Quando o velho Borges botou a cabeça fora da janela, sentindo o tempo, a barra de manhã nascia na serra do Tarâ. O cizento da madrugada diluía-se no clarão que vinha surgindo, e o chão, distante, ia tomando formas entre as sombras da mataria detrás de casa. Na frente, na burra-leiteira onde se amarravam os cavalos, e os passarinhos cantavam.
O velho afastou-se da janela e reapareceu ao cabo de um instante, com uma cuia na mão. Lavou o rosto, bochechou água, tirando o mingau das almas. Apanhou de trás da porta um molambo, esfregou-o na cara e o sangue veio forte à superficie da pele avermelhada, Os olhos azuis, miudinhos, apertavam-se para enxergar melhor, porque a casa ainda estava toda no escuro. Ninguém mais havia se levantado ainda. O velho vaqueiro tomou a sua pitada de tabaco, pigarreou e bateu na porta da camarinha:
- Acorda, Marica, que é meio-dia!
Foi depois à do sobrinho e bateu, levantando mais a voz:
- Avia-te Joaquim, se não se chega lá de noite!
Passou à sala da frente, abriu as janelas, apanhou os facões pendurados dum torno, as duas foices encostadas na forquilha do pote, e saiu.
Daí a pouco Joaquim de arreador na mão, dirigiu-se ao curral. Passou pelo velho Borges e pediu-lhe e benção ainda meio estremunhado, bocejando, tonto de sono. Adiante deu uma topada num toco e soltou uma praga. O tio ouviu a praga e aconselhou:
- Bate com a mão na boca, Joaquim! Quem sabe se não é alma penada pedindo reza!
Joaquim prosseguiu, sem dizer nada. Zumba, seu irmão mais novo, veio em seguida. e passou fungando, tremendo de frio, tomando a benção entre os dentes cerrados:
- "Bença", tio Borr!
O velho abençoou-o. E de cócoras, com uma cuia dagua ao lado, amolava as foices na pedra encravada nas raízes da burra-leiteira. Sabia da altura do sol, sem levantar a vista, pela sombra do próprio corpo projetada no chão ainda meio escuro. Sem levantar a cabeça afiando as foices, gritou:
- Vocês estão remanchando preguiça! Olhem o olho do sol lá em cima!
Daí a pouco D. Marica chamou o marido:
- O café está pronto, Borges!
Depois de amolados, o velho enxugou a foice e os dois facões numa estopa velha, encostou a cuia na parede para as galinhas e entrou em casa. Sentou-se junto da mesa, descansando um pé de sobre o banco vasto de tábuas de facheiro. Com pouco mais a mulher trouxe a comida. O café cheiroso vinha quase fervendo na marmita. E os três cucuz de milho, em pratos separados, fumegavam, quentinho ainda. O velho quiz apenas uns goles de café temperado com rapadura. Quando os dois sobrinhos chegaram, Zumba com um potinho de leite na cabeça, o tio logo recomendando:
- Vai depressa, Joaquim, não vamos brincar não! É de noite!
D. Marica botou café para os dois, empurrou o cucuz para junto deles e lembou ao marido:
- Foi o último punhado de milho, Borges! Amanhã não tem mais cuzcuz.
Joaqum tomou dois goles de café, tirou com uma colher um pedaço de cuzcuz. seco com beiju velho, e botou no prato de flandres. O velho saíra da mesa. Consertava a correia da alpercata na claridade da porta, e de lá recomendou novamente ao sobrinho:
- Toma logo isso, Joaquim! Hoje o corte é lá na Serra de Dentro.
O sobrinho engoliu os último pedaços de cuscuz. bebeu o resto do café, fez depressa um cigarro de palha, entrou na camarinha e de volta disse ao tio:
- Podemos ir andando, tio Borges.
O velho indagou:
- E ela como vai passando?
Joaquim respondeu secamente:
O velho perguntou também pelo ceguinho que dormia ainda. O pessoal de casa tomaria café depois. Umbelino, o cego grande, estava sentado no chão, num canto da sala. Os dois vaqueiros, prontos, botaram a tiracolo os velhos bissacos de caça, onde D. Marica já havia posto cuidadosamente a merenda, tomaram as foices e partiram.
O sol queimava o lombo, apesar de tão cedo. A garrancheira seca do mato mal dava sombra ao caminho. A estirada era boa, légua e tanto, Os dois marchavam calados, o velho na frente e o sobrinho atrás. As alpercatas sacudiam a areia esturricada, estalando nos calcanhares como matraca de mascate. Os calangos e as lagartixas, esquentando sol, fugiam do barulho dos passos e metiam-se pelos garranchos rasteiros.
Desceram um altozinho de pedra, bem no meio do caminho de onde se via o cinzento cerrado os esqueletos das árvores perdidas lá no baixo. Vistas a distância, pareciam uma nuvem de cinza. Nenhuma folha. Nenhum talo verde. Lá um ou outro pé de xique-xique ou mandacaru isolado, já cortado, com os espinhos amontoados no tronco. Eram esses tons verdes as únicas manchas de cor viva no sertão.
Adiante, próximo duma cerca velha, ouviram um chocalho perdido no meio do mato seco. O velho Borges estacou, pôs a mão no ouvido, afinando-a. Quando o chocalho badalou de novo, o velho disse ao sobrinho:
É dela mesmo, padrinho. Ontem de tarde ela estava ali debaixo daquele imbuzeiro. E não dou mais dois dias pra ele esticar as canelas. Fiz tudo. Até milho cozido eu dei. A purga de cabacinho foi mesmo que nada. E sabe duma coisa, tio Borges? - continuou Joaquim, findando a história - também já deu o que tinha que dar. Oito crias, gado miudinho, e o leite é pingado.
O tio não disse nada, não lamentou aquela perda a mais. Rês morta, naquele tempo, era tão natural como o dia ou a noite. Essa, entretanto, não seria a últma, nem era uma das primeira. O gadinho do velho andava pela metade. Mas ele estava acostumado. As secas foram suas companheiras desde a meninice. Dono da fazenda em que morava, já homem feito, lidara com tantas, que até se perdiam na memória. Era natural, fazia parte da vida do sertão. Um dia cairia a chuva, e as secas ficariam para trás, como rastros antigos esquecidos no pó das estradas, O velho pouco se importava com o que não tinha mais jeito. Cuidava somente da vida, do restante prevenindo perdas maiores.
A vaca combuca ficava-se para trás, no seu canto, de onde não haveria mais de se levantar. e eles dois seguiram o seu caminho, de foice no ombro, para o corte do mandacaru. Outras reses esperavam lá a ração, graças à qual talvez pudessem ainda atravessar a seca desvastadora. Bons dias viriam. Tudo enverdeceria, haveria de prosperar e, graças aos poderes de Deus, os cuidados não seriam para a morte, mas para a vida.
Aqui e acolá encontravam rastos de fogo, marcas dos lugares onde já haviam assado mandacaru. Espalhados, às centenas, viam-se galhos ressequidos, roídos até o âmago pelo gado faminto. Frequentemente uma ossada se destacava no cinzento da terra. Não se via um pássaro, um animal no chão. Tudo sumido, arribado em outras terras onde houvesse ainda um pingo dagua, uma folha verde. Os urubus também escassos, perdidos no alto do céu. O gado que morria era o pior dos pastos, o couro seco e ligado à carne magra e endurecida. Não virava carniça, sob o sol escaldante, e resistia às bicoradas dos bichos nojentos. Pelos descampados, à beira do caminho, encontravam vez por outra reses paradas, de olhos tristes, a barriga agarrada ao espinhaço, esperando pacientemente onde surgisse uma fumaça. Era para lá que se encaminhavam, como animais ensinados. Gado manso arrasado, de instinto mais aguçado pela seca terrível Garrotes miúdos, de chifres enormes em cabeças mirradas, acompnhavam os vaqueiros como cahorros de casa. tudo manso, camarada. Nas derrubadas não se viam duas reses se escornando, lutando por um taco de mandacaru.Todas esperavam resignidamente a ração. E uma rês não avançava no bocado da outra. Formavam-se naturalmente os magote, uns aqui, outros acolá, roendo os galhos queimados. Os dois vaqueiros trabalharam até meio-dia sem descanso, molhados de suor. Quando as sombras ficaram a prumo sob os corpos, o velho falou:
- Meio-dia, Joaquim! Vamos.
Merendaram sob um mandacaru espalhado, alto de sombra incerta no chão quente. Deram uns cochilos, engolidos os bolões de farofa com carne seca. Depois retomaram o trabalho até ao pôr do sol e voltaram, mais mortos do que vivos.
Na meia-água, um foguinho de cabeças de candeeiro seco ardia no meio da sala da frente. O sobrinho de D. Marica, o cego. Umbelino, entraçava ainda a corda de sedenho de boi. Ouvindo as pisadas dos dois homens se aproximando, levantou a cabeça, como se visse. O velho entrou, suspirou e caiu na rede. Joaquim passou um rabo de olho por cima do cego e seguiu direto à camarinha. Antes da ceia lavaram o rosto, refrescando-se do calor do sol que ficara na pele tostada. Engolida novamente a mesma comida do almoço, o velho veio esquentar fogo. Deitado na rede, joaquim sentou-se defronte dele, num cepo. Mariana, a mulher de Joaquim, veio arrastando para a mesa, tomar um caldo. estava pálida e fraca. O aborto arrasara-a. E o primeiro filho, e ceguinho de cinco anos, veio agarrado-a |à saia da mãe. As perninhas se levantavm, incertas, como se evitasem tropeços. Entretanto passara direitinho sobre o batente. Parecia contar os passos, calcular a distância. Buchudo, magrinho, fungava constantemente, sugando de novo para as ventas o sujo que escorria, teimoso.
Joaquim, vendo-a mexeu-se no cepo. O cego , Umbelino, como um boi espantado, levantou o pescoço, escutando. Ninguém falava. E sem nenhum barulho na sala, ouviam-se perfeitamente o resfolegar do velho, entupido de arapé, e o arrrastar da colher no fundo do prato de metal. o velho Borges indagou:
- Estás melhor, Mariana?
- Estou quase boa, meu tio- respondeu a enfêrma, de voz sumida.
O velho em seguiida chamou o menino e perguntou:
- E tu, que fizeste, ceguinho?
- Fiz uma cordinha das sobras de sedenho que primo Umbelino me deu.
Joaquim estremeceu. E a cabeça trabalhou: "Primo! Primo, uma desgraça!"Teve vontade de assentar o couro no filhode botar o cego grande para fora. Não queira os dois juntos, já tinha dito à mulher.
O velho Borges, entretanto, interviera no dia em que ele dera a ordem, dizendo:
- Deixa o corninho, Quinca! Os infelizes se entendem melhor um com outro do que com a gente
Se não fosse o medo, o grande respeito pelo tio, teria proibido que se juntassem mesmo se fosse preciso meter o pau. Joaquim era um bicho, um bruto. De cabeça dura nos miolos não havia outra coisa senão aquela ideia: os cegos. Eaí, sentado no cepo, o único pensamento que lhe vinha martelar o juízo era aquele. Era o ato perfeito dum animal, engolindo de dia e ruminando de noite, quase por instinto, o alimento torturante da cabeça teimosa. Por que diabo teria nascido cego o seu filho? Ele, o pai, não tinha os dois olhos bons, vendo tudo? Teria pegado com o cego grande. Mas Umbelino também era cego de nascença, dizia a tia. Talvez má sorte, gente pobre era sempre sujeita a tudo. Talvez outra coisa. Outra coisa! E Joaquim ficou ruminando a outra coisa possível causa também da cegueira do filho.
O velho, aos poucos, sentindo o calorzinho do fogo foi caindo num sono mole, um sono bom na rede suja. "Camorim", de rabo cotò, imitava o dono, enroscado na beira da fogueirinha. Mariana já estava espichada na cama, com o ceguinho de lado. D. Marica dormia na camarinha. Zumba no seu jirau, na cozinha. E Umbelino, o último que se deitava e o primeira que sentia o nascer do sol, embora não lhe visse a luz, continuava a entrançar os cabelos de rabo de boi, De vez em quando parecia espantar-se e levantava a cabeça. Os olhos grande e límpidos, sem direçao certa, sem fixar-se em coisa nenhuma, rodavam nas órbitas inutilmente. percorrendo o ambiente que não viam, passaram em cima de Joaquim, como passavam em cima de todas as coisas.
Joaquim danava-se com esse costume de cego. Por que porque diabo mexer os olhos se eles não viam nada? Será que o cego enxergava uma restiazinha qualquer? Não, não via nada. Cego devia ter pestanas e a capela do olho cerradas, e a vista morta sepultada lá dentro. Quem tinha braço ou perna podre, cortava; quem tinha caco de dente, arrancava. Bem, assim devia ser olho cego; pregado com as pestana. para que se abrirem? Viam? Sem serventia, só prestavam mesmo para agoniar a quem olhava, com aquela expressão indecisa, parada, comum aos olhos cegos. Só prestavam para fazer agonia e raiva. Raiva de não saber se a cegueira do menino era filha da cegueira do homem. Matutando a ultima coisa, Joaquim, deu um murro com toda a força na perna. Umbelino estremeceu deixando cair a corda trabalhada, dirigindo os olhos para o lado do barulho. Joaquim interrogou, em voz alta e com raiva:
- Para que diabo tu botas pra cá estes teus olhos mortos, Umbelino, se essas desgraças não vêem nada?
O cego não deu resposta, fez uma cara de riso desconfiada, e ficou tateando, o chão com os dedos magros e trêmulos à procura da trança de cabelos.
O velho Borges remexeu-se na rede, acordado pelo vozeirão do sobrinho. Espreguiçou-se, abriu a boca desdentada, percorreu o ambiente com os olhos miudinhos. E, meio incerto, de vista enevoada da soneca, distinguiu os olhos acesos de Joaquim, onde o reflexo do fogo punha manchas vermelhas. Aí, o velho, como se se lembrasse de uma coisa importante, levantou-se ligeiro da rede e inquiriu.
- E tu cochilaste, não , Joaquim?
- Não senhor!
Ouvindo a voz do velho, o cego suspirou. Encostou na parede o material das cordas, encolheu as pernas e ficou esperando. O velho Borges ordenou:
- Passa pra tua camarinha, Joaquim! Dorme e acorda num sono só, porque amanhã madrugamos. O corte é longe!
O sobrinho atendeu. pediu a benção e foi para a camarinha. o velho então pegou numa porta velha encostada na parede, atrás do pau a cavaleiro onde botavam as selas, e colocou-a no chão para o cego dormir. Tirou de um torno um cobertor de saco de algodãozinho, todo furado, e o sacudiu na enxêrga. Abriu a porta da frente, tangeu com pena o cachorro friorento, e deitou-se novamente na rede. O fogo estava reduzido a borralho, com uma ou outra, brasa mortiça destacando-se na escuridão da sala.
No dia seguinte, quando o sol tinia ao meio-dia em ponto, os dois vaqueiros merendavam debaixo de outro pé de mandacaru. O gado roía o cacto tostado, morto de sede. Os urubus voavam em grandes alturas, sob um céu igual, de horizonte a horizonte, no céu azul claro e luminoso. O velho perscrutou o infinito e exclamou:
- Deus ainda tardando...
Joaquim imitou o movimento do velho e deu esperanças:
_ Mas chove, padrinho. Um dia chove.
- Um dia sucede tudo. Joaquim. Mas o diabo é que esse dia não chega.
Quando chegaram à casa, de volta, a cena era a mesma. Apenas Mariana não pode vir tomar o caldo, de tão fraca que tava. Piorava a cada dia, mais amarela, mais sumida de carnes.
Quinze dia depois, em pleno corte de mandacaru, Zumba apareceu, trazendo a notícia:- Mariana é com Deus, tio Borges.
O velho respondeu calmaente, comos e ouvisse uma notícia de morte de rês:
- Nesta seca, se acaba tudo! Não é de admirar.
Joaquim não demosntrou pena, não se lamentou.
Levaram a defunta em uma rede para o cemitério de São Caetano.
De noite, na hora da ceia, o ceguinho reclamou:
- Onde anda mãe? Eu quero mãe.
- Tua mãe morreu - respondeu o pai secamente.
O ceguinho não sabia o que era morrer, nunca tinha visto a morte. As explicações dos que tinham visto não chegavam à compreensão do menino. E ele insistia:
- Eu quera ela, mãe Mariana.
Joquim impacientou-se e esbravejou:
- Ora vocês já viram uma quizila dessas! Já não disse que tua mãe morreu, guenzo!
O velho Borges abrandou a fúria do sobrinho:
Tu és bruto, Joaquim! Como é que tu querias que o menino entendesse de morte, se ele nunca viu nada?
Na cabeça de Joaquim não estrava nada. A sua ideia fixa, a única alojada lá dentro ocupava todo o espaço. E danou-se com o filho porque não via. Ficou algum tempo remexendo as dúvidas e respondeu ao tio:
- Bezerro também não sabe o que é morte, berra um bocado e ao cabo se acostuma padrinho!
- Pois então deixa esse bezerrinho berrar também. Quando ele se acostumar com a separação da mãe, acaba se calando. Quem é cego é como bicho, Joaquim.
Joaquim emudeceu e ficou remoendo. Depois de muito custo, com um esforço mental tremendo, o sangue subiu à cara, envergonhado dum pensamento: o tio chamara ao menino de bezerro. Bezerro, filho de vaca: vaca, fêmea do touro. Do touro como o boi angola, de macumbagem enorme, mas de chifres como dois galhos. Touro!
E o bezerro, seu filho, berrando inconsolavelmente pela mãe, esgotando a paciência do pai:
- Eu queria mãe Mariana. Eu queria ela...
D. Marica chamou o menino, botu-o no colo, acalentando-o. Mas ele como o pai, tinha um pensmernto só: queria a mãe.
- Eu só queria mãe Mariana. A minha mãe.
Como não lhe dessem a mãe, começou a choramingar.
- Tua mãe, já morreu, seisessentos diabos! - gritou Joaquim, branco de raiva.
O ceguinho encolheu-se no colo de D. Marica, estacando o choro com o susto. O cego grande também encostou-se na parede, suspendendo a respiração. Os olhos se alargaram num movimento instintivo, procurando ajudar os outros sentidos no esforço de adivinhar alguma coisa. O velho temperou a goela, dando sinal de que estava vivo. O sobrinho compreendeu. Aquilo era uma advertência. O velho era um homem que nunca se deixara desrespeitar pelos parentes mais moços. Na presença dele ninguém alteava a voz.
Neco, o menino cego, protegendo-se no corpo de D. Marica contra a brutalidade do pai, sentiu um cheiro diferente daquele com o qual as suas ventas, aguçadas pela ausência da visão da vista, se habituaram tanto durante cinco anos de agarramento. Afastou o rostinho desconsolado do corpo da tia e soltou outro gemido, vagando a vista pela sala:
- Minha mãe não vem. Eu só queria minha mãe Mariana.
O velho, penalizado, tomou o menino e botou-o na rede. Enganou-o com histórias, com coisas esquisitas, engraçadas, maravilhsoas. Mas a tenção da criança não se prendia a coisas que ele nunca conhecera. Por que falar em mato verde, em águas claras, em céu azul, em boi grande, em cavalo gordo, na beleza de todas as coisas oferecidas pela natureza aos que tem olhos para não ver? A noção do bonito entra principalmente pela vista, apura-se na cabeça. Os olhos do menino não colheram imprensão nenhuma da vida. E o seu pensamento não atendia ao desconhecido, ao ignorado. Antes o velho tivesse falado das formas que as suas mãos conheciam. Ou dos cheiros tão familiares as suas ventas. Embrutecidos, puxando ao pai, as coisas invisíveis para ele, não lhe despertavam o desejo instintivo do conhecimento. Nunca perguntava a forma, o feitio das coisas, nunca pedia a definição dos objetos, dos animais, de nada desconhecido e de que os outros falavam na sua presença. Não se intreressava por coisa alguma, contentado-se em viver agarrado às saias da mãe. Os olhos não se esforçavam, a vontade adormecia na cabecinha esquecida. As suas ventas, entretanto, teimavam à procura do cheiro conhecido. Dilatava-se, e os olhos convergentes baixavam-se sobre elas, com se procurasssem ajudá-las no esforço olfativo. Latejavam, suspendiam o fôlego, apurando melhor o que sentiam. Virou o rosto para o lado da camarinha e ficou escutando, cheirando o ar que vinha lá de dentro. Fez esforço para sair da rede, e o tio deixou-o escorregar devagarinho entre os braços. O menino pô-se em pé tomou direção e saiu de braços estendidos, tateando as paredes. Atravessou sem topar o batente da porta do meio e empurrou a da camarinha. Remexeu a cama sem lençois, cheirou o couro do lastro e reclamou em voz de choro:
- Mãe não está aqui. Eu queria é mãe Mariana.
D. Marica foi atrás dele e trouxe-o, consolando-o. Mas o menino não entendia nada. Queria a sua mãe. Não compreendia a morte, não entendia a ausência. D. Marica achou graça na astúcia do menino e comentou:
- Filho de gato é gatinho. Doído pela cama, como a finada. Pobrezinho!
Joaquim levantou a cabeça e olhou o cego Umbelino. Os seus ouvidos guardaram a experessão da mulher do tio. E na cabeça a expressão se reproduziu, como um eco de gota em gota: filho de gato é gatinho; Filho de cego é ceguinho. De súbito, sem se dominar, empurrado por uma força estranha. Joaquim pulou em cima de Umbelino, agarrando-o pelo pescoço. O cego estrebuchou, com um berro medonho. o menino assobrou-se e abriu no choro. O velho Borges levantou-se de um pulo e gritou para o afilhado, dando-lhe murros nas costas;
- Atrevido dos diabos, larga esse desgraçado! Tu não me respeita não, condenado? - O grito do velho amendrotou Joaquim. E ele recuou, trêmulo de raiva. era a segunda vez que tentava esganar o pobre cego. O menino berrava, reclamando a sua mãe Mariana. D. Marica levou-o para a sua camarinha. Umbelino tremia enroscado no canto da sala como um cão ameaçado de apanhar. As mãos alisavam nervosamente os olhos cegos. puxava a barbicha, enfiava os dedos na boca, arrregalando os olhos, esfregando os pés. O velho Borges insistia:
- Eu te mato, Joaquim! criei-te como a um filho e tu na minha vista não me desfeiteias não, que Deus não quer! Não tens vergonha! Que mal te fez o pobre cego? Ação como a tua não tem nome, de tão desgraçada que é! Um homem que dá num cego é capaz até de espancar Nosso Senhor! Deus me perdoe, mas eu acabo te excomungando, se não te matar!
Joaquim baixou a cabeça, arrependido. Poderia ainda estrangular o cego na ausência do velho. Ele havia de pagar. A porca já estava morta. Ele ia depois. E o filho também. O ceguinho, filho do cego. E, deitado, ficou pensando por muito tempo nessas coisas.
O velho, depois que o sobrinho saíra, fechou a porta do meio e passou a taramela. Fêz a cama de Umbelino e deitou-se na rede. O cego deitou-se também e ficou quieto.
De madruigadam, quando, quando o velho se levantou, encontrou a porta da frente aberta. Teve um pressentimeno e acertou: Umbelino fugira, com medo de Joaquim. D. Marica não disse nada. Joaquim ficou pior, pensando: Quem foge, teme; e quem teme, deve.
Um dia de domingo, dia de descanso, os dois vaqueiros ficaram em casa. Passavam o dia cuidando de besteiras: consertando as alpercatas, amolando as facas, botando cunhas nos instrumentoe. De tarde, o sol já pendendo, o velho foi dar um girozinho por trás da casa, desenferrujando as pernas da modôrra da rede. Tinha intenção de ir até ao pé de imbuzeiro grande, espichar-se na sombra. Mas voltou do meio do caminho.
A porta da cozinha estava aberta, as galinhas entrando. Entrou pela porta escancarada e ficou escutando, estacado na saleta. D. Marica não estava. Tinha ido buscar um pote dagua no caldeirão quase seco. Da sala da frente chegava aos ouvidos do velho um barulho de ferros arrastados. Quando o velho chegou à porta do meio, viu o sobrinho acocorado, esforçando-se por conservar as foices , os machados e os facçoes de gume para cima.
Ajeitava os instrumentos, calçando-os pacientemente com os cacos de telha. E em volta, cercando-os, um batente improvisado com pedras e tijolos partidos. O velho Borges viu, também, num canto da sala, em pé, o ceguinho buchudo, com os dedos atolados na boca e os olhos incertos pelo meio da casa. Joaquim, ajeitado a ferramenta, nem viu o tio, distraído como um menino brincando de construções. O velho Borges compreendeu a intenção malvada do sobrinho e bradou:
- Levanta-te, miserável!Como é que tu com as tuas próprias mãos arma essa arataca para o teu filho morrer, Joaquim!
Joaquim levantou-se assustado, pálido. apanhado em flagrate, não acho uma palavra para responder ao velho. O tio então apanhou o material de corte, encostou-o na parede e indagou, vermelho de indignação:
- Que diabo estás tu pensando nesta tua cabeça de doido, Joaquim? Qurere matar esse infeliz porque ele é uma carga para os teus ombros? Se é, deixa que eu crio o cego!
Joaquim cobrou ânimo e respondeu:
- Eu maldo cá que essa marmota não é meu filho, padrinho!
- E por que diabo ele não é? Quem foi que tu viste pra tanta desconfiança, ruindade?
- É que eu não sou cego ele é!
O velho Borges sentou-se na rede e ficou calado. D. Marica entrou, acompanhada de Zumba. O velho ordenou:
-Sacode fora esses tijolos e essas pedras, Zumba!
D. Marica perguntou se iam fazer um forno dentro da casa com tanto tijolos, e o marido respodeu:
- Nada. Fui eu quem trouxe as pedras. Estava calculando uma coisa.
Mandou que ela levasse o ceguinho lá para dentro, despediu Zumba e tornou a falar ao sobrinho:
- O Divino é grande! O Divino é grande! Tu te lembras de teu pai, Joaquim?
Joaquim respondeu, meio acuado:
- Não me lembro não, padrinho. Mãe me dizia que quando ele morreu eu tinha coisa de um ano.
- E se tu vives maldando que esse menino não é filho teu - prosseguiu - prosssegiuio velho- só porque é cego e tu não és, como é que tu não nascente cotó, sendo o teu pai aleijado de nascença?
Joaquim recuou, espantado. Não esperava aquela revelação. Era um caso singular. Mas a ideia fixa, tomando dianteira a qualquer reflexão, voltou, renitente: filho de gato é gatinho de cego é ceguinho. Nunca lhe tinham dito aquilo. A mãe nunca lhe tinham dito aquilo. A mãe nunca lhe falara do aleijão do pai. Era com certeza astúcia do velho, para livrar o intruso. Aquilo não era prova. A morta não falava. Mas Umbelino onde estivesse tinha que falar.
Joaquim tomou uma decisão. Foi à camarinha, remexeu uma porção de coisa, botou um punhal na cintura e enrolou a rede a tiracolo. Na sala, defronte do tio, anunciou firmemente.
- Vou embora, padrinho, Não fico mais aqui.
- Vai-te! Deixa teu filho, em paz. Nem esta seca danada, que abrasa e arrasa tudo tem poder sobre tua natureza de cobra!
E Joaquim danou-se no mundo, as alpercatas estalando nos calcanhares, à procura de cego Umbelino.
(Maria Perigosa)
A Buchinha
A buchinha (Luffa operculata) é uma planta cucurbitácea originária da América do Sul e nativa do Brasil. Sua aparência é semelhante a da bucha de banho, mas apresenta um tamanho menor (cerca de 8 cm). Os frutos da buchinha apresentam esteróides semelhantes aos hormônios femininos e seu uso pode causar aborto. Tem causado vários casos graves de intoxicação, inclusive alguns levando ao coma ou até à morte foram registrados em virtude do uso indiscriminado do chá da planta como abortivo. Os sintomas após a ingestão do chá são caracterizados por intensas dores abdominais e hemorragias.
Na medicina popular, essa planta também tem sido utilizada no tratamento da sinusite através da aspiração do infuso do fruto. Por ser altamente tóxica, seu uso tem acarretado sérias hemorragiasnasais em vários pacientes por falta de conhecimento do manuseio.
Xique-xique arvore
Trecho da Web em destaque
O Xique-xique é mais uma planta alimentícia não convencional, típica da região nordeste. Pode ser encontrado em grande quantidade em áreas de caatinga e serve de alimento para os animais nas épocas de seca1,2. Além da sua importância ambiental, o xique-xique tem sido estudado por suas propriedades nutricionais.
Descrição
Descrição
Spondias tuberosa L., popularmente conhecido como umbuzeiro, imbuzeiro ou jique é uma árvore de pequeno porte, pertencente à família das anacardiáceas, de copa larga, originária dos chapadões semiáridos do Nordeste brasileiro, que se destaca por fornecer sombra e aconchego.
Wikipédia
Descrição
Descrição
O mandacaru, também conhecido como cardeiro e jamacaru, Planta da família das Cactaceae, gênero cactus. Arbustiva, xerófita, nativa do Brasil, disseminada no Semiárido do Nordeste. Mandacaru vem do tupi mãdaka'ru ou iamanaka'ru, que significa «espinhos agrupados danosos».
Wikipédia9 de ago. de 2018
Bissacos - mochilas
substantivo masculinoBRASILEIRISMO•BRASIL
1.
pedaço de pano velho, roto e sujo; farrapo.
2.
roupa velha e/ou em mau estado.
A História continua
-jirau
substantivo masculinoBRASILEIRISMO•BRASIL
1.
armação de madeira semelhante a estrado ou palanque, que pode ser us. como cama, depósito de utensílios domésticos, secador de frutas ou, quando posta em cima de um fogão, como fumeiro de carne, toucinho, peixe etc.
2.
armação de madeira sobre a qual se constrói uma casa de modo a evitar a água e a umidade.
1.
BRASILEIRISMO•BRASIL
quarto de dormir; câmara, quarto.
2.
pequena prateleira num canto ou nicho da sala, entre paredes.