quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Monteiro Lobato - Colcha de Retalhos Obras- Primas do Conto Brasileiro

 










Upa!

Cavalgo e parto.

Por estes dias de março a natureza acorda tarde. Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblinas e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho luminosos do sol.

    A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.

    Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada descorar passos adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante dalguns angiqueiros marginais.

   Agora, uma porteira.

  Ali, a encruzilhada do Labrego.

   Tomo à destra, em direitura ao sítio do José Alvorada.

   Este sujeito mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata de terra que pelas bocas do caeté, legítimo, da unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.

   Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.

  Três alqueires, só do bom. Talvez quatro. A noventa por um - nove vezes quatro trinta e seis: trezentos e seis: trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontados as bandeiras(qualquer trecho do milharal) que o porco estraga e o que comem a paca e o rato.

   Será a filha do Alvorada?

  - Bom-dia, menina. o pai está em casa?

    É a filha única. Pelo jeito não vai além de quatorze anos. Que frescura! Lembra os pés d'avenca viçados nas grotas noruegas(grota fria, onde nunca bate o sol). Mas arredia e itê ( sabor agreste, adstringente, ácido) como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! D'olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água a este córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás naquela moita de taquaris, ao ver-me.

   - O pai está lá? - insisti.

   Respondeu um 'está" enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

    Como a vida do mato asselvaja estas veadinhas?

 Nota-se que os Alvoradas não são caipiras. O velho, quando comprou a situação dos Periquitos, vinha da cidade; lembro-me até que entrava em sua casa um jornal.

    Mas a vida  lhes correu dura na luta contra terras ensapezadas e secas, que encurtaram as safras por mais que dê de si o homem. Foram-se rareando as idas à cidade e, ao cabo, de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina , rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo - uma tamina( ninharia, coisa de nada), três mil pés - o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

  Se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essa enraizou de pião para o resto da vida. Costuma dizer: mulher da roça via à vila três vêzes - uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.

  Com tias casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo D'Água ( tinha esse apelido a Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo à gente. Fôra uma vez à vila, com vinte dias, a batizar. E já lá ia nos quartoze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.

   Ler? Escrever? Patacoadas, falta de serviço, dizia a mãe. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora se des'que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

  Deixei a menina ás voltas coma rodilha e embrenhei-me por um atalho condicente à morada.

  Que ruinaria!...

   Da casa antiga aluíra uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.

   O velho pomar, roído de formigas, sucumbira de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro na laranjeiras macilentas, furadas de broca, sopesando o polvo retrancado da erva-de-passarinho, abrolhavam ainda rebentos cheios de compridos espinhos. Fora disso, mamoeiros a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só repeitava o terreirinho batido, fronteiriço à casa. Tapera, quase,e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.

   Bati palmas.

  - Ó de casa!

 Apareceu a mulher.

   - Está seo Zé?

    - Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na massaranduva no pasto. Apeie e entre.

   Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.

   Acabadinha, a Sinh"Ana. Toda rugas na cara - e uma cor...Estranhei isso.

    Doença, gemeu. Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda...Casa velha, é o que é.

   - Metade é cisma - disse-lhe, para consolo.

   - Eu é que sei! - retrucou-me suspirando.

  Entrementes, surgiu na cozinha uma velhota bem apessoada, no cerne, rija e tesa que me saudou e:

   - Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta pra nada....Olhe: eu com setenta no lombo não me troco por ela...Criei a minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso sim!....

   - Mecê é gobola porque nunca padeceu doença - nem de dor de dente....Mas eu ? Pobre de mim! Só admiro de inda estar fora da cova....Aí vem o Zé.

   Chega o Alvorada. Ao ver-me, abriu a cara.

   - Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim....È só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num ôco muito alto  e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não!  É mel de pau.

  Depois num mochô a cuia dos favos e se foi à janela lavar as mãos sob a cuia d"água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo:

    - Hoje veio no picaço...Bom bicho! Eu sempre digo: animais, aqui no redor, são este picaço e a ruana do Izè de Lima. O mais é eguada de moenda.

   Neste momento entrou a menina de pote à cabeça.

   Ao vê-la o pai apontou para a cuia de mel.

   - Está ai, filha, o doce a aposta. perdi, paguei.

  Que aposta? Ah!ah! Brincadeira. À gente cá na roça, quando não tem serviço, com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse, à toa, são mais de dez! Pingo negou: não chega lá! Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo, não é o que parece não!

   A loquacidade do Alvorada não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dado corda, ressurgia nela o tagarela da cidade.

  Expus-lhe o meu negócio. O homem enrugou a testa e refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:

   - Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Des"que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo dinheiro. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos não livrei o jornal.

    Desde então fiz cruz em serviços alheios. Se inda teimo neste sapezeiro é por via da menina; se não,  largava tudo e ia viver no mato, como bicho. È pingo que inda me dá um pouco de coragem, concluiu com ternura.

   A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixa, pusera-se a coser, de óculos no nariz.

  Aproximei-me admirativo.

  - Sim, senhora! Com setenta anos!

  Sorriu-se, lisonjeada.

   - É pra ver. E isto aqui tem coisa! É uma colcha de retalhos que venho cosendo há quatorze anos, des"que |Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela, vou guardando nesta caixa cada retalho que sobeja e um dia eu os coso. Veja que galantaria de serviço!...

   Estendeu-se ante os olhos um pano variegado, de quadradinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.

   - Esta colcha é o meu presente de noivado. O último,o retalho há de ser o vestido de casamento, não é, Pingo?

   Pingo D"Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta. Mais dois dedos de prosa, ruim cafezinho ralo - escolha com rapadura - e,

   -Está bem - rematei, levantando-me do môcho de três pernas.  _ Como não pode ser, paciência. Apesar disso, acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os raçados a oitenta mil-réís o alqueire. Dá para ganhar, não?

   - Que dá, eu sei que dá - mas também sei para quem, dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitas peguei a sessenta, e não me arrependi. Mas hoje....

   - Nesse caso....

   Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Dona Ana falecei. Era fatal a dor respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memoria a imagem daqueles humildes urupês, quando chegou aos meu ouvidos um zunzum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo D"Água aos Periquitos.

   - Como isso? Uma menina tão acanhada!...

   - É para ver! Desconfiem das sonsas....Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade- não para casar, nem para enterrar. Foi ser "moça" a pombinha....

    O incidente ficou a azoinar-se o bestunto. À noite perdi o sono, revivendo cenas da última visita ao sítio, e disse brotou a ideia de lá tornar. para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne. 

Fui

  Setembro intumescia gomos em cada arbusto.. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até as cabeças dos morros  distantes.

     Poe amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesma trilha.

   No córrego vi, com os olhos da imaginação,o vulto da menina envergonhada, com o pote descansado na lage e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto erma já galhaça ressêca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgrebe. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalga-se de moitas  de guanxuma, cordão-de-frade e juás.

    - Ó de casa.

   Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma senhora, acurvada e trêmula.

    - Bom dia, Nhá Joaquina. Está seo Zé?

     Não me reconheceu a velhinha. O Zé fora à vila vender a sitioca para mudar de terra.

   Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.

   Entrei para a saleta vazia.

   - Tem coragem de estar aqui sozinha?

   - Eu? Sozinha estou em toda a parte...Morrera-me tudo, a filha, a neta...Senta-se - disse, apontando par ao mocho de dois anos atrás.

   Sentei-me com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:

    - O que é a vida, Nhá Joaquina! Parece qeu foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo. Hoje...

   A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

   - Viver setenta e dois anos para acabar assim!.. Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro...

   Confrangia-se-me o coração naquele ermo onde tudo era passado - a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas, salvo trêmulo espectro encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.

   - Que mais agora? - murmurou, pausadamente, em vez de quem já não é deste mundo. - Até a " desgraça". eu não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava da vida. morreu-me a filha, mas restava a neta que é duas vezes filha e era o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha...Agora, que mais? Só peço a Deus que me tire, logo e logo...

   Relancei um olhar pela sala vazia. A caixeta de  costura inda estava sobre a arca, no lugar de sempre. Meus olhos pousaram nela, marasmados.

   A velha advinhou-me o pensamento e, erguendo-se, tomou a caixa nas mãos trêmulas.

   Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremura na voz, disse:

    - Dezesseis anos - e não pude acabar a colcha... Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem a sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d'Água. Aqui leio a vidinha dela des'que nasceu.

   Este, olhe foi da primeira camiseta que vestiu...Tão galantinha! Estou a vê-la no meu  braço, tentando pegar os óculos, com a mãozinha gorda...

   Este azul, de listras, lembra um vestido que lhe deu a madrinha aos três anos. Ela já andava pela casa inteira, armando reinações m, perseguindo o Romão, que um dia, poe sinal lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me "-óó Aquina".

   Este vermelho, de rosinhas, foi quando completou os cinco anos. estava com ele por ocasíão do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?

   Este cá de xadrezinho foi pelos sete anos, e eu mesmo o fiz, e o fiz de saía comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha!

   Pingo D'Água já saiba temperar um virado, quando usou este aqui de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.

    Este roxo, usou-o quando tinha dez anos e caiu de sarampo, muito maozinha. Os dia e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias" Como gostava de Gata Borralheira!...

   A velha enxugou na colcha uma lágrima, e calou-se.

    - E este? - perguntei, apontando um retalho amarelo, para avivá-la.

     Pausou um bocado a triste avó, em contemplação. Depois:

   - Este é novo. Já tinha quinze anos quando o vestiu pela primeira vez, num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece-me que a desgraça começa aqui. Ficou um vestido muito assetadinho no corpo, e galante, mas, pelas minhas contas, foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava...

   - Este - disse-lhe eu, fingindo recordar-me - é oq eu vestia quando cá estive.

   - É engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

   - È verdade, é verdade! - menti. - Agora me lembro, era isso mesmo. E estye derradeiro?

   Após uma pausa dorida, a pobre criatura sacudiu a cabeça e balbuciou:

    - Este é o da desgraça. Foi o último que lhe fiz. Com ele fugiu...e me matou.

   Calou-se a lacrimelar, trêmula.

   Calei-me também, opresso dum infinito apertão d'alma.

    Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida, machucado pela mocidade louca!...

   E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos pregados na colcha.

  Ela por fim quebrou o silêncio.

  - Era o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. já pedi que me enterrassem com ela...

   E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.

   Um ês depois morria. Soube que lhe não cumpriram a última vontade.

  Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça~?

  Pieguices....

FIM

                        (CONTOS PESADOS)

  

  








substantivo masculino
  1. 1.
    COSTURAALFAIATARIA
    fita que se prega dobrada à margem de um tecido, para ornar e/ou para evitar que a trama se desfaça; vivo.
  2. 2.
    POR EXTENSÃO
    qualquer espécie de ornamento em forma de filete, ger. de cor diferente, us. para margear uma figura, um desenho etc.


O que é Angiqueiro:
É um tipo de árvore que se chama angico e exitem duas espécies, Angico-branco (Anadenanthera colubrina); angico-vermelho (Anadenanthera macrocarpa).




labrego
/ê/
adjetivo substantivo masculino
  1. 1.
    diz-se de ou homem rude do campo; camponês, vilão.
  2. 2.
    POR EXTENSÃO PEJORATIVO
    que ou aquele que é ignorante.



Nata de terra que pelas bocas do caeté, unha-de-vaca,caquera (Padrões de terra boa)