terça-feira, 19 de outubro de 2021

THOMAS MANN - O PALHAÇO - ALEMANHA

 Realmente, feito o balanço de minha vida, nada mais tenho sentido do que nojo, nojo por tudo, um nojo que me estrangula, que me persegue, que me arrepia; um nojo que, espero, algum dia me dê a força necessária para desprezar tudo e terminar meus dias. Contudo, é muito possível que durante mais um mês, ou meio ano, ou mesmo um ano inteiro, continue ainda dormindo, comendo e trabalhando de uma forma mecânica, regular e organizada, como o fiz no inverno passado, e que está em tremenda contradição com o processo de dissolução interior em que me encontro. Aliás, não é verdade que a vida interior do homem é mais forte e profunda quanto mais serena e tranquila é sua vida exterior? Não há outra alternativa: temos que viver e se acaso não podemos ser homens de ação. Se acaso temos que palmilhar uma vida passiva, assaltam-nos as forças interiores que nos destroem o caráter, transformando-nos em loucos ou heróis.

   Preparei um caderno para contar " a minha história". Por que? Talvez para fazer alguma coisa. Talvez por amor à psicologia. Talvez para justificar tudo quanto me sucedeu. A necessidade conforta. Talvez para adquirir domínio sobre mim mesmo, e poder olhar para tudo o que se passou com um sentimento algo assim como a indiferença. Estou realmente convencido que a indiferença é uma espécie de felicidade.

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   Está já tão distante a antiga e pequena  cidade de ruas angulosas, e igrejas  góticas; as suas fontes rumorejantes, os seus habitantes diligentes, simples e honrados. Está já tão distante a casa cinzenta de meus pais, onde cresci.

    Situava-se ela no meio da cidade, e guardava a memória de quatro gerações de comerciantes ricos. Sobre a porta, um dístico:"Ora et labora". Quando se entrava no "hall cujo chão era de pedra, tinha-se que subir uma larga escada, e atravessar ainda duas dependências, para chegar ao salão onde minha mãe tocava piano. Estava sentada à luz do crepúsculo, mais frágil do que nunca, em virtude das pesadas cortinas vermelhas que cobriam as janelas. As alvas figuras dos deuses das tapeçarias tinham presença maior com essa luz difusa, e pareciam escutar as notas inicias e graves do "Noturno" de Chopin que ela tanto amava e que tocava sempre lentamente, como querendo gozar a melancólica harmonia de cada uma de suas notas. O piano era velho mas, com a ação dos pedais, conseguia lograr um efeito que lembrava uma vibração longínqua e de prata. Conseguia, realmente, alcançar uns curiosos efeitos.

   Eu me sentava numa poltrona de veludo de costas altas, ouvia e contemplava minha mãe. Era pequena e frágil, e trajava quase sempre roupas acinzentadas. Seu rosto magro não era belo: porém emoldurado por seu cabelo ligeiramente crespo, tinha uma expressão infantil; e quando, com a cabeça um pouco inclinada, se sentava ao piano, parecia um desses pequenos anjos que aparecem nos quadros da Virgem, a seus pés, e segurando uma lira entre aos mãos.

   Quando eu era menino, contava-me com sua voz suave e terna, histórias que só ela sabia. ou colocava suas mãos sobre a minha cabeça enquanto eu me sentava a seus pés; e assim permanecíamos, longamente, sem que me dissesse uma só palavra. Creio que esses foram as horas mais felizes e tranquilas de minha vida. Seus cabelos jamais ficaram branco. dava-me a impressão de que não envelhecia. apenas seu rosto se adelgaçava cada vez mais, e sua expressão era cada vez mais suave, mais tranquila, mais sonhadora....

   Meu pai era um senhor alto e de boa figura. Tinha uma jaqueta negra, e um colete branco, no qual guardava umas lente de ouro. Entre suas patilhas, curtas  e grisalhas, a face que, juntamente com seu lábio superior, trazia sempre escanhoada. Entre as sobrancelhas, sempre duas rugas profundas e verticais. Era um homem poderoso, e de grande influência nos negócios público. Vi homens que, depois de falarem com ele, traziam  os olhos brilhante e o ânimo levantado; outros, despediam-se cabisbaixos, e em desespero.

   Porque às vezes sucedia que eu, e talvez também minha mãe e minhas duas irmãs, assistíamos a essas cenas. Quem sabe se o fazia para que eu ficasse contagiado por seu valor e orgulho, e conseguisse ir tão longe quanto ele; ou talvez, e isto me parece mais plausível, porque  nessas ocasiões, ele necessitasse de um certo público. Sentava-se  e olhava de uma tal maneira  durante essas cenas que, apesar de eu ser ainda uma criança, imaginei que o faria por isso.

  Sentava-me num canto e, ora olhava meu pai, ora minha mãe, como se tivesse de escolher entre os dois e meditava se era preferível enfrentar a vida com o sentido sonhador dela, ou a atividade e o poderio dele. E meus olhos pousavam, por fim, no rosto sereno de minha mãe.

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    Não se pense que, exteriormente, eu me parecia com ela, e que minha vida decorria tranquila e sem incidentes. Lembro-me de uma certa atividade de minha meninice que me levava a desprezar todas as brincadeiras e amigos, e que ainda hoje recordo com alegria e prazer.

   Tratava-se de um bem completo teatro de marionetes, e com o qual me fechava no meu quarto, totalmente só, para representar os demais musicais mais extraordinários. O quarto ficava no segundo andar, e eu tratava de obscurecê-lo completamente, para depois acender uma lâmpada que instalava ao lado de meu teatrinho, pois parecia-me que a luz artificial dava um ambiente mais majestosos ao espetáculo. Sentava-se frente ao palco e, com a mão esquerda, marcava o compasso, golpeando uma caixa de cartão, que era o único instrumento musical viável.

   Logo apareciam os artistas que eu mesmo desenhava, pintava, recortava e colava em pedacinhos de cartão ou de madeira, de tal modo que pudessem manter-se de pé. Eram cavalheiros de capa e chapéu, e damas de grande beleza.

   - Boas tardes, prezados senhores! dizia eu. Como tem passado? Acabo de chegar

 Agora mesmo, porque tive de cuidar de alguns detalhes. É melhor passarmos ao guarda-roupa.

   Dirigiam-se então ao guarda-roupa, que ficava atrás do cenário. Voltavam completamente transformados em trajes artísticos, para espiar por um buraquinho do pano, que era a assistência, e se acaso era ou não numerosa.

   Geralmente, a assistência era satisfatória. Então, eu tocava uma campainha, e dava início ao espetáculo levantando a batuta, e apreciando sinceramente o profundo silêncio que produzia na sala esse meu gesto autoritário.

   Depois, a um sinal da batuta, golpeava a caixa de cartão começando assim o surdo ribombar do tambor, para em seguida iniciar a abertura com as trombetas, clarinetes e flautas, cuja característica tonal eu podia, incomparavelmente, imitar com a boca. Esta música soberba convergia para um "crescendo" poderoso, momento em que se levantava o pano, revelando um bosque  sombrio ou uma sala aristocrática. E só então se iniciava o drama.

  Este, já estava mentalmente estudado, mas sempre tinha que improvisar alguns detalhes; o mais imponente, quando trinava o clarinete e percutia o bombo, eram uns versos curiosos e sonoros, repletos de palavras heroicas e audazes, que  rimavam de vez em quando, mas que raramente tinham um sentido lógico. E a ópera de cartão, assobiando e cantando de quando em quando, ao mesmo tempo que movimentava com a mão direita os artistas, tendo ainda a habilidade de superar as dificuldades da encenação e de aplaudir ao fim de cada cena emocionante, ou no final de cada ato. O pano era levantado repetidas vezes havendo mesmo ocasiões em que era necessário que se levantasse o regente, que então se voltava para a sala, para saudar a assistência com um gesto de emoção orgulho e agradecimento.

   E na verdade quando, após a penosa representação, empacotava o meu teatrinho, invadia-me um cansaço feliz, como o que deve experimentar um grande artista que, triunfalmente, acabava de  desempenhar o melhor de seus papeis. Esta brincadeira foi o mais agradável de meus passatempos até nos treze ou quatorze anos.

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   Porém dificilmente recordo como decorreu o resto de minha infância messa casa enorme, na qual meu pai ocupava com seus negócios no andar térreo, a casa onde minha mãe tocava suavemente e piano, e onde minhas irmãs, alguns anos mais velhas do que eu, passavam o tempo ora na cozinha, ora no toucador.

    Lembro-me apenas que era um menino muito ativo e que por ser filho de uma família distinta, por minha irreprovavel conduta para com o professor, por minhas brincadeiras teatrais e por minha convincente maneira de falar, era respeitado e estimado por todos os meus companheiros. porém, nas aulas não me saia bem, porque estava sempre preocupado c em achar o ridículo na gesticulação do professor. É, quando chegava  a casa, levava a cabeça cheia de ideias para novas óperas, verso e outras brincadeira semelhantes, o que me tornava incapaz de preocupar-me eficientemente com meus estudos.

    - Que vergonha! dizia meu pai, franzindo mais as rugas da testa, ao verificar as minha notas. Não estou gostando nada disto. Que farei de tí? Que penses tu da vida? Nunca irás além do superficial...

     E, apesar de realmente penalizado com essas represeensões, isso não impedia que, à hora do jantar, lesse para minha irmãs alguns versos compostos durante as aulas da tarde.....

   Pouco tempo depois aprendi por conta própria e por um método pessoalíssimo, a tocar piano.

   Minha mãe dizia: " Consegue uns efeitos que revelam temperamento". E aconselhava-me a tomar aulas, as quais duraram apenas meio ano, pois nunca pude aprender as posições dos dedos, e o correspondente e correto dedilhado.

   Passaram-se os anos e cresci feliz, apesar das dificuldades dos estudos. Vivia alegre e estimado pelo círculo de minhas relações e parente, gostava de ser amável para com todos, apesar de bem cedo começar a odiar toda essa gente, porque a considerava seca e sem imaginação.

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  Uma tarde, tinha eu dezoito anos, e terminava então o penúltimo ano do colégio, surpreendi uma conversa entre  meus pais que estavam sentados no salão, ignorando que eu me encontrava na dependência ao lado, imóvel, com a fronte apoiada nos vidros da janela, contemplando por cima dos telhados o pálido céu. Ao ouvir meu nome, aproxime-me suavemente da porta que estava entreaberta.

  Ele estava sentado na sua cadeira, de pernas cruzada,segurando com uma mão o diário comercial apoiado em seus joelhos, enquanto que com  a outra alisava suavemente as patilhas.( As patilhas (também conhecidas como suíças ou costeletas) são a parte da barba e cabelo de alguns homens que se encontra junto à orelha).Minha ,mãe estava sentada na poltrona e inclinava seu rosto tranquilo sobre um tecido.

  O abajur estava entre os dois.

  Meu pai disse:

   - Creio que seria melhor tirá-lo do colégio e pô-lo com aprendiz numa casa comercial importante.

   - Oh! disse minha mãe, inquieta, levantando os olhos, um menino com tanta vocação!

   Meu pai calou-se, por um momento, para soprar, cuidadosamente o tabaco que tinha caído sobre o colete. Mas logo encolheu os ombros, e esticou os braços para minha mãe, mostrando-lhe as palmas das mãos, ao mesmo tempo que dizia:

  - Se pensas, minha cara, que não precisa vocação para a carreira comercial, estás enganada. Por outro lado, verifiquei que, na escola, o moço nunca será ninguém. A vocação de que falas é uma espécie de vocação de palhaço, e desde já o digo, que não desprezo tal vocação. Quando quer, sabe ser amável, sabe falar com as pessoas, sabe ser agradável sente a necessidade de gostar dos outros e de alcançar essa espécie de triunfos, Com estas qualidades muitos foram os que venceram.

  Em seguida meu pai, satisfeito puxou um cigarro e, com gestos lentos, acendeu-o.

   - Talvez tenhas razão, disse minha mãe, olhando tristemente em volta. Pensei, e muitas vezes desejei, que ele pudesse chegar a ser um artista. Claro que não podemos pensar em seu talento musical, porque não o cultivou. Mas, não reparaste que, desde que foi a última exposição, não faz outra coisa que desenhar? E isso, parece-me que não está nada mal...

   Meu pai soprou o fumo e disse, cortante:

   - Outra palhaçada, Aliás, nós mesmos podemos perguntar-lhe quais são os seus planos.

   Que planos podia eu ter? A possibilidade de deixar o colégio deixou-me realmente satisfeito. Mostrei-me interessado em ser comerciante, motivo por que entrei na loja de madeira do senhor Schleichtvogt, à beira do rio.

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      É fácil de conceber-se que a mudança foi puramente superficial. O meu interesse pelos negócios do senhor Schleichtvogt era ínfimo, e eu sentava-me na cadeira giratória, à luz do gás, no escritório estreito e sombrio, com a mesma disposição com que me sentava no banco da escola. A única diferença, é que agora tinha menos preocupações. Essa era, realmente, a única diferença.

    O patrão, um homem forte e corado, dava-me pouca atenção pois a maior parte do tempo passava-a ele na serraria, que ficava bem distanciada do escritório e do depósito. Todos os empregados me tratavam com respeito. Fiz amizade apenas com um deles, que conhecia na escola. Chamava-se Schiling. Mostrava muito interesse pelo negócio de madeiras, e não se passava um único dia me que não o fizesse alusão ao seu irresistível desejo de vir a ser um homem rico.

      Eu, por minha parte, aprontava meu trabalho mecânica e rapidamente, para ter oportunidade de contemplar o rio, sentado na taverna, ou de parar para ver passar um trem de carga, enquanto sonhava, certamente, com algum espetáculo teatral, um concerto, ou um livro que acabara de ler.

  Lia muito, tudo o que podia cair-me nas mãos, e tinha uma grande capacidade de assimilação. Vivia todas as personagens literárias, e parecia reconhecer-me em cada uma delas.

   Minhas irmãs tinham casado  quase ao mesmo tempo, de maneira que, ao sair do trabalho, quase sempre ia visitar minha mãe que estava vagamente enferma, e cujo rosto era cada vez mais infantil e sereno. A maioria das vezes estava só. Quando tocava chopin e eu lhe mostrava alguma relação harmônica, perguntava-me se eu era feliz com a minha nova  ocupação....Claro que era!

   Tinha eu então pouco mais de vinte anos. Minha situação era provisória e de maneira alguma pensava passar toda minha vida  na loja do senhor Schchleichtvogt ou em qualquer outra loja de mais futuro. Esperava vir a ser um homem livre algum dia, abandonar a sufocante cidade e viver em algum lugar do mundo de acordo com meus desejos, lendo bons livros, indo ao teatro, talvez tocando um pouco de música....Feliz? Mas se eu comia bem, vestia melhor; se desde os tempos de escola( quando os meninos mais pobres e mal vestidos me olhavam com timidez, reconhecendo minha superioridade)), tinha eu a certeza de pertencer as classes superiores ricas, invejadas e que tem o direito de olhar com um desprezo generoso aos pobre, os infelizes, os invejosos... Como não havia eu de ser feliz? Tudo acontece como deve acontecer. No início, tinha a sua graça sentir-me diferente e superior a todos os meu parentes, dos quais me via distanciado em virtude de sua estreiteza espiritual, enquanto que, simultaneamente, sentia eu prazer em ser-lhes agradável, divertindo-me com o respeito que lhes inspirava minha maneira de ser, pois eles imaginavam algo de superior e de excêntrico em tudo isto.

   Meu pai sofreu algumas transformações. Quando se sentava à mesa, às quatro da tarde, parecia que as rugas da testa estavam cada vez mais fundas; já não tinha os gestos energéticos de antes, evidenciando uma forte depressão nervosa.

   Um dia, disse-me:

    - Já estas em idade de partilhar comigo as preocupações pela minha saúde. Além do mais, devo comunicar-te, para que não tenhas uma ideia falsa do teu futuro que, recentemente, a Firma sofreu alguns prejuízos que reduziram, de forma apreciável, o capital. Por outro lado sabes bem os sacrifícios que representaram os casamentos  de tuas irmãs. Estou velho, sinto-me cansado, e parece-me que será difícil conseguir uma importante modificação da  atual situação. Peço-te que consideres que dependes apenas de ti.....

   Isto, disse-o ele alguns meses antes da sua morte. Um dia, encontraram-no pálido, imóvel e paralítico em seu escritório. Uma semana mais tarde toda a cidade participava de seu funeral.

  A partir desse dia minha mãe passou a sentar-se diante da mesa redonda do salão, e seus olhos estava quase sempre fechados. Quando minhas irmãs e eu nos preocupávamos com a sua saúde., balançava a cabeça, sorrindo, e quedava-se novamente imóvel, as mãos cruzadas sobre a saia, contemplando com olhos estranhos e inexpressivos, alguma figura dos deuses das tapeçarias. Quando vieram os senhores encarregados de fazer o inventário, balançou suavemente a cabeça e fechou de novo os olhos.

  Nunca mais tocou Chopin e quando, as vezes, passava a mão pelo cabelo, seus dedos tremiam debilmente. Não tinham passado ainda seis meses após a morte de meu pai, quando ela morreu sem um queixume, sem um único apego pela vida....

   Tinha chegado o fim. Nada me prendia a esse lugar. Os negócios bem ou mal tinham sido liquidados, vindo eu a receber uma herança de cem mil marcos, o que bastava para tronar-me independente, sobretudo porque não fui sorteadopara o serviço militar.

  Nada me prendia à gente com a qual havia crescido, e cujos olhos sempre me fitaram com  estranheza, cuja maneira de pensar era unilateral e primitiva.

  Levantei a minha pequena fortuna e, quase sem despedir-me, iniciei, antes de tudo, uma viagem.

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      Os três anos que se seguiram, durante os quais me entreguei ao gozo de mil impressões variadas e distintas, recordo-os como um sonho. Há quanto tempo passei eu a última noite do ano com os monges de Simplon, no meio da neve; percorri a "Piazza" de Verona; fui, pela primeira vez, desde o "Borgo San Spivito" até as colinas de São Paulo; contemplei, do "Corso Vittorio Emmanuele", Nápoles radiosa de brancura. Há quanto tempo vi Capri, so longe, flutuando no mar azul? Há apenas seis anos e nada mais!

   Oh! vivi com limitações levando em consideração os meus proventos. UM quarto pequeno, uma pensão econômica claro que, no princípio, com os sucessivos câmbios e a adptação aos diversos ambientes, foram inevitáveis alguns gastos extraordinários. Havia  destinado quinze mil marcos para minhas viagens. Soma que, evidentemente, ficou muito aquém das realidades.

   Sentia-me bem entre as pessoas que encontrava durante as minhas viagens, em sua maioria existências desinteressadas desde a minha juventude mas que, em contrapartida, também não me faziam perguntas indiscretas nem me olhavam com espanto.

   Com a minha sociabilidade, não me foi difícil fazer boas relações. Lembro-me de uma cena na pensão Minhlli, em Palermo. Cercado por uma roda de franceses de diversas idades, arranquei de um pequeno piano, com regular harmonia e numa forma espetacularmente trágica, um  drama musical de Richard Wagner. Alcancei um êxito extraordinário. Foi então que se  aproximou-se de mim um senhor quase que totalmente calvo. Segurou-me as mãos e disse, com lágrimas nos olhos:

   - Foi admirável! Foi admirável prezado senhor! Há mais de trinta anos que não experimentava uma emoção semelhante!Permita-me que lhe agradeça de todo o coração! Senhor, é indispensável que se faça músico ou artista!

   Porém, nessas ocasiões, invade-me um entusiamo idêntico ao doe um pintor famoso que, numa roda de amigos, se dispõe a desenhar uma caricatura na mesa de um café. Depois da refeição dirigi-me novamente ao salão, e passei uma hora melancólica, ao tentar arrancar do instrumento os acordes que traduziam as sensações que produzia a vista admirável de Palermo.

  Partindo da Sicília, fiz uma breve viagem pelo norte da África, e rumei para Espanha. Foi aí que, perto de Madrid, numa tarde cinzenta e chuvosa, rodeado pela planície triste, pela primeira vez senti desejos de regressar à Alemanha. Quase que posso dizer necessidade porque, além de sentir a nostalgia de uma vida tranquila, verifiquei que o meu capital tinha diminuído vinte mil marcos.

  Não me demorei muito. Regressei pela França, onde me detive em alguma cidades. recordo com uma triste  nitidez aquela tarde de verão em que regressei à minha cidade, em busca de uma vida tranquila e que estivesse de acordo com o meu capital. Tinha então 25 anos.

   Minha cidade satisfazia-me completamente. É uma cidade limpa, sem as atividades e os ruídos de uma grande metrópole, com admiráveis antiguidades, e com um movimento social suave e tranquilo.

  Os arredores também tem a sua beleza, mas sempre preferi o caminho que vai até ao "Lerchenberg", uma colina estreita e comprida, na qual descansa uma parte da cidade, e de onde se pode admirar o vasto panorama das casas, da igreja e da prateada cintura fluvial. Uma banda militar dá concertos nas tarde de verão. Possui também um picadeiro onde evolucionam os coches,  e os pedestres ao lado, nos passeios, num conjunto que recorda o "Pincio". Voltarei a referir-me a esse picadeiro....

   Ninguém acreditará om que prazer aluguei um apartamento no c centro da cidade. A maioria dos móveis de minha casa paterna ficou em poder de minhas irmãs mas, os que me couberam, bastaram para encher a minha pequena moradia.

    Os dias corriam como tinha previsto. levantava-me cerca das dez horas. Tomava o pequeno almoço e passava a manhã ao piano ou distraindo-me com a leitura de algum livro ou alguma revista literária. Descia então para me dirigir a um pequeno restaurante que frequentava com regularidade; comia, passeava pelas ruas, visitava alguma galeria comercial, ou caminhava pelos arredores até ao "Lerchenberg". Regressava à casa, e renovava as minhas atividades da manhã: lia, tocava, entretinha-me com uma arremedação de arte pictórica, ou escrevia cuidadosamente uma carta. À noite, quando não ia a um concerto ou a um teatro, ia a um café e lia o jornal até chegar a hora de deitar-me. O dia tinha sido pleno e belo. Sentia uma feliz satisfação quando compunha um motivo musical que me agradava, ou quando lia uma boa novela, ou quando experimentava uma impressão suave e profunda com a contemplação de um quadro....

       

      Devo advertir que em minhas atividades procedia com um certo ideal e que, realmente, tinha uma toda especial preocupação em que meus dias fossem plenamente realizados  na medida do possível.

    Comia menos mal e tinha um único terno. Tratava de limitar minhas necessidades corporais para ter possibilidade de comprar um bom lugar para a ópera ou um concerto, para adquirir uma novidade literária, para poder frequentar todas as exposições artísticas.

   E assim corriam os dias, as semanas os meses....Aborrecimento? Reconheço que nem sempre se encontra um livro que nos satisfaça; outras vezes, não conseguimos formular uma ideia musical atraente; sentamo-nos à janela, fumamos e, insensivelmente, invade-nos um sentimento de antipatia por toda a gente e por nós mesmos. E surge o medo, a opressiva sensação de medo, e levantamo-nos, fugimos, para contemplar a vida alegre e plena dos que trabalham, dos que, espiritual e materialmente, são incapazes de apreciar a arte e a literatura.

   Estará um homem de vinte e sete anos capacitado a acreditar na invariabilidade de sua situação, apesar dessa invariabilidade ser apenas relativa? O canto de um pássaro, um pedaço de céu azul, um sonho noturno difuso, incerto;tudo isso com a ânsia solene de uma felicidade inesperada...E eu passava de um dia para o outro sem um objetivo, dedicava-me a uma ou outra pequena esperança(fosse ela o dia em que surgia uma nova publicação), convencido que era feliz e que experimentava apenas um pouco de cansaço pela solidão em que vivia. Mas será necessário explicar tudo isso? Não tinha qualquer contato com os círculos mais importante da cidade. Sou um homem culto, minha roupa anda sempre limpa, e não sinto desejos de participar de conversas anarquistas em cafés de segunda categoria, com jovens desleixados e mal-cheirosos. Na verdade, não havia nenhum  círculo social determinado em que pudesse incluir-me. As amizades que fazia eram raras, superficiais e frias; por minhas culpa, reconheço, porque nesses momentos mostrava-se inseguro, sentia a desagradável convicção que não era nem sequer um pintor boêmio, que não podia dizer claramente quem era eu, e o que fazia.

    Aliás, eu tinha rompido com a sociedade e a ela renunciara, ao escolher a minha liberdade; não a levava em consideração, ao escolher meu próprio caminho.

   E no entanto!....A realidade existia, e a minha solidão filosofia sufocava-me cada vez mais, chegando finalmente a convencer-me que a minha definição de "felicidade" de maneira alguma coincidia com meu sistema de vida.

   Não  era feliz, era infeliz.Seria possível? Impossível! E com esta resolução, considerava  problema resolvido até que chegasse outros dias e outras horas em que este egoismo, esta solidão, este viver à  margem me pareceram irregulares, - totalmente irregulares - de tal forma que me converti num descontente.

   Descontente! E isso, é qualidade dos homens felizes?

   Recordava a minha passada vida em família, o circulo reduzido dentro do qual eu revelara minha vocação artística, alegre, amável, os olhos brilhando de alegria, com sentimentos cordiais para com todos, por todos querido. E então eu era feliz, apesar da loja de madeiras do senhor Schleichtvogt....E, agora?...E agora?...

  Porém, eis  que acaba de surgir um ótimo livro, uma novela francesa que não resisti à tentação de comprar. Recosto-me numa poltrona e, com prazer, dou início à leitura. trezentas páginas agradáveis, arte seleta.. Ah, afinal escolhi um bom modo de vida! Não sou feliz? É uma pergunta ridícula essa...e nada mais.

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  Mais um dia se passou e, pode dizer-se, não com a graça de Deus, porque foi um dia inútil. Cheguei de noite; fechei as cortinas; acende a luz do escritório; em breve seria meia-noite. Podia ter-me deitado; porém sentei-me imóvel, na poltrona, as mãos cruzadas, olhando o teto, perseguindo cuidadosamente uma dor indefinida que não pude determinar.

   Há umas horas atrás fiquei admirando uma obra de arte, uma dessas criações monstruosas que, insensivelmente, nos transtornam, martirizam, destroem....Ainda tremem meus nervos, minha imaginação está excitada, uma misteriosa sensação me leva daqui para lá, de lá para aqui; sensação de nostalgia, religiosidade, triunfo, mística paz...e logo uma necessidade se cristaliza, se levanta, se destacava no meio de todas as outras: a necessidade de comunicar-me, de exprimir-me, quer dizer, de "fazer algo"....

   Se fosse realmente um artista poderia expressar-me através da música, da palavra, da escultura, de preferência através de todas elas, e simultaneamente. porém, falta-me algo! Posso sentar-me ao piano, dar expansão a meus sentimentos, e com isso tenho que conformar-me. Se ao menos eu tivesse uma pequenina esperança de êxito e aspirasse à fama, ao reconhecimento, à admiração, à inveja, e ao amor! Caramba! Como é bom recordar a cena do pequeno hotel de Palermo! Que agradáveis e consoladores pensamentos me evoca!

   Pensando bem, com estas definições sofísticas e ridículas sou obrigado a reconhecer que não sei distinguir a felicidade interior da exterior. O que é a felicidade exterior ? Há uma certa classe de homens - favoritos dos deuses- para os quais a felicidade é o próprio gênio, e o gênio a própria felicidade; homens  luminosos em cujos olhos se reflete a luz do sol, e que singram  suave e amavelmente pela vida; homens a quem todos cercam, admiram, elogiam, invejam e amam, porque a inveja não permiti o ódio. Eles, tudo olham como os meninos, glutões, depreciativos, voluntariosos, vagamente amáveis, seguro de sua felicidade e de seu gênio, como se fosse  impossível ter sido a vida de outra mentira.

    Não posso negar  que tenho certa  ambição em ser um desses homens e, de quando em quando, acredito que poderia ter sido um deles; porque, é preciso reconhecê-lo, tudo depende da própria pessoa, da confiança que cada um tem, da segurança que cada um se atribui.

     Afinal. pode ser que esta melancia seja apenas devido à minha renúncia ao "prazer exterior"; porque eu abandonei a "sociedade", e organizei a minha vida sem levá-la em consideração. Não se deve, não se pode duvidar da minha satisfação pois, repito, eu quero e devo ser feliz!

   Como poderia eu permitir-me ser infeliz? Que papel desempenharia então ante mim mesmo? Poderia eu esconder-me nas sombras como um morcego ou uma coruja, e daí contemplar a luz, os felizes? Poderia odiá-los com esse ódio que outra coisa não é do que amor envenenado, e desprezar-me a mim mesmo?

     Nas sombras! De vez em quando reapareceu meus prensamentos acerca de "minha vida à margem", de minha "solidão filosófica", e de tudo o que tenho pensado e sofrido com isso. E surge oomedo, o medo fatal. E o sentimento de rebeldia contra uma moite ameaçadora.

    Não há dúvida que tnehoe ncontrado, por mais de uma vez, um lenitivo,um desvio, um consolo, apra esta e futuras crises.

   Mas tudo volta novamente, e se reopete mil vezes, ao longo dos meses, ao longo dos naos.

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   Há dias de outono que são maravilhosos....

   Foi-se o verão; folhas amarelas pelos campos, fora; na cidade, há já vários dias que o vento sopra, enquanto pelas goteiras corre a água suja dos telhados. Entregamo-nos, sentamo-nos na sala, aguardando que chegue o inverno. E de repete, ao despertarmos de uma manhã olhamos, extasiados, uma mancha azul por entre as cortinas. Admirados, saltamos da cama, abrimos a janela. Banha-nos uma onda de luz suave, e verificamos pelos ruídos da rua, pelo canto dos pássaros, pela limpidez do ar, pela frescura da brisa, que esse não é um dia de outono, mas sim um dia do triunfal mês de maio. É primavera, sem dúvida alguma é primavera, apesar de o calendário indicar outra estação. E vestimo-nos, e sob o céu brilhante, caminhamos até ao campo percorrendo as ruas alegres.

   Foi por um desses dias, há quatro meses atrás - estamos agora no princípio de janeiro - que eu vivi algo de extraordinariamente belo. Levantei-me às nove e; cheio de alegria, esperança e confiança, dirigi-me ao "Lerchenberg".

   Quase ninguém. Bancos solitários, por entre as árvores algumas estátuas, uma ou outra folha amarela tombando, impulsionada pela brisa. Caminhava eu em direção ao alto da colina quando ai atingir o local em que o caminho ladeado de castanheiros começa a descida, ouvi o ruído das ferraduras de um cavalo raspando as pedras. afastei-me para o lado, e olhei.

  Era um côche de duas rodas, pequeno e leve, tirado por dois potros enormes e altivos. Uma moça  segurava as rédeas. Vinte, ou talvez dezenove anos. A seu lado, um ancião de figura simpática, orgulhosamente levantado. No assento de trás, um moço de libré negra e prateada.

   Os cavalos, ao subir, reduziram a velocidade, pois um deles estava nervoso e impaciente.

  Forçava, o mais que podia, um dos varais, apertando a cabeça contra o peito; suas patas começaram  então a tremer de tal modo que o o ancião, inquieto, ofereceu-se para ajudar a moça no manejo das rédeas. Ela divertiu-se com a situação, como uma pessoa dona de um autodomínio suficiente para tais casos. Puxou levemente as rédeas, procurando tranquilizar o animal.

   Era loura e esbelta. Tinha um chapeuzinho de palha, do qual, pelos lados, escorriam seus cabelos até o pescoço. Usava uma jaqueta curta, e um belo vestido cinzento-claro.

   Em seu rosto oval e bem formado, levemente corado pela manhã, o mais belo eram os olhos, Olhos grandes e estreitos, nos quais apenas se via brilhar a íris profundamente negra. Sobre eles, prologavam-se os arcos maravilhosos regulares das sobrancelhas.

    O nariz era talvez um pouco largo, e sua boca, cujas linhas eram finas e nítidas, talvez pudesse ser um pouco mais delicada.

  Seria um erro afirmar que esse rosto era admiravelmente formoso. Tinha, sim, o atrativo da juventude, sua alegria saudável, esses atributos estavam modelados, orientados por uma educação esmerada, por um critério perfeito e uma orientação distinta.

     As mangas da blusa eram largas nos ombros. e estreitas nos punhos. ao ver Ao ver esseas alvas mãos empunhando as rédeas , senti que nunca me feriria tão profundamente uma sensação de adorável elegância.

    Fiquei no caminho, sem receber um único olhar. Continei, depois, lentamente, enquanto o coche se pendia ao longo.O  que eu experimentei, foi alegrai e admiração; porémm, uma dor indefinida misturava-se com uma sensação árida e pungente. Inveja? Amor?

   Ao escrevef estas linhas surge-me a imegem de um mendigo diante da vitrina de uma joalheria, contemplando as fulgurantes pedras preciosas. Esse indivíduo não tem o pensamento de possuir as joias, já que tal pensamento seria ridículo, e, aele próprio, lhe pereceria irrisório.

          @@@@@

   Contarei agora, como devido a uma casualidade, vi pela segunda vez essa moça, ao fim de oito dias, na Ópera. Representavam "Margarita" de Gounod, e mal entrei na sala iluminada, reconheci o ancião num camarote junto ao palco, do lado esquerdo.

   Observe que, imediatamente, ao notar sua presença, recebi um pequenoi choque nervosos e que logo desviei os olhos. Somente ao subir o pano me decidi a olhar, cuidadosamente, oc asal.

    O cavalheiro sentou-se, cerimoniosamente, atras, com uma das mãos apoiada na balaustrada, enquanto com a outra, ora acariciava, lentamente, a barba, ora alisava sues cabelos grisalhos.

   Em contrapartida, a moça - talvez sua filha - debruçava-se para a frente, interessada e entusiasmada, as mãos cruzadas e segurando um leque, pendendo para fora do camarote. De vez em quando, com um rápido movimento de cabeça, levantava alguns cabelos que lh caiam pela fronte ou pelos lados. Notei que a posição da boca, que já havia observado noutra ocasião, lhe era característica, pois a cada instante, pousava seus dentes pequenos, brilhantes e regulares, sobre o lábio inferior, esticando um pouco o queixo para fora. Todo o seu aspecto, suas maneiras seus gestos, seus movimentos, eram juvenis mas, de maneira alguma, infantis.

  A maneira de Gounod, suave e espiritual, não era o acompanhamento adequado apra esse momento. Eu fitava-, totalmente alheio ao que se passava pelo palco, rendido à sua influência suave e cujo efeito, sem essa música, teria sido doloroso. No entreato, levantou-se na sala um cavalheiro de vinte e sete a trinta naos, que desapareceu depois, para tornar a surgir no camarote das minhas preocupações. O cavalheiro estendeu-lhe a mão, e a moça saudou-o, manifestamente bem impressionada com a sua presença ao mesmo tempo que lhe oferecia um lugar.

   Reconheço que esse cavalheiro vestia a mais bonita das camisas que vi até hoje. Dava muito na vista, pois,em vez de colete, cingia-o uma delgada cinta negra, e o fraque estava apenas apertado no último botão. Entende-se, desta forma, que  fosse a camisa o que chamava mais a atenção. Por outro lado, seus cabelos eram de um louro claro; usava lunetas, tinha um pequeno bigode e, numa das faces, inúmeros cicatrizes que lhe chegavam até às fontes. Este senhor tinha um físico bem talhado e, além do mais, andava elegantemente.

   Durante o decorrer do espetáculo observei que sempre tomava duas posições que lhe pareciam características. Partindo da hipótese de que eram os outros que falavam, sentava-se ele de pernas cruzadas, comodamente reclinado, as lunetas apoiadas sobre a coxa, ao mesmo tempo que esticava ambos os lábios para a frente, profundamente  concentrado na observação de seus bigodes. Totalmente hipnotizado por tal estudo, movia a cabeça ora para um lado, ora para outro, conforme a pessoa que lhe dirigia a palavra. Em dado momento, ao conversar com a moça, trocou de posição das pernas, reclinando-se ainda mais;  levantou a cabeça e sorriu com a boca entreaberta, de forma amável mas dominadora. É um cavalheiro que deve possuir um formidável sentido de auto-segurança e satisfação.

   Veramente, eu aprecio essas qualidades, espanta-me que essa segurança que torna natural e lógico cada passo da vida, e que imprime a cada gesto, a invejável presença da vitória.

   E eu? Eu estava lá no fundo, na sombra, provando o prazer amargo da observação da formosa jovem. Eliminado, inobservado, sem direitos, estranho, deslocado, desprezado, pária, compadecido de mim mesmo...

  Fiquei até o fim, e voltei a encontrar os três no vestiário, onde permaneceram alguns instantes, trocando uma ou outra palavra com alguma senhora, ou algum oficial. O jovem acompanhou o pai e a filha, e eu segui-os, a pouca distância, através do vestido.

   Não chovia,  e  havia algumas estrelas no céu. Era mais agradável caminhar, do que ir de cochê. Alegres, os três conversaram e caminharam alguns passos à minha frente...E eu sentia-me oprimido, espoliado por um sentimento...

  Numa rua, pai e filha despediram-se do cavalheiro. Entraram em casa. Na grade do jardim, uma tabuleta:" Juiz Reinner".

          @@@

Estou resolvido a concluir estes apontamentos, apesar da resistência interior e do desejo quase invencível de destruí-los, de abandonar estas bobagens.

    Faz uns três meses, li jornal que seria celebrada uma quermesse com fins caritativos no edifício da Municipalidade. Li com atenção o anúncio, logo tomei a decisão de assistir. Estará presente- pensei eu- talvez como vendedora; e nesse caso, ninguém me impedirá de aproximar-se dela. Pensando com calma, sou um homem bem educado e de boa familia e, se a senhorita Reiner gostar de mim, não vejo motivo que me impeça de dirigir-lhe algum galanteio, e de trocar com ela algumas palavras....

     Foi uma tarde de vento e de chuva, o dia da festa. O edifício municipal estava cheio de gente e, em frente ao portão, paravam os côches de onde não cessavam de sair os participantes da festa. A escada e o segundo piso estavam repletos de alegres convidados, e em todos os lados havia um ar tépido, mistura de odores de vinho, comida, perfumes, resina; escutava-se um rumor surdo, risos, palavras, música, exclamações, batidas de "gong". O enorme recinto estava decorado com bandeira e guirlandas, e por todos os lados se viam as barraquinhas de venda. As damas, rodeadas de flores, tecidos e refrescos, estavam fantasiadas com os mais diversos trajes. Um pouco desorientado pela música, os cartazes vistosos, a multidão, agreguei-me à corrente humana quando, a quatro passos da entrada, encontrei aquela que procurava. Vendia vinhos e limonadas e estava vestida de italiana. Um pouco excitada, conversava com um grupo de senhores, um pouco inclinada sobre o balcão. Sem dificuldade, reconheci entre eles o cavalheiro da Òpera. Era ele o que estava mais próximo do balcão e tinha quatro dedos de cada mão enfiados nos bolsos do colete.

  Aproximei-me, disposto a falar quando surgisse a melhor oportunidade. Ah, tinha que provar se possuía a segurança que tem os demais, ou se o nervosismo e o desespero dos últimos meses a tinham destruído! Afinal de contas, o que é que estava se passando comigo? Por que motivo, em presença dessa moça, um sentimento pungente, mescla de inveja, amor, vergonha e amargura, me transtornava a cabeça?

   Decorreu algum tempo antes que pudesse livrar-se da corrente humana e, quando me aproximei novamente da sua "venda", o grupo dos senhores já tinha se retirado, tendo ficado unicamente diante dela, e na mesma e imóvel posição, o seu amigo.

     Que aconteceu? Ah, quase nada! A conversa interrompeu-se, o cavalheiro afastou-se para o lado, segurando, examinando-me da cabeça até aos pés. O terno não era novo, e os sapatos estavam algo sujos pela lama da rua; isso, sabia-o eu. Além do mais, eu estava afogueado,excitado, talvez meus cabelos estivessem em desordem, despenteados. Não estava tranquilo, não me sentia livre, não me sentia à altura da situação. O pensamento de que um estranho, uma pessoa sem direitos, perturbara essa conversa talvez para desempenhar um papel ridículo, apoderou-se de mim. A insegurança, o desespero, o ódio e a dor manifestaram-se em meus olhos e, com uma palavra sufoquei minha ambiciosa intenção ao pedir, com os músculos do rosto contraídos, a voz rouca, de forma cortante e quase insolente.

  - Um copo de vinho.

    Talvez me engane, mas parece-me que a moça dirigiu a seu amigo um olhar divertido. Em silêncio, como ele e como eu, me deu ela o vinho; seu poder esconder o nervosismo, tomei um ou dois goles, pus o dinheiro na mesa, saudei frouxamente, e abandonei a sala, saindo para a rua.

  Desde então, tudo acabou pra mim. E tudo desabou quando, passados poucos dias, se podia ler nos diários:

   "Tenho a honra de anunciar o casamento de minha filha  Ana com o Doutor em Leis, sr. Alfredo Witzagenl".

        @@@@

   Desde então, tudo acabou para mim. Extinguiu-se o último resto de personalidade, de segurança, e convenço-me que sou um desgraçado. Um pobre diabo...Não resisto mais! Me consumo! Matou-me hoje ou amanhã,

   Meu primeiro impeto foi atribuir minha desgraça a um "amor fatal"; uma bobagem, como claramente se vê. Ninguém se aniquila com um "amor fatal". Um amor fatal, não deixa de ser uma coisa atraente. Aniquilo-me de descontentamento comigo mesmo.

   Cheguei a amar essa moça? Talvez.... mas, por que? Não foi esse amor um profundo do meu orgulho, tanto tempo enfermo que se sentiu excitado ante a contemplação dessa joia, inalcançavel? Não foi esse amor um pretexto, uma desculpa para os  sentimentos que me consumiam, ódio, inveja, autodesprezo?

    Sim! Apenas orgulho! Não me chamou meu pai de palhaço?...Eu não tinha direito, - eu, menos do que nínguém - de isolar-me, de ignorar uma sociedade cujo desprezo não posso suportar, cujo aplauso não posso dispensar. Mas, devo falar em direito? Não será antes necessidades?  devido aos meus dotes de palhaço, não estaria eu indicado para ocupar alguma posição social? De qualquer modo, estou me destruindo, devido a esta aptidão para palhaço.

   Indiferença, bem sei, é uma espécie de felicidade. Porém, não sou capaz de ser indiferente comigo mesmo. Não sou capaz de olhar-me com outros olhos que não sejam os olhos de "todo o mundo". Cheio de inocência, destruo-me por culpa da consciência corrompida dos outros...

    Há apenas uma infelicidade: pagar a si mesmo a dívida de não gosta-se. Não gostar de si mesmo, essa é a verdadeira infelicidade.Todo o resto, nada mais é do que um jogo da vida e, em qualquer outra desgraça ou sofrimento, qualquer pessoa pode estsr satisfeita consigo mesma.

  Um antigo conhecido aparace à superfície. Um senhor chamado Schiling. com qem trabalhei na loja do snehor Scheichtvogt. Visitou-me um certo dia, e fomos tomar um copo de vinho.

   Disse-me:

  - Muito bem, homem! Arruma-te esplendidamente a tua vida! Independente! Não ter que prestar contas aos outros! Foste o mais hábil de nós dois, reconheço.Alias, sempre foste um tipo genial....

   E continua falando, reconhecendo a minha superioridade, elogiando-me, sem reparar que eu estava cheio de medo e mal-estar.

   Na verdade, todo o mundo está preocupado consigo mesmo, de tal forma que ninguém pode opinar seriamente sobre os outros. Concedam-nos o grau de respeito que nos próprios queremos para nós. Sê quem quiseres, vive como preferires, porém mostra-te indiferente, com a consciência tranquila, e ninguém terá a suficiente coragem moral para desprezar-te. Porém se, pelo contrário, demonstras ter pedido a tua unidade interior, ser fazes ver te desprezas a ti mesmo todos te darão razão... Pelo que me diz respeito, estou perdido......


       @@@


   Termino de escrever, e atiro fora a pena, cheio de nojo,. Cheio de nojo! E o final....Mas, não seria isso demasiadamente heroico para um palhaço? É por isso que receio continuar ainda vivendo, dormindo, preocupando-me com qualquer coisa, acostumado a ser uma "figura ridícula e desgraçada".

   Quem tivesse adivinhado, Senhor, que desgraça maior que pesar mais profundo é o ter nascido para ser palhaço!




nota do autor do blog Silvana Ramos

 Não deixe de me seguir e deixe um comentário e compartilhe por favor, precisamos levar contos para o mundo. Um abraço carinhoso da Sil.ASMR no tik tok  e abraço da Brubs ASMR no tik tok, no you tube Brubs ASMR , no Instagran Brubs ASMR. Fazemos trabalho com carinho para levar paz e diversão ao mundo.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A MÁQUINA QUE PECOU - ÁFRICA DO SUL - G. H. Franz

- Hum..Diz-se que o homem de Molokommejá se foi
 - observou Moloisi. 
 - Já se foi Pai? - perguntou Moruti
. - Sim, matou-o a devoradora da estrada.( automóvel). Não sabes que há seis meses ele retirou, quem sabe, todo o seu dinheiro para comprar uma devoradora da estrada, ao velho Lejuta? È isso, um grande monstro. No terceiro dia da semana passada, foi a kwaliberg; durante a viagem o bicho adoeceu. Pôs-e a saltar de um lado para outro da estrada e acabou por bater a cabeça contra uma grande árvore de marula. Quando acorreu gente, foi preciso esquartejar o mostro com alavanca de ferro, e o filho de Molokomme se havia tornado o menino de ante-ontem,
   Depois de pensar um pouco, Moruti acabou por dizer:
   - É assim, homem de Rafiri,as crianças brincam com fogo.
  - Brincam com fogo, Pai.
   -É isso, somente os adultos deveriam manejar o fogo. Vede a devoradora da estrada e outras coisas semelhantes, são feitas pelos brancos. Vós todos não passais de meninos. Não raro, tocais nessas coisas e acendem fogo em toda a casa. Não estou dizendo verdade?
   - Está dizendo, filho de meu filho. Os meninos ateiam facilmente fogo na casa. Mmallo,(exclamação)eu disse casa?
 ateiam fogo em toda a aldeia.
   Seguiu-se uma breve pausa, depois Moloisi riu, admitindo-se que o surdo gargarejo que parecia sair-lhe do estômago pudesse ser definido como uma risada.
   - Moruti conhecia Makuntedi?
   - Não, não o conhecia, mas ouvi muitas coisa. Dizem que era um bom Comissionário.
  - Mmanllo, tem razão; era nosso Pai.
  Moloisi transferiu a ponta de cigarro de um canto da boca para o outro, e Moruti se acomodou mais confortavelmente para escutar a história que se seguiria.
   - Era no tempo em que os Maisimane tinham atirado pelo ar o governo Boer. Nós filhos de Pai Nefro, acreditamos que passaríamos a viver como senhores de nós mesmos. Os Maisimane não tinham dito por acaso ao Pai Negro: "Vinde ajudar-nos e eu vos restituirei esta terra"? " A guerra acabou, que quererá então este dominador em nossa casa? Não poderemos fazer  o que desejamos?" O chefe Malekutu estava muito encolerizado, e seus conselheiros, tanto como ele, também estavam encolerizados. " Os Maisimane não sabem falar a nossa língua. Como farão para entender-nos? Então um dos conselheiros disse: "Thobela,(saudação) eu tenho um filho que trabalhou nas  Buche( Johannnesburg). Quanto à língua dos Maiisimane, , numallo, mamou no seio de uma leisimane . "Está bem, chame seu filho. A sua mão será a nossa boca",
   E o filho veio. Tinha o nome de Mokoditwa, embora nas  Buche o chamassem de Arqui bawlAEIAW(Arquibaldo) Para nós era apenas Mokoditwa. Chegou e trazia uma coisa consigo. ' Que é, Mokoditwa?" "Isto, Pai? è uma máquina que escreve. Vede, não são os fuzis dos Maisimane a vencerem a guerra, é esta coisa. Com a a assegoai pode-se matar um homem a grande distância".
   O conselho se reuniu para discutir. Depois determinou: "Mokoditwa, escreve". "Que devo eu escrever, Pais?" " Escreve: " Ao Grande Boi, Monstro da Profundidade, Grande Chefe dos Maisimane. Thobela, os teus filhos choram, e por que choram? A Grande Mãe, a Mulher com Orelhas, tua mãe, não disse por acaso: "Filhos do Pai Negro, se me ajudares a subjugar aqueles Maburu então sereis meu filhos. Eu vos restituirei a vossa terra, onde viveis, e os vossos filhos e o vosso gado, se multiplicará com os gafanhotos'?  É assim Pai. Não vos ajudamos por acaso? Muitos do nossos filhos foram devorados pela guerra, e agora os Maburu são servos da ignana das águas. Grande Pai, nós perguntamos: Onde está nossa terra? Onde está nosso governo? Aqui vemos um homem. Diz: "Fui mandado pelo Grande Rei para governar o Pai Negro". Pois bem, ontem Paulo a abusa ,mandou homens como este. Não, Pai, os teus filhos choram. A corda está cheia de nós, vem desatá-los." Mmallo, o conselho falou e a máquia escreveu. Quando o conselho concluiu, a máquina se calou. "Mmallo, acabaste?
   - Sim, Pai, esta máquina é uma língua; é veloz como uma língua".
   A carta foi confiada a um dos mensageiros de Malekutu para ser entregue a Makuntedi. Não veio, todavia, resposta. Então, os homens deviam falar ainda. O conselho se reuniu mais uma vez e mais uma vez escreveu: " Pai, os teus filhos choram amargamente..."
   A lua tornou-se cheia duas vezes, depois chegou a maisisi(polícia) de Makuntedi. Estes diziam: "Que venham aqui o rei Malekutu, o seu conselheiro, a máquina e o homem  que funcionar a máquina.
   - Thobela, já ouvimos.
   O conselho se reuniu e falou: "Não atenderemos: O Grande Pai falará".
    Mokoditwa disse o contrário: "Não, Pai, não é assim. Por que não nos chegou resposta através da máquina? Makuntedi faz as leis como entende".
   O conselho respondeu: "Não, Makuntedi não pode fazer leis: ele é apenas a voz das leis".
   Os homens dormiram e no dia seguinte, ao chamado do mothschabafike( passarinho que canta ao alvorecer) estavam já a caminho. O sol tinha-se levantado havia pouco, quando chegaram ao escritório. Lá estavam Makuntedi. Mmallo, que aconteceu? não estamos por ventura animados de os haver saudado, sentamo-nos. Então falou Makuntedi:
    - Malecuti e vós homens do conselho, eu vos saúdo.
   - Não, Pai, somos nós a vos saudar.
   - E agora dizei-me, homens de Malekutu, eu não tenho sido sempre vosso amigo? Não vos tenho sempre ajudado? Respondei-me.
   - Sim, Makuntedi tem sido sempre nosso Pai.
   - É verdade. Eu vos fiz chamar. Estou com o coração transbordando, e sabeis por quê? Vejo os meus filhos e vejo que estão mortos.
    - Mortos, Pai?
   - Sim, as ienas se banqueteiam com seus intestinos porque não há ninguém para os enterrar. Dizei-me, homens, que acontece a um pastor que agarra com as mãos nuas as orelhas de um leão?
  - Mmaloo, torna-se um menino de ante-ontem.
   - Tu dizes a verdade. Agora escuta-me...
   - Nossos ouvidos estão abertos, Pai.
  - Eis uma carta: quem escreve? A mão é uma máquina, mas o selo diz: "Esta carta vem de Malekutu". E que dizia carta? Escutai bem, homens de conselho.
   - Os dois temos os ouvidos abertos, Morena.
   - Sim, aguçai os ouvidos. Assim dizia carta: "Ao Rei da Inglaterra! Nós, gente de Malekutu não somos macacos. Pedimos que as promessas feitas pelos ingleses sejam logo cumpridas. Reclamai isto, macacão isto, macacão de Comissionário. Mandai nos ingleses e não em nós. Se não recebermos satisfações, acontecerão estranhas coisas".
    - Mmallo, quem fala de tal modo? Nós ficamos mudos.
  - Estas não são palavras de conselheiros.
   Makuntedi disse:
    - Homens, ouvistes. Olhai,sob a carta está a mão de Malekutu, Pai. Não é por acaso verdade?
   - É a mãos de Malekutu, Pai.
   - Está bem. E agora escutai esta carta. "Ao rei dos Macacões! Malekutu! já falou uma vez: não falará mais. Compredemos que os ingleses são apenas fuinhas. Malekutu sabe matar fuinhas menso de noite....
   - Não, Morena, não falamos assim- declarou o conselho.
   Makuntedi mostrou a carta: era da mão de Malekutu. Todos calaram, sentindo a tempestade aproximar-se.
  
   Malekutu disse:
   - Morena, a mão sob as cartas é minha, mas a palavras não são as do conselho.
   Referiu depois a Makuntedi tudo aquilo que o conselho havia decidido e dito.
   - Não é porventura a verdade, Pai de Malekutu?
   - Thobela, é a pura verdade.
   Makuntedi permaneceu silencioso algum tempo. Sacudiu a cabeça e disse:
   - Sim, homens de Malekutu, vós falais. Eu ouço mas não ouço. Como é que vós dizeis uma coisa e a máquina diz outra?
   - Morena, nós não conhecemos a máquina.
   - É verdade, não conheceis a máquina. mas quem de vós a conhece?
   - O dono da máquina é Mokoditwa, Pai.
   - Todavia, homens, o que acontece se um doe vossos animais mata alguém?
  - O animal deve ser morto. Morena, pois do contrario amanhã matará de novo.
  - Deve ser punido, Morena, porque o animal é seu.
  - Falaste, Pai. Este animal feriu gravemente a Malekutu e sua gente.
   A tais palavras todos se calaram. Os corações estavam em tumulto, mas as cabeças ainda não podiam dizer: " Assim deveis fazer?. 
   Em seguida Malekutu falou. Disse:
  - Pai, os teus filhos caíram em um profundo buraco. Morena, vem ajudar teus filhos a saírem. Eu não falei bem, Pais de Malekutu?
   - A pura verdade, Grande Leão.
  Em lugar de responder depressa, Makuntedi olhou os homens do conselho; tinham a cabeça inclinada. Volveu os os olhos para Mokoditwa. Não , o jovem búfalo continuava pronto a atirar no ar os formigueiros. makuntedi começou:
   - Malekutu, e vós anciões do conselho...
   - Thobela, Grande Rei...
  - Reparai, o pai deve assumir a culpa do filho. Quando um menino erra, não se bate nele. A gente vai ao pai do menino e diz:
    - Velho, teu filho me assassinou.
    Então o pai chma os irmãos e discutem  o caso. O filho também é chamado. E punido. Depois o pai manda ao homem ferido um mensageiro com um presente e, assim, os corações se aplacam. Eu disse verdade, Pai de Malekutu?
   - A pura verdade, Grande leão.
   - Mas se o menino empunhou um fuzil e com ele praticou o mal, então o fuzil é destruído e o menino castigado. digo bem?
   - Mamallo, pai , são palavras verdadeiramente justas.
  - Pois bem, este filho de Malekutu possui um pergoso fuzail.
   - É um tloboló-cospe-em-elefante, pai.
   - Seus pecados conduziram grandes personagens perante os juízes.
   - Eu procedi de modo abominável, Pai.
    - Ah! Vejo que tu ouviste.
   Sim, os homens de Malekutu ouviram. O dia se havia levantado depois de uma noite muito escura. Natreva tinham  caçado lobos, mas ninguém tinha trazido um lobo. Agora viam, e a gente que vê não teme nem mesmo o leão. Malekutu disse:
  - Morena, ouvimos. o menino é culpado. eis aqui a arma, o canhão que mata sem ser visto.
   Então Makuntedi disse:
   - É assim mas devo poder dizer ao Grande Leão, vosso Pai: "Vede, serão os teus filhos, filhos de Malekutu, a punir o jovem e a destruir a arma."
   - Sim. Pai, os teus olhos verão tudo.
   Então, sobre o homem de Mokoditwa e sobre a máquina se desencadeou um tufão. Mmallo, um verdeiro tufão. Saíram todos. Diante da porta havia um grande penedo chato, sobre o qual foi posta a máquina. Ao lado da pedra se encontrava um banco ao qual os maisisi conduziram Mokoditwa, obrigando-o a deitar-se. Sua camisa e os seus calções foram atirados debaixo do banco e o amarraram braços e mãos com dihaka(algemas) Avançou em seguida um policial que manejava um grande martelo daqueles que sevem para fincar estavas de ferro no chão, "hikkeha-bo! hikkehabo!" Botou-o ao lado da máquina. Depois apareceu um segundo policial que trazia um feixe de varas de moretlva, daquelas com que se fustigam os meninos na escola de ABC. Deixou também isso ao lado do banco. Makuntedi falou então:
   - Malekuku, Pai do conselho, toca a vós infligir o castigo. deveis alternativamente empunhar o martelo e abatê-lo com força sobre a máquina. em seguida, cada um de vós deverá escolher uma das varas para bater uma vez no menino.
   - Nós ouvimos, pai.
  Depois de haver agarrado o martelo, Malekutu o depôs, a fim de cuspir nas mãos, e em seguida levantou-o bem alto.
   - Tu, filho do moloi o dia de ontem! Bja!
   O cérebro da máquina espirrou em redor. Abandonado o martelo, ele escolheu uma das varas.
   - Mokoditwa, meu filho, os nossos velhos dizem que é o feiticeiro da aldeia a chamar o feiticeiro de fora. Tu chamaste aquele feiticeiro, e de agora para o futuro esquecerás tudo o que seja perigoso!
  Seguiu-e um silvo, shaoo! e o sangue esguichou do filho do homem.
   Os outros homens do conselho o imitaram.. Amaldiçoaram a máquina, e deram sábios conselhos a Mokoditwa através de sua pele. o último agarrou o martelo, cuspiu nas mãos, mas disse:
    - Thobela, onde devo bater? Ficou alguma coisa da máquina? Ou quem sabe o culpado é o rochedo?
    Aproximou-se, Makuntedi indicou um fragmento de ferro sobre a pedra.
   - Estais vendo? É um pedacinho da língua da máquina. Se o deixardes inteiro, muitas outras línguas crescerão...
   Mmallo, o fragmento estava ali, mas depois, bja-poshaw! a língua desapareceu. O homem deveu então procurar um ponto onde acertar, porque Mokoditwa estava kwiwii de sangue...
   O velho se calou. Também Moruti se calara. Dali  a pouco Moloise disse:
   - O menino que queimou os dedos evitar o fogo. Que significam as minhas palavra? Até hoje não existem escolas em Malekutu.

FIM
  



MARAVILHAS DO CONTO UNIVERSAL

O PRAZER DE LER E AUMENTAR SEU CONHECIMENTO E SUA ALEGRIA. Uma nova etapa se inicia nos nossos trabalhos, agora vamos para contos universais, quer dizer contos de diversos países. Acontece que o conhecimento e realidade vem junto com esses contos e é isso que empolga descobrir novas histórias, bjo

segunda-feira, 26 de julho de 2021

AVENTURA DE PEDRO MALAZARTE - LINDOLFO GOMES

 Para terminar este passeio  através do Conto Brasileiro, nada mais indicado que um conto que represente bem o espírito popular brasileiro. E, para isso, nada mais apropriado que a seguinte versão das aventuras de Pedro  Malazarte, de autoria de Lindolfo Gomes, escritor que é uma das maiores autoridades no assunto.

   Pedro Malazarte é um dos poucos personagens de ficção conhecidos em quase os recantos do Brasil. Mais do que o Saci-Pererê, mais do que  Iara, mais do que o Negrinho do Pastoreio, ele exprime bem, um certo ângulo da psicologia popular brasileiro: - ingênuos, arteira e irônica.



   AVENTURAS DE PEDRO MALAZARTE


          Quando o pai de Pedro Malazarte entregou a alma a Deus, fêz-se a partilha dos bens, uma casinha velha, entre os filhos e tocou a Pedro uma das bandeiras da porta da casa, com o que ele ficou muito contente.

    Pôs a porta no ombro e saiu pelo mundo. Em caminho viu um bando de urubus sobre um burro morto. Atirou a porta sobre eles e caçou um urubu que ficou com a perna quebrada.

   Apanhou-o, pôs a porta à costas e continuou viagem.

 Obra de uma légua ou mais, avistou uma casa de onde saía fumaça. o que queria dizer que se estava preparando o jantar. Pedro Malazarte, que sentia fome, bateu à porta e pediu de comer.

   Veio atendê-lo uma  lambisgóia que foi logo dizer à patroa que ali estava um vagabundo, com um urubu e uma porta, a pedir de jantar.

   A mulher mandou que o despachasse - que a sua casa não era coito de malandros.

   O marido estava de viagem e a mulher no seu bem-bom a preparar um banquete para que bem ela muito bem o destinava. Neste mundo h´coisas.

  Pedro Malazarte, tão mal recebido que foi, resolveu subir para o telhado, valendo-se da porta que trazia e lhe serviria de escada, Subiu e ficou espreitando o que se passava naquela casa, tanto mais que sentia o cheiro de bons petiscos.

   Espiando pelos vãos das telhas viu os preparativos e tomou nota das iguarias, e ouviu as conversas e confidências da patroa e da empregada.

   Justamente na hora do jantar chegou o dono da casa que resolvera voltar inesperado da viagem que fazia.

   Quando a mulher percebeu que ele se aproximava mandou esconder os pratos do banquete e veio recebê-lo e abraçá-lo muito fingida, muito risonha, mas por dentro queimando de raiva.

   Vai daí mandou por na mesa a janta que constava de feijão aguado, paçoca de carne seca e cobu, dizendo:

    - Por que não me avisou, marido? Sempre se havia de aprontar mais alguma coisa....

   Sentaram-se à mesa.

   Pedro Malazarte desceu de seu posto e bateu na porta, trazendo o urubu.

  O dono da casa levantou-se e foi ver  quem era.

   O rapaz pediu-lhe um prato de comida e ele chamou-o para a mesa a servir-se do pouco que havia.

   A mulher estava desesperada, desconfiando com a volta do Malazarte.

   Pedro tomou assento, puxou o urubu para debaixo da mesa, preso pelo pé num pedaço de corda de pita.

   Estavam os dois homens conversado, quando de repente o Malazarte pisou no pé quebrado do bicho e este se pôs a gritar; uh!uh1 uh1

   O dono da casa levou um susto e perguntou que diabo teria o bicho.

   Pedro, respondeu muito sério:

  - Nada! São coisas. está falando comigo.

   - Falando! Pois o seu bicho fala?!

  - Sim, senhor, nós nos entendemos. Não vê como o trago sempre comigo? É um bicho mágico, mas muito intrometido.

   - Como assim?

   - Agora, por exemplo, está dizendo que a patroa teve aviso oculto da volta do senhor e por isso lhe preparou uma boa surpresa.

   - Uma surpresa! Conta lá isso como é.

  - É deveras! uma excelente leitoa assada que está ali naquele armário...

   -Pois é possível! Ó mulher, é verdade o que diz o urubu deste moço?

   Ela com receio de ser apanhada com todo o banquete e certa já de que Pedro sabia da marosca, apressou-se em responder:

   - Pois então? pura verdade. O bicho adivinhou. Queria fazer-te a surpresa no fim do jantar.

   E gritou pela empregada.

 - Maria, traz a leitoa.

   A empregada veio logo correndo, mas de má cara, coma leitoa assada na travessa.

Daí a pouco Pedro Malazarte pisou outra vez no pé do Urubu quesoltou novo grito.

  O dono da casa perguntou;

  - O que é que ele está dizendo?

   - Bicho intrometido! Está candogando outra vez.

Cala a boca, bicho!

 - O que é?

  - Outras surpresas.

  -Outras!

  - Sim, senhor; um peru recheado...

  - É verdade, mulher?

  - Uma surpresa, maradinho do coração. Maria, traz o peru recheado que preparei para tu amo.

  Veio o peru. E pelo mesmo expediente conseguiu Pedro Malazarte que viessem para a mesa todas as iguarias, doces e bebidas que haviam em casa.

   Ao fim  do jantar, o dono da casa vendo que o urubu de Pedro Malazarte era encantando e sabia descobrir todos os segredos, propôs-lhe comprá-lo. 

  Malazarte  pescando que estava em véspera de fazer um bom negócio, encareceu ainda mais as virtudes do urubu e pediu este mundo e o outro.

   O homem vacilou em fechar o negócio, e Pedro, justamente quando a empregada veio trazer o café na sala, disse ao dono da casa de modo que a mucamba ouvisse:

   - Este bicho é deveras  encantado, patrão. E e é capaz de descobrir outras  coisas que se passam em sua casa sem o senhor saber.

  - Não me diga isto!

   - É o que lhe digo. Mas, para que ele não emudeça e possa contar tudo que tenha visto, é preciso que haja o maior cuidado para que nenhuma mulher lhe verta água na cabeça. E se quiser experimentar deixe-o esta noite ficar no corredor que amanhã teremos que saber muitas novidades. O homem aplaudiu a proposta e prometeu comprar o urubu, se saísse certo o que dizia o Malazarte.

    Mas a empregada que tinha visto a combinação mal saiu da sala foi contar tudo à senhora, que ficou muito assustada, pois que, naquela noite, havia de receber a visita do sacristão da vila, e não sabia com arranjar para que o urubu candongueiro não pusesse tudo a perder.

    A empregada teve uma luz, e disse que não havia perigo, pois ela se encarregaria de verter água na cabeça do urubu para que ele perdesse o encanto.

 Às tantas da noite todos se foram acomodar, tendo Malazarte cuidado de deixar o bicho no corredor, fazendo de sentinela.

     Vai senão quando, lá para a virada da noite, a dona da casa, pé que pé, veio abrir a janela, por onde saltou para dentro o sacristão, enquanto a empregada estava fazendo o que prometera na cabeça do urubu.

   Quando o bicho se viu com a cabeça toda molhada, não teve mais conversa- tico! e deu uma bicada na governanta lá onde quis e ela ficou segura, e vai então a empregada soltou um grito.

   A senhora, temendo que o marido despertasse, correu para arrancar a sua mucamba do bico do bicho. Agarrou-a pelo braço, mas não houve meio. A rapariga, então, no auge do aperto, apegou-se no braço da senhora que se pôs também a gritar. o sacristão acudiu para ver se podia ajudar as duas a desvencilharem-se. mas já a este tempo. Pedro Malazarte havia despertado o dono da casa, E os dois correram a ver o que era e encontraram aqueles três assim como estavam.

  E vai então o dono da casa descobriu tudo, desancou o sacristão a pau, moeu os ossos tanto da senhora como da escrava e resolveu comprar o urubu.

  Ma aí é que foi a história. Pedro Malazarte pediu pelo bicho cinco contos de réis. Abate que não abate, o homem teve mesmo de escorropichar o cobre, vintenzinho por vintenzinho, e Pedro Malazarte , deixando ficar o urubu, de quem se despediu chorando, pôs-se a caminho, mas vendo no pátio da fazenda uma carneirada, resolveu levá-la também e foi tocando a carneirada como se fosse dono dela.

   Vendo que a vítima vinha em sua perseguição, " deu tudo quanto tinha" e ao aproximar-se de um riacho encontrou uma mulher a lavar roupa. Estava perdido,porque a lavadeira diria ao perseguidor a sua direção.

  Mais que depressa tocou a carneirada a travessar o riacho, e tomando um dos carneiros, tirou-lhe as tripas e meteu-as debaixo da camisa. Quando a manada passou, ele arrancou da faca, fingiu que  abriu o ventre e deixou cair na água as tripas do carneiro que ali levou ocultas.

   A lavadeira deu um grito, caiu desmaiada ao presencial tal cena e Malazarte desapareceu.

   Quando o perseguidor chegou a toda, e perguntou à lavadeira se tinha visto passar um homem com uma carneirada, ela respondeu, quase sem poder falar, que Pedro Malazarte havia feito o que ficou dito.

  E porque Pedro já estava longe com o rebanho, o homem voltou soltando um milhão de pragas.

   Já muito longe encontrou um porqueiro que vinha tocando também uma capaderia superior para vendê-la na vila.

  Pedro Malazarte que já previa que o fazendeiro havia de vir no seu rastro, propôs troca  dos carneiros que valiam menos pelos porcos que valiam mais.

 Fecharam o negócio, tendo o porqueiro feito uma volta em dinheiro.

  Malazarte seguiu com a porcada e o outro com os carneiros, em direção oposta.

    O porqueiro foi pousar em casa do dono dos carneiros.

   Ao ver o seu rebanho, o homem avançou para o porqueiro, e exigiu entraga do que era seu. O porqueiro quis resistir, mas vendo que o homem estava armado até os dentes e tinha muitos capanga, não teve outro, remédio senão fazer a restituição, ficando no prejuízo, e tocou pra trás a ver se encontrava o Malazarte que já estava longe, tendo tomado por um atalho que foi dar numa fazenda. E vai então vendeu a porcada, por um precinho barato, mas com a condição de o comprador deixar que ele cortasse a ponta do rabo de cada porco.

   Fecharam o negócio e Pedro Malazarte meteu no embornal os rabinhos dos porcos e bateu o pé na estrada.

   E foi dar no castelo de um ricaço que era casado e tinha uma filha, e, ofereceu-se para empregado. e foi aceito.

    Como era tempo de chuva, o chiqueiro estava que era mesmo um lameiro. E Malazarte teve logo uma ideia.

   De noite tocou para longe a porcada do ricaço e, voltando espetou no lameiro as caudas dos porcos.

  E quando de manhã o dono da casa veio ver o porcada, Malazarte lhe apontou o lameiro e disse-lhe que os porcos estavam atolados, apenas com os rabos de fora.

   O dono da casa mandou-o logo que fosse à casa buscar duas enxadas a ver se podiam desenterrar os animais.

  Pedro, Malazarte foi numa corrida e, lá chegando, viu a dona e a filha passeando no jardim e lhes disse:

    - O patrão mandou que as senhoras me acompanhem.

   Elas duvidaram, mas Malazarte gritou, perguntando ao patrão que estava lá, embaixo:

      -  As duas, patrão?

   - Sim, as duas, e sem demora! As duas, pateta! 

     E então as senhoras não puseram mais diferença e acompanharam Pedro que tomou com elas outra direção.

  Já longe o velhaco amarrou-as numa árvore, tirou-lhes todas as jóias que eram de grande preço, fugiu e foi tocar a porcada que tinha ocultado no dito retiro.

   E quando o ricaço cansado de esperar foi à casa e não encontrou a mulher e a filha, bateu a procurá-las até que as achou amarradas onde Malazarte as havia deixado.

  E quando voltou é que viu que dos porcos só havia os rabinhos , e que ele é que era um pateta de marca.

  A muitas léguas dali o Malazarte negociou a porcada, recebeu o cobre, comprou um bom terno de roupa e foi parar em certa cidade, onde, logo na entrada, havia uma bonita chácara que era do doutor juiz de direito, 

    Era já por umas dez da noite.

   O Malazarte bateu à porta e pediu pousada dando o nome do doutro fulano que vinha visitar aquela terra.

  O Juiz costumava entrar tarde, pois ficava até meia-noite fora de casa, jogando marimbo com um seu compadre.

  E vai então o filho do juiz, na sua simplicidade, mandou entrar o hóspede e, depois de um bom chá, deu -lhe pousada, no quarto da sala, onde o juiz costumava se vestir.

   E quando o juiz chegou, o filho lhe contou o que se tinha passado e o tolo ficou muito satisfeito daquela hospedagem.

  E vai então lá pela madrugada o Malazarte começou a sentir umas coisa na barriga...

  Procurou o vaso e, não o encontrando, abriu a janela.... mas lá fora havia uma cachorrada, que foi um barulho de latidos que nunca se viu.

  O Malazarte estava suando frio. Mas nisto avistou na prateleira uma caixa. abriu, havia dentro uma cartola de pelo. estava salvo! Tirou a cartola, fez o que quis, pôs outra vez na caixa e esta no lugar onde antes estava.

   De  manhã, quando ouviu tropel dos criados saiu e...este mundo é meu!...

  Quando vieram chamar o Malazarte para o café, não o acharam mais.

  A hora do almoço, o juiz saiu do quarto e foi par ao cômodo em que se costumava vestir.

  Era dia de júri. Vestiu a sobrecasaca, e distraído, tirou a cartola que enterrou, de um golpe, na cabeça. Para que tal fizeste! Ficou com a cara enlameada e sentiu um cheiro que quase o afogou.

   Começou então a gritar. A família veio toda, pensando que tinha acontecido alguma desgraça.

   Ao vê-lo naquele estado, correram todos a buscar socorro. O filho trouxe-lhe um banho, a filha água-florida, a mulher sabonete de cheiro.

   E depois houve risada que não foi brinquedo, enquanto o juiz bufava de raiva. e os jurados já estavam cansados d eesperar porele...

  Mas o malazarte já estav alonge, Até parecia que tinah parte com Belzebu.

  Nisto ele soube no caminho que sua mãe tinha  morrido, e, como era muito extremoso, foi logo ter em casa.

   Lá encontrou os irmãos que se fingiam chorosos. Ele também derramou muitas lágrimas e resolveram logo a fazer a partilha, pois que cada um queria cuidar de sua vida.  

   A herança não era grande, mas sempre havia um sítio, umas colheitas, umas terras uma casinha...

  Os irmãos começaram a escolher o que havia de melhor. Mas, Pedro Malazarte disse:

   - Lá por isso não seja a dúvida. Eu quero somente três coisas: uma folha da porta da casa, o corpo de minha mãe e o cavalo matungo.

   Os outros estranharam aquilo, mas como era fácil de contentar, combinaram na partilha.

   Pedro amarrou o corpo da velha no selim do matungo e em posição de cavaleiro, e saiu puxando o cavalo, prometendo voltar , depois, em procura da porta.

   Foi dar numa fazenda, já tarde da noite e pediu pousada. A gente da casa, já estava acomodada, mas a pessoa que veio abrir consentiu na hospedagem, porque Pedro alegou o cansaço da velha, a doença dela coitadinha!

   Mostraram-lhe um quarto na entrada, onde os dois ficaram.

  A certa hora, Pedro Malazarte pegou no cadáver, enveredou com ele pelo corredor e foi colocá-lo à porta do quarto do dono da casa.

  Este, quando, pela manhã, abriu a porta, levou um grande susto ao ver um corpo pesado caiu dentro do quarto.

  E havia no chão muito sangue, pois a cabeça da defunta, quando caiu se tinha quebrado.

  O homem fez um grande alarme, vindo logo Pedro, esfregando os olhos fingindo ter-se acordado naquele momento.

  Ao ver aquele quadro, lançou-se sobre o cadáver da velha e fez um grande choro, acusou o fazendeiro de haver sido o assassino de sua mãe e pediu grossa gratificação, sob pena de ir queixar-se à justiça.

   O fazendeiro não teve remédio senão cair com o cobre e ainda fazer o enterro do corpo.

  Pedro Malazarte voltou para casa em procura da porta, tendo ainda no caminho vendido o punga que logo, logo, cansado da viagem, arriou na estrada e morreu. Pedro Malazarte quando chegou com a porta onde ficara o cavalo, viu que sobre este estava um bando de urubus, atirou a porta sobre o bando, apanhou um urubu que ficou com a perna quebrada e seguiu viagem.

   Este dito urubu, foi o mesmo que ele vendeu por cinco contos; estão lembrados?

   Em certa altura deu-lhe  vontade de verter água. Encostou-se a um grande paredão pertencente a uma bonita quinta. E, quando estava no melhor, apareceu o dono da chácara muito zangado a pergunta-lhe quem lhe tinha dado ordem para fazer aquilo ali.

    Pedro disfarçou e respondeu:

    - Ah! meu senhor, desde manhã que estou aqui encostado, sem comer, nem beber só por causa dos outros.

  - Por causa dos outros? Então como é lá isso?

  - Estou escorando o muro.

  - Você está doido!

  - Pois é verdade, patrão, vinha eu caminhando no meu quieto, mas, quando cheguei neste lugar, me apareceu a figura de um anjo  que veio descendo do céu e que me disse estas palavra:

   - Por ordem do senhor Deus o mundo vai acabar à meia-noite de hoje.

  Imagine o susto que não levei! Mas o anjo me aquietou:

   - Há remédio para se evitar isto: é encontrar alguém que escore este muro, desde este momento.

  - Só por isso não seja a dúvida, respondi, vou já cortar uma estaca...

 - Não, não há tempo. Antes de um minuto o muro deve estar escorado. E me empurrou para aqui onde me acho, sem poder arredar pé, se saio, o mundo vem  abaixo.

  - Deveras?!

  - Ah! se o patrão me fizesse o favor de tomar o meu lugar enquanto eu vou ali no mato cortar uma escora, tudo estava arranjado, mesmo porque, se eu ficar por mais tempo, não resistirei e com a minha morte o mundo virá abaixo e ninguém escapará.

  O homem pensou e resolveu tomar o lugar de Pedro que prometeu voltar logo com a escora, e até hoje está sendo esperado.

  Quando chegou na cidade Pedro meteu-se em divertimentos com os estudantes e gastou todo o dinheiro. E antes que ficasse de todo limpo comprou uma panelinha de trempe, uma matula e seguiu viagem.

  Já havia caminhado muito, quando avistou um rancho desocupado.

  Resolveu descansar ali. Fez fogo, pôs a panela de três pés com a matula a aquecer.

   Mas nisto, vem chegando uma tropa. Pedro Malazarte mais que depressa pôs um monte de terra sobre, o fogo e ficou muito quieto diante da panela que fumegava. os tropeiros, vendo aquilo, ficaram muito espantados e perguntaram:

   - Que moda é esta, patrício, de cozinhar sem fogo?

   Pedro respondeu logo:

  - Isto não é para todos.pois não vêem logo que a minha panela é mágica?

  - Então cozinha sem fogo?

   - É como estão vendo e a qualquer hora. Mas, como a fada me disse que estou por poucos dias, posso negociá-la.

   Os tropeiros viram naquilo um acahado; provaram da comida e acharam tudo muito bom.

  Comprara a panela, pagando por ela quanto lhes foi pedido.

  Quando à hora da ceia foram cozinhar sem fogo, deram com a marosca, mas, já era tarde, o Malazarte tinha-se posto a muita distância...

  Malazarte ia viajando quando lhe deu vontade de dar de corpo. Agachou-se no meio da estrada, e ali ficou.

   Nisto avistou um senhor que andava caçando.

  Malazarte tirou o chapéu e colocou-o sobre o que havia feito. O senhor quando se aproximou perguntou-lhe:

  - Que está fazendo aí a segurar este chapéu com tanto cuidado?

  - É um lindo passarinho que  apanhei debaixo do chapéu. canta que é um gosto. E eu não quero perde-lo. Estou à espera de alguém que queira tomar conta dele, enquanto vou buscar uma gaiola.

  O homem ficou muito curioso de ver o canário, pois era grande apreciador de pássaros cantadores.

  Propôs comprá-lo, mas com a condição de Malazarte ir buscar a gaiola.

   Pedro, depois de muitas negaças, fechou o negócio por um bom dinheiro, deixou o tolo a tomar conta,  e foi buscar a gaiola.

   O tempo ia passando e Malazarte não voltava. então o homem, já impaciente, tomou o partido de apanhar o pássaro com a mão e levá-lo para casa.

  Com toda a cautela, meteu a mão debaixo do chapéu e, quando pensou que pegavao canário, agarrou uma coisa muito diferente.

   Deu os pregos, soltou pragas, enquanto, Pedro já estava muito distante, e se divertindo à custa do trouxa...

   Foi então que Pedro se encontrou com um dos seus irmãos, com quem gastou em pândegas muito dinheiro.

   Esvaziada a bolsa, seguiram de viagem juntos.

   Depois de caminharem muitas léguas, varados de fome, chegaram em casa de um casal de velhinhos, gente de lavoura  e muito pobre.

   Pediram pousada. Mas os velhos não tinham cômodo nem nada - disseram- que lhes dar para matar a fome....

    - Só se quiserem dormir na salinha, no monte de palha...

   Pedro aceitou logo a oferta.

   Os velhos forma para os eu quarto, e os irmãos ficaram na palha.

  Mas, de madrugada, o Malazarte sentiu um cheirinho bom e ouvia o chiado de uma panela lá na cozinha, e perguntou ao irmão:

   - Manuel, você não está ouvindo um chiado?...

Quem sabe se na cozinha há alguma coisa que se coma?

   O outro respondeu:

  - É possível. Essa gente da lavoura costuma deixar a panela no fogo durante a noite, para comerem de manhã antes de irem para o trabalho.

   Pedro, andando na ponta dos pés, levou o irmão para a cozinha, onde encontraram no fogo uma panela de mingau de fubá, fumegante,

   Comeram quanto quiseram, até farta-se e, como Pedro era um grande pândego, não podia passar sem fazer das suas, disse que estava com muita pena da velha e que ia também dar um pouco de mingau.

     Foram para o quarto e enquanto o irmão segurava com muito medo a panela, o Malazarte ia pondo com a colher o mingau onde supunha que era a boca da velha.

   De vez em quando ouviam uns sopros e Pedro dizia baixinho:

   - Está quente, avózinha? sopra, minha velha!

  Depois de irem levar a panela à cozinha, os dois irmãos puseram-se ao fresco, logo ao amanhecer.

   Já estavam longe, quando o velho despertou furioso com a mulher, a quem acusava de ter desfeiteado a cama...

  - Eu? seu tratante! eu?

   - Não faça de tola, que não foi outra senão você mesmo!

   Mas então a velha sentiu alguma coisa lá nela mesma. E os dois que nunca tinham brigado agarram-se à unhadas, saltando fora da cama toda cheia de mingau!

  Correram para a cozinha e acharam a panela vazia, foram a sala e já lá não estavam os hospedes.

   Rogaram muitas pragas e juraram não dar mais pousada a ninguém, salvante a Nosso Senhor Jesus Cristo.

   Quando Malazarte morreu e chegou no céu, disse a São Pedro que queria entrar.

  O santo porteiro respondeu:

   - Está louco! Pois ainda tens coragem de querer entrar no céu, depois que tantas fizestes lá pelo mundo?

  - Quero, São Pedro, pois é o céu é dos arrependidos, e tudo quanto acontece é por vontade de Deus.

   - mas o teu nome não está no livro dos justos e portanto não entras.

  - Mas então eu desejava falar com o Padre Eterno.

    São Pedro zangou-se com aquela proposta. E disse:

    - Não, para falares a Nosso senhor, precisava entrar no céu, e quem entra no céu dele não pode mais sair.

   Malazarte se pòs a lamentar e pediu que o santo ao menos o deixasse espiar o céu, só pela frestinha da porta para que tivesse uma ideia do que fosse o céu, e lamentasse o que havia perdido por causa das más artes. 

   São Pedr. já amolado, abriu uma fresta da porta e Pedro meteu por ela a cabeça.

   mas de repente gritou:

   - Olha, São Pedro, Nosso Senhor que vem falar comigo. Eu mão te dizia!!!

    São Pedro voltou-se com todo o respeito para dentro do céu, a fim de render homenagens ao Padre Eterno que supunha ali vir.

 E Pedro Malazarte então pulou para dentro do céu.

   O Santo viu que tinha sido enganado. Quis por o Malazarte para fora, mas ele contrariou:

   - Agora é tarde! SãoPedro, lembre-se de que me disse que do céu, uma vez entrando, ninguém mais pode sair. É a eternidade!

   E São Pedro não teve outro remédio senão deixar o Malazarte lá ficar.

   FIM

  




Continua, querido leitor tenho muitos afazeres por isso não consigo digitar os contos no mesmo dia. Amanhã teremos mais.



Adicionais

Pedro Malazarte

figura era um exemplo da esperteza, da inteligência, da criatividade, mas não se sentia nenhum pouco culpado em usar a mentira e enganar as outras pessoas em proveito próprio.