário, alegre, sinceramente alegre. Posso compilar minhas peças como bem entender, tirando o que há de melhor em todas as comédias, e conforme o meu gosto- ninguém se incomoda por isso. Peças hoje desprezadas pelos grandes teatros, mas que há trinta anos o público aclamava com loucura, peças que fizeram os espectadores derramar lágrimas, são as que agora represento, oferecendo-as à criançada; e os pequerruchos choram, como choraram o papai e a mamãe.
     " Mas eu as condenso, isso sim! As criança não gostam da conversa fiada dos namorados.
     " Não! O que elas querem é - triste, mas rápido!"


     

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