quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Monteiro Lobato - Colcha de Retalhos Obras- Primas do Conto Brasileiro

 










Upa!

Cavalgo e parto.

Por estes dias de março a natureza acorda tarde. Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblinas e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho luminosos do sol.

    A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.

    Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada descorar passos adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante dalguns angiqueiros marginais.

   Agora, uma porteira.

  Ali, a encruzilhada do Labrego.

   Tomo à destra, em direitura ao sítio do José Alvorada.

   Este sujeito mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata de terra que pelas bocas do caeté, legítimo, da unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.

   Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.

  Três alqueires, só do bom. Talvez quatro. A noventa por um - nove vezes quatro trinta e seis: trezentos e seis: trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontados as bandeiras(qualquer trecho do milharal) que o porco estraga e o que comem a paca e o rato.

   Será a filha do Alvorada?

  - Bom-dia, menina. o pai está em casa?

    É a filha única. Pelo jeito não vai além de quatorze anos. Que frescura! Lembra os pés d'avenca viçados nas grotas noruegas(grota fria, onde nunca bate o sol). Mas arredia e itê ( sabor agreste, adstringente, ácido) como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! D'olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água a este córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás naquela moita de taquaris, ao ver-me.

   - O pai está lá? - insisti.

   Respondeu um 'está" enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

    Como a vida do mato asselvaja estas veadinhas?

 Nota-se que os Alvoradas não são caipiras. O velho, quando comprou a situação dos Periquitos, vinha da cidade; lembro-me até que entrava em sua casa um jornal.

    Mas a vida  lhes correu dura na luta contra terras ensapezadas e secas, que encurtaram as safras por mais que dê de si o homem. Foram-se rareando as idas à cidade e, ao cabo, de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina , rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo - uma tamina( ninharia, coisa de nada), três mil pés - o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

  Se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essa enraizou de pião para o resto da vida. Costuma dizer: mulher da roça via à vila três vêzes - uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.

  Com tias casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo D'Água ( tinha esse apelido a Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo à gente. Fôra uma vez à vila, com vinte dias, a batizar. E já lá ia nos quartoze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.

   Ler? Escrever? Patacoadas, falta de serviço, dizia a mãe. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora se des'que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

  Deixei a menina ás voltas coma rodilha e embrenhei-me por um atalho condicente à morada.

  Que ruinaria!...

   Da casa antiga aluíra uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.

   O velho pomar, roído de formigas, sucumbira de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro na laranjeiras macilentas, furadas de broca, sopesando o polvo retrancado da erva-de-passarinho, abrolhavam ainda rebentos cheios de compridos espinhos. Fora disso, mamoeiros a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só repeitava o terreirinho batido, fronteiriço à casa. Tapera, quase,e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.

   Bati palmas.

  - Ó de casa!

 Apareceu a mulher.

   - Está seo Zé?

    - Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na massaranduva no pasto. Apeie e entre.

   Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.

   Acabadinha, a Sinh"Ana. Toda rugas na cara - e uma cor...Estranhei isso.

    Doença, gemeu. Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda...Casa velha, é o que é.

   - Metade é cisma - disse-lhe, para consolo.

   - Eu é que sei! - retrucou-me suspirando.

  Entrementes, surgiu na cozinha uma velhota bem apessoada, no cerne, rija e tesa que me saudou e:

   - Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta pra nada....Olhe: eu com setenta no lombo não me troco por ela...Criei a minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso sim!....

   - Mecê é gobola porque nunca padeceu doença - nem de dor de dente....Mas eu ? Pobre de mim! Só admiro de inda estar fora da cova....Aí vem o Zé.

   Chega o Alvorada. Ao ver-me, abriu a cara.

   - Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim....È só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num ôco muito alto  e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não!  É mel de pau.

  Depois num mochô a cuia dos favos e se foi à janela lavar as mãos sob a cuia d"água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo:

    - Hoje veio no picaço...Bom bicho! Eu sempre digo: animais, aqui no redor, são este picaço e a ruana do Izè de Lima. O mais é eguada de moenda.

   Neste momento entrou a menina de pote à cabeça.

   Ao vê-la o pai apontou para a cuia de mel.

   - Está ai, filha, o doce a aposta. perdi, paguei.

  Que aposta? Ah!ah! Brincadeira. À gente cá na roça, quando não tem serviço, com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse, à toa, são mais de dez! Pingo negou: não chega lá! Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo, não é o que parece não!

   A loquacidade do Alvorada não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dado corda, ressurgia nela o tagarela da cidade.

  Expus-lhe o meu negócio. O homem enrugou a testa e refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:

   - Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Des"que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo dinheiro. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos não livrei o jornal.

    Desde então fiz cruz em serviços alheios. Se inda teimo neste sapezeiro é por via da menina; se não,  largava tudo e ia viver no mato, como bicho. È pingo que inda me dá um pouco de coragem, concluiu com ternura.

   A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixa, pusera-se a coser, de óculos no nariz.

  Aproximei-me admirativo.

  - Sim, senhora! Com setenta anos!

  Sorriu-se, lisonjeada.

   - É pra ver. E isto aqui tem coisa! É uma colcha de retalhos que venho cosendo há quatorze anos, des"que |Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela, vou guardando nesta caixa cada retalho que sobeja e um dia eu os coso. Veja que galantaria de serviço!...

   Estendeu-se ante os olhos um pano variegado, de quadradinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.

   - Esta colcha é o meu presente de noivado. O último,o retalho há de ser o vestido de casamento, não é, Pingo?

   Pingo D"Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta. Mais dois dedos de prosa, ruim cafezinho ralo - escolha com rapadura - e,

   -Está bem - rematei, levantando-me do môcho de três pernas.  _ Como não pode ser, paciência. Apesar disso, acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os raçados a oitenta mil-réís o alqueire. Dá para ganhar, não?

   - Que dá, eu sei que dá - mas também sei para quem, dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitas peguei a sessenta, e não me arrependi. Mas hoje....

   - Nesse caso....

   Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Dona Ana falecei. Era fatal a dor respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memoria a imagem daqueles humildes urupês, quando chegou aos meu ouvidos um zunzum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo D"Água aos Periquitos.

   - Como isso? Uma menina tão acanhada!...

   - É para ver! Desconfiem das sonsas....Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade- não para casar, nem para enterrar. Foi ser "moça" a pombinha....

    O incidente ficou a azoinar-se o bestunto. À noite perdi o sono, revivendo cenas da última visita ao sítio, e disse brotou a ideia de lá tornar. para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne. 

Fui

  Setembro intumescia gomos em cada arbusto.. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até as cabeças dos morros  distantes.

     Poe amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesma trilha.

   No córrego vi, com os olhos da imaginação,o vulto da menina envergonhada, com o pote descansado na lage e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto erma já galhaça ressêca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgrebe. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalga-se de moitas  de guanxuma, cordão-de-frade e juás.

    - Ó de casa.

   Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma senhora, acurvada e trêmula.

    - Bom dia, Nhá Joaquina. Está seo Zé?

     Não me reconheceu a velhinha. O Zé fora à vila vender a sitioca para mudar de terra.

   Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.

   Entrei para a saleta vazia.

   - Tem coragem de estar aqui sozinha?

   - Eu? Sozinha estou em toda a parte...Morrera-me tudo, a filha, a neta...Senta-se - disse, apontando par ao mocho de dois anos atrás.

   Sentei-me com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:

    - O que é a vida, Nhá Joaquina! Parece qeu foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo. Hoje...

   A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

   - Viver setenta e dois anos para acabar assim!.. Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro...

   Confrangia-se-me o coração naquele ermo onde tudo era passado - a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas, salvo trêmulo espectro encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.

   - Que mais agora? - murmurou, pausadamente, em vez de quem já não é deste mundo. - Até a " desgraça". eu não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava da vida. morreu-me a filha, mas restava a neta que é duas vezes filha e era o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha...Agora, que mais? Só peço a Deus que me tire, logo e logo...

   Relancei um olhar pela sala vazia. A caixeta de  costura inda estava sobre a arca, no lugar de sempre. Meus olhos pousaram nela, marasmados.

   A velha advinhou-me o pensamento e, erguendo-se, tomou a caixa nas mãos trêmulas.

   Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremura na voz, disse:

    - Dezesseis anos - e não pude acabar a colcha... Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem a sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d'Água. Aqui leio a vidinha dela des'que nasceu.

   Este, olhe foi da primeira camiseta que vestiu...Tão galantinha! Estou a vê-la no meu  braço, tentando pegar os óculos, com a mãozinha gorda...

   Este azul, de listras, lembra um vestido que lhe deu a madrinha aos três anos. Ela já andava pela casa inteira, armando reinações m, perseguindo o Romão, que um dia, poe sinal lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me "-óó Aquina".

   Este vermelho, de rosinhas, foi quando completou os cinco anos. estava com ele por ocasíão do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?

   Este cá de xadrezinho foi pelos sete anos, e eu mesmo o fiz, e o fiz de saía comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha!

   Pingo D'Água já saiba temperar um virado, quando usou este aqui de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.

    Este roxo, usou-o quando tinha dez anos e caiu de sarampo, muito maozinha. Os dia e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias" Como gostava de Gata Borralheira!...

   A velha enxugou na colcha uma lágrima, e calou-se.

    - E este? - perguntei, apontando um retalho amarelo, para avivá-la.

     Pausou um bocado a triste avó, em contemplação. Depois:

   - Este é novo. Já tinha quinze anos quando o vestiu pela primeira vez, num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece-me que a desgraça começa aqui. Ficou um vestido muito assetadinho no corpo, e galante, mas, pelas minhas contas, foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava...

   - Este - disse-lhe eu, fingindo recordar-me - é oq eu vestia quando cá estive.

   - É engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

   - È verdade, é verdade! - menti. - Agora me lembro, era isso mesmo. E estye derradeiro?

   Após uma pausa dorida, a pobre criatura sacudiu a cabeça e balbuciou:

    - Este é o da desgraça. Foi o último que lhe fiz. Com ele fugiu...e me matou.

   Calou-se a lacrimelar, trêmula.

   Calei-me também, opresso dum infinito apertão d'alma.

    Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida, machucado pela mocidade louca!...

   E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos pregados na colcha.

  Ela por fim quebrou o silêncio.

  - Era o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. já pedi que me enterrassem com ela...

   E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.

   Um ês depois morria. Soube que lhe não cumpriram a última vontade.

  Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça~?

  Pieguices....

FIM

                        (CONTOS PESADOS)

  

  








substantivo masculino
  1. 1.
    COSTURAALFAIATARIA
    fita que se prega dobrada à margem de um tecido, para ornar e/ou para evitar que a trama se desfaça; vivo.
  2. 2.
    POR EXTENSÃO
    qualquer espécie de ornamento em forma de filete, ger. de cor diferente, us. para margear uma figura, um desenho etc.


O que é Angiqueiro:
É um tipo de árvore que se chama angico e exitem duas espécies, Angico-branco (Anadenanthera colubrina); angico-vermelho (Anadenanthera macrocarpa).




labrego
/ê/
adjetivo substantivo masculino
  1. 1.
    diz-se de ou homem rude do campo; camponês, vilão.
  2. 2.
    POR EXTENSÃO PEJORATIVO
    que ou aquele que é ignorante.



Nata de terra que pelas bocas do caeté, unha-de-vaca,caquera (Padrões de terra boa)

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

MARQUES REBÊLO - CIRCO DE COELHINHOS

 Isabel, Beatriz dos olhos cor de mel, e Loló e Silvino, na farândola infantil dos meu amores, dançaram com Dodô e dois coelhos.

   Sim, dois coelhos. Chegaram numa cesta de tampa em certo domingo morno de novembro, quando na casa de tia Bizuca, onde eu morava e que era o Andaraí, apontavam os ramos do pomar os primeiros sapotis inchados.

   São de raça - disse seu Manuel, chacareiro, valorizando o presente que me trazia - Angorás legítimos - mostrava, suspendendo-os pelas orelhas, que ao meu protesto por tamanha barbaridade foi explicado ser o processo usual e correto de se pegar coelhos.

   Angorás, ou não, jamais houve coelhos tão queridos, lindos que eu os achava, brancos, peludos, olhos vermelhos, orelhas róseas - dois amores.

    Minha vida até aí era um suceder de brinquedos e mais brinquedos, pique, cabra-cega, traquinadas na chácara que subia até o morro, barulhentas correrias nas salas vazia do porão habitável, nem eu podia acreditar que outra fosse a finalidade das crianças. Foram eles, aqueles alvíssimos pompons, que me fizeram ver, além do mundo despreocupado dos folguedos, um outro mundo maior, que o colégio desvendava aos outros meninos - o das obrigações. È que a escola para mim fora suave. Longas as férias, poucas as aulas no pavilhão aberto dos menores, que assistia quando bem queria. Nas mãos inteligentes de D. Judite, maternal, paciente, os métodos modernos dulcificavam asperezas. E havia, sobretudo, a ordem expressa dede titia, que "não puxassem" por mim. Foram eles, repita-se, que me trouxeram a noção das primeiras obrigações, mas, longe de me rebelar contra elas, com que amor e alegria a elas me entreguei! " Está na hora de botar água para os coelhos" - e cataclismo nenhum teria a força de me impedir. Penteava-os, catava-os, levava-os a passear no jardim, roseiras, só roseiras, que no reino das flores eram a paixão de titia; recusava ao Taninho passeios dominicais no automóvel de seu pai, uma Bez, que ficava com eles, móveis fontes dos meus meticulosos cuidados. Um escravo, um escravo, confesso, fiquei das suas necessidades, pequeninos tiranos inocentes. 

Não só tirano, também de sábios aventurei chamá-los( advinha-se lá sob tanta brancura quantos segredos traziam) tanto assim que não deixaram parar no mundo as obrigações a série  de revelações que a mim, naturalmente, se propuseram, e trouxeram-me o amor.

   Amei-o com a ternura dum namorado. Enfartava-os de carícias. Aos meus sôfregos abraços desabava a chuva de protestos de titia: "Você, um dia, acaba  matando estes bichos de tanto os espremer". Cobria-os de beijos, deixava-os nos quartos solitários da casa, ignorante das horas  em intermináveis conversas com eles, respondendo-lhes coisas como se mas perguntassem. Perdi a realidade, deixei de distingui-los, fundia-os num  único coelho, um coelho maior que todos os coelhos jamais vistos, quase do meu tamanho, vivendo como gente, falando e rindo como gente, vestindo-se à marinheira como eu.

   Veio com o amor e séquito das suas dores. Que torturadas horas da minha meninice vocês, adorados bicharocos, foram a causa! Amava-os demais para não sofrer com o meu amor. O ciúme fez a sua  estreia  no meu coração e, feroz me consumia. Também não era para menos: tinha um rival, e de que força, anjos do céu - um rival terrível, Silvino, molequinho de dois anos mais velho do que eu, que tia Bizuca tomara para criar, com três dias apenas, por morte da mãe, preta que, fielmente lhe servindo, gastara sem usura a mocidade.

 

   Se na casa eu tinha o prestígio do sangue, ele mantinha o do tempo, de que se servia com sucesso, principalmente entre a criadagem. " Isso se deu antes do senhor ter vindo pra cá`", diziam-me de quando falavam de acontecimentos passados. " O Silvino é que sabe tudo direitinho".Realmente sabia e, olhando-me de lado, um sorriso zombeteiro  que mal se percebia, contava tintim por tintim, detalhado, supérfluo, pois não ignorava que assim fazendo me humilhava. Era o antigo, era, não se podia nega aproveitava-se disso. Defendia-se do intruso, afinal, o intruso que era eu, finório e humaníssimo Silvino.

    Terrível rival,astuto como passam a sê-lo os mais, rival da oportunidades esquivas como me lembro dele,agora, os olhos bisbilhoteiros.

      Doeu-lhe o presente do chacareiro. Por que não ganhara também! Que fizera eu para merecê-lo? Ele, sim, teria direito. Ajudava o Manuel na chácara, carregando estrume no carrinho de mão, varrendo a estufa das begônias, levando-lhe a comida, regando-lhe as plantas,auxiliando-o na podação sistemática dos ficus Benjamim, tapume verde e compacto que defendia o terreno dos olhos devassadores da vizinhança. Era justo. E fora eu quem recebera o presente, eu , grande patife o Manuel, miserável chaleira, " quando tinha raiva de português não era à toa". Só porque eu era o sobrinho, só. Ah! não ganhara? que importa?! saberia disputar a mim o afeto dos bichos. Saberia e soube. Se, por exemplo, eu lhes dava alface, ele a substituía logo pela que corria a buscar, pois que somente ele conhecia, na horta que não lhe guarda segredos, o canteiro que vicejavam as folhas mais frescas, os grelos mais tenros.

   Na luta aberta, tomava o meu partido: era meus, não eram? Pois então, tome, bacurau beiçola, e trazia-os ao colo, dia e noite, não consentindo que ele lhes tocasse com um dedo. " Visse com os olhos!" Afagava-os na sua frente para lhe fazer pirraça: " Meus anjinhos". Que ele sofria, sofria, mas não se dava por achado e sorria-me: " Dia virá", pensava. A paciência foi premiada e o dia veio, negro dia em que tive de ir para o colégio, um colégio diferente, sério, rigoroso, com horários  a que não podia fugir, pois como dizia tia Bizuca, já estava um marmanjão, era preciso entrar feio e forte no estudo para ser gente na vida.

   Como padeci, Deus o sabe. Intermináveis aulas de seu Silva, que ensinava tudo, menos ginástica, explicando sempre, aborrecidamente, numa lição o que iria tomar na outra. Gramática, geografia, que me importava saber verbos e substantivos, se o mundo era redondo ou quadrado, que me importava, se o meu mundo era os meus coelhos! Seu Silva falava alto, eu, porém, não o ouvia; meu pensamento mergulhava-se na dúvida cruel:  que estará fazendo o Silvino com os meus coelhos? Devorava com os olhos impacientes o implacável relógio do corredor, infinito corredor sonoro, com dez janelas para o recreio, pista de astúcia onde os bedéis se exercitavam, surgindo inesperadamente na porta das classes, surpreendendo os desprevenidos alunos faltosos. Que estará fazendo? E os ponteiros não andavam. Perdiam-me n labirinto das conjeturas: estará acarinhando-os, coçando-os, levando-os para pastar no quintal!/....Das problemáticas suposições, seu Silva me despertava:

   - "De que é que estou tratando seu Francisco?"

   Não sabia. Ganhava castigos.

    Em casa, mal chegando, sacola para um lado, um beijo apressado em titia, e corria a vê-los. A brancura dos pelos não guardava a marca das pretas mãos odiadas. Os olhos vermelhos nada denunciavam. Batia-lhes, ciúme furioso. Amedrontava-os, queriam fugir, orelhas caídas, eu os abraçava. quase chorando, com loucura.

   No serão da sala de jantar, titia tricotando, eu preso aos deveres passados para fazer em casa, era ele, o bandido, que puxava o assunto para me ferir:

    - Eu hoje, sabe, seu Francisco?, fui com os seus coelhos até a padaria. 

  Eu me mordia:

   - É?...

   Silvino via que a chaga estava aberta, sangrando e remexia-a, deliciando-se com a minha agonia:

   - Ta bom, vou até la embaixo ver se eles estão direitinho - e saía devagar, empurrando as mãos nos bolsos, em esgar de vingança satisfeita no canto da boca.

   Meu desespero chegava ao auge. Um pouco mais estourava. A caneta na mão nervosa fazia uma letra mil vezes pior do que verdadeiramente era: pulava palavras na cópia do"Coração", trinta e nove menos quinze davam doze no problema das laranjas. 

            *   *   *

Maio plácido, ameno, aio das sinetas tocando para a a benção, pelo tombar das tardes, na capela dos asilo, maio trouxe, na casa de titia, além da muda dos canários, algumas tangerinas temporãs e um infausto acontecimento; a morte de Silvino, atropelado pelo caminhão do gelo, quando fora à praça botar uma carta no correio.

   Não morreu logo. Veio berrando lancinantemente nos braços de transeuntes solícitos, o caixiero de venda à frente,abrindo caminho, gesticulando, explicando o acidente.

   À noite delirou e o delírio fê-lo autor confesso duma infinidade de malandragens miúdas, tijolos de goiabada furtados da despensa, carreteis de linha que voavam da cesta de costura, colherinhas de prata enterradas no terreiro. Mais ainda, fez aclarar o grande mistério das rosas. É, que, durante meses, diariamente aparecia juncado de pétalas o chão do roseiral, sem que nenhum vento noturno tivesse soprado, destruidor. Como o roseiral era fechado por altos muros, a repetição quotidiana do fro preocupava bastante tia Bizuca, que já aceitava a suposição de D. Marocas Silveira, espírita, que fosse obra de algum espírito gaiato e mistificador. E  era ele, Silvino, o vândaço das flores, que possuído de não sei que estranha volúpia, ia, na clada das madrugadas, pois acordava com os galos, ocultamente desfolhá-las, sem que ninguém o papanhasse.

   Titia chegou a rir com a inesperada desocberta.

   - Ah, gibi sonso, então era você, hein, seu pândego?... Deixe ficar bom que vai ver só....- ameaçou-o.

   Ela ignorava a gravidade do acidente. Soube-a no diagnóstico do seco Dr. Gouveia, que abanava a cabeça:

   - Nada, minha senhora, nada é possível fazer, além do que está feito. Só um milagre - fratura da bacia interessado seriamente a espinha...- só um milagre!- repetia com um nítido acento materialista.

   - Mas doutor...

   Ele atalhou, piedoso:

  - Vou dar-lhe morfina para que sofra menos.

   Titia, então, dedicou-se-lhe toda. Incansável, extremosa, dum lado para o outro, vê isto, vê aquilo, o dia inteiro, velou-o quatro noites, sem pregar olho.

  Na quinta noite, seriam onze horas, a lâmpada envolta com um papel pardo, porque ele não suportava a luz. Silvino despertou da pesada letargia que lhe provocara a última injeção:

  - Madrinha - sussurrou.

  - Que é? Estou aqui - e titia, rápida, saiu da sombra , donde, encolhida num banquinho, ficara insone, vigiando-o.

  - Sei. Me dá a sua mão.

   Deu-lhe e ele levou-a, dificilmente, aos lábios. Lágrimas escorriam-lhe dos olhos que foram tão redondos e espertos e se mostravam naquele instante, tão esbugalhados e baços.

   - Benção.

  Titia adivinhou qualquer coisa:

- Que tolice, meu filho, dorme.

Filho? Silvino fez um esforço, procurou a boca que se confessava maternal e repetiu:

 - Benção. Estou cansado de sofrer, madrinha.

   Apertou-lhe a mão com mais força, apertou-lhe, largou-a bruscamente. A cabeça tombara para o lado da parede,

  - Francisco! Alexandrina! Meu Deus! Uma vela!

   Todos correram. Titia j[á se encontrava ajoelhada. Caímos de joelhos, també rezando. A vela começou a arder, branca, muito branca, trêmula e brilhante na mão crioula do pequenino morto. Titia soluçava alto.

     ****

    Tia Bizuca, olheiras roxas, marcadas, mais magra, mais acabada, no largo vestido preto, nada poupou para o enterro. " Pobre Silvino? - chorava pelos cantos, entre os braços consolativos das vizinha. A casa se encheu, que o traquinas , muito alegre, muito serviçal, era estimado nas redondezas.

   Acompanhei-o ao Inhaúma, no primeiro táxi após o côche, levando no rosto o prazer da novidade, através das ruas que os homens descobriam. Lá o deixei para sempre, na tarde tépida, opalina, sorridente, lá o deixei  coberto com rosas, com todas as rosas que o roseiral precioso de titia ofereceu naquele dia, rosas brancas irmãs das que el, por tanto tempo, tão prodigamente despetalara.

   Na casa deserta das suas gargalhadas, rascantes, comprimidas -hi,hi,hi- me senti único no amor dos meus coelhos. Pouco, porém, durou a alegria da exclusividade.  A falta de concorrência me tirou, talvez, o apaixonado estimulo, talvez o futebol a que , então, me entreguei com ardor, não posso dizer, certo foram ficando abandonados os alvos objetos da minha  primeira paixão. Aliás já não se mostravam possuidores da famosa brancura dos passados dias de rivalidade. Sujos, maltratados, vagavam esquecidos pelo quintal, pela horta, onde quisessem, livres, se emporcalhando na lama no pó, no depósito de carvão, pegado ao galinheiro.

   Deixei de vê-los, nem mais ia ao quintal. O Manuel quando me encontrava na cozinha, não mudava a chapa

   - Seu Francisco está ficando um moço. Não quer saber mais de coelhos - e piscava o olho com sobrancelhas carregadas.

   - É, é - respondia confuso e, me esquivando pelo corredor, passei a fugir deles às léguas. Morreram, um dia, cegos; os olhos como contas vistosas perderam a cor, se cobriram de um véu opaco. Morreram, um dia cheios de calombos na barriga, que amedrontavam titia: "Será bubônica, Virgem Santíssima?! Não, era velhice, explicou Manuel que, ao que parece, tudo sabia a respeito de semelhantes animais. Morreram. Titia, penalizada, epserou que também me entristecesse, Como, porém, não sentisse tristeza alguma, procurei esconder-lhe este indício de perigosa insensibilidades:

   - Foi melhor assim, minha tia. Coitados, estavam sofrendo tanto.

   Titia se afastou:

   - Tem razão, meu filho. Foi melhor assim.

   No íntimo o que eu sentia era uma completa libertação. A bola era minha ideia fixa. Jogava de "back", jogava mal. jogava como criança, mas jogava.  

   ( TRÊS CAMINHOS)



Usura

substantivo feminino
  1. 1.
    juro, renda ou rendimento de capital.
  2. 2.
    ECONOMIAJURÍDICO (TERMO)
    contrato de empréstimo com cláusula de pagamento de juros por parte do devedor.
Semelhantes
lucro
ágio
benefício
emolumento
gança
ganço
ganho
interesse
maneio
proveito


Significado de dulcificar

Tornar doce.

Significado de Bicharoco

substantivo masculinoBicho grande.Bicho asqueroso.
Séquito séquito

/qu,qü/
substantivo masculino
  1. 1.
    conjunto das pessoas que acompanham outra(s); cortejo que acompanha uma pessoa, ger. distinta, para servi-la ou honrá-la; comitiva.
  2. 2.
    ANTIGO
    ação ou efeito de seguir; seguimento.






CONTINUA

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

NÍZIA FIGUEIRA. SUA CRIADA - MARIO DE ANDRADE









Belazarte me contou:
Pois eu acho que tem. Você já sabe que sou cristão...Essas coisas de felicidade e infelicidade não tem significado nenhum, se a gente se compara consigo mesmo. Infelicidade é fenômeno de relação , só mesmo a gente olhando pro vizinho é que diz o " atendite et videte".Macaco olhe para seu rabo! Isso sim me parece o cruzamento da filosofia cristã com a precisão de felicidade neste mundo duro. Inda é bom quando a gente inventa a ilusão da vaidade, e, em vez de falar que é mais desinfeliz, fala que é mais feliz...Toquei em rabo, e estou lembrando o caso do elefante, você sabe?...Pois não vê que um  dia o elefante topou com uma penuginha de beija-flor caída numa folha, vai, amarrou a penuginha no rabo com uma corda grossa. E principiou todo passeando na serrapilheira da jungla. Uma elefanta mocetona que já estava carecendo de homem pra cumprir destino, viu o bicho tão bonito, mexe pra cá, mexe pra lá, ondulando feito onda quieta, e se engraçou. Falou assim: - "Que elefante mais bonito, porca la miséria!" Pois ele virou pra ela encrespado e: - " Dobre a língua, sabe! Elefante não senhora! sou beija-flor". E foi-se. Eis aí um tipo que  ao menos soube criar felicidade com uma ilusão sarapintada. É ridículo, é, mas que diabo! nem toda a gente consegue a grandeza de se tomar como referência de si mesmo! Quanto a que lhe suceda como com aNízia, homem! Isso estou imaginando que só com ela mesmo...Que Nízia?
     ....se chamava...não me lembro vem se Ferreira, Figueira...Qualquer coisa em "eira". Creio que era Nízia Figueira. Essa sim, de família nacional da gema, carijó irumoguara com Figueira ascendente até o século dezessete.
    Quando em 1886, tendo vendido o sítio porcaria perto de Pinda, o pai dela veio para São Paulo, virou mexeu até que teve coragem de comprar com o dinheiro guardado esse fiapo de terra baixa, então bem longe da cidade, no hoje bairro da Lapa. Em 88 Nízia com dezesseis anos de mocidade, guardada com olho de Figueira pai sempre em casa, foi com o velho e a criada preta que tinham morar na chacrinha recem-comprada. Figueira pai, nem bem mudou, deu com o rabo na cerca por causa dum antraz que o panema dum boticário novato imaginou que era furúnculo. Resultado:antraz tomou conta de Figueira que morreu apodrecido. Dores tamanhas, que, si tivesse vizinho perto, não podia dormir de tanto gemido  que todo orgulho daquela carne tradicional não podia que não saísse, arrancado do coração meio com bastante  vergonha até.
   Nízia se via só neste mundo, contando apenas dezessete anos e uma inocência ofensiva, bimbalhando estupidez, valha a verdade. Só mais a "prima Rufina!, como ela desde criancinha se acostumara a chamar a criada preta. Prima Rufina tinha vinte e muitos, e era bem enérgica...Plantaram pereira, pessegueira, uma horta grande. Nízia tricotava, tricotava, fazendo sapatinho, paletozinho, touquinha de lã pros filhos desses homens. Prima Rufina vendia tudo na cidade , couve hoje, pêssegos verde pra doce amanhã, trabalhinho de lâ todos os dias. Eu sei que chegava muito pra elas viverem e até Nízia guardava um pouco para a velhice.
   Prima Rufina saía com o baú na mão, ia na casa dum, na casa doutro, se afreguesou num instante, com tanta lábia... Pera de presente pra filha de Dona Maria, bala de açúcar pros filhos de seu Guimarães, saber seu Quintinho como passou: trazia sempre dinheiro pro sustento. Menos o tostão ficado na venda, em troca da boa pinga de Deus.
   Nízia olhava a dinheirama se engrossando, porém não sabia que dinheiro se gasta noutras coisas; e os mil-reis continuavam empilhados na gavetinha da cômoda. Prima Rufina é que aprendeu a vida...Não contava nada, quieta, preparando a janta, cachimbo no beiço grosso. No entanto bem que  aprendeu... Não durou muito, se enrabichou por um canhambora safado que vivia ali mesmo, nas barbas da cidade. O filho da mãe abusou dela quanto quis, deixou prima Rufina barriguda e inda por cima desapareceu de repente, levando trinta e seis mil-reis que pedira emprestado para ela. Nízia olhava aquela barriga redondinha que nem arandela, afinal perguntou.
   -Uaí! nha Nízia, é doença! Estamo trabaia má, barriga empina. A ,muié de nho Marconde já me premeteu limão-brabo pra mim. Limão brabo sara eu!
    Nízia pensava no antraz do pai - e tinha medo.
   Barriga, de tanto crescer, teve um dia em que careceu botar o desgraçadinho pra fora. Prima Rufina veio correndo pra chácara, deixou o baú por aí, nem sabia mais na casa de quem, só portando na venda pra comprar a garrafa de caninha.
   - Olha que tu vais por bom caminho, rapariga!
   - Cuida de seu negócio, viu?
   Chegou, fechou-se por dento no quarto, e o filho veio vindo sem prima Rufina desse um gemido, tal e qual os animais do mato. Nízia mandara ela preparar a janta. " Não posso prepare mecê!" ela roncava apertado. Que seria que tinha sucedido pra prima Rufina!....Era o antraz, na certa...Nízia teve mortes, do medo de ficar sozinha.
   - Mecê se deite, num s'incomofr cum eu!
   Quando ela vinha chamada por aqueles guinchos abafados, que nem choro de criança. Não era choro, não naturalmente prima Rufina que sofria com o antraz...Que havia de fazer? Deitou. Perguntou pra escuridão. Não era nada. Meia inquieta adormeceu.
   Prima Rufina, quando viu que não tinha mais vida na casa. se levantou. Pinga já estava toda no lugar do tiziu saído e sonhando na capa do xadrez. Carecia de coragem. Pois foi na guarda-comida buscar o espírito-de-vinho e mamou na garrafa mesmo. Enrolou bem a criancinha e saiu. Saiu sim! De vez em quando sentava no caminho, suor correndo bica de dor, vista feito vidraça de neblina...Não era madrugada ainda a preta ja naão tinha mais filho no braço. Dinheiro? não vê que se esquecera de trazer: primeira venda entreaberta, pronto: entrou. Foi um pifão daquelas! sò dia velho, empurrou a porta da casa, rindo boba, com os olhos derretidos num choro sem quere, cantando o "Nossa Gente, Toca zumba, zumbam zumba"...Nízia até chorou de susto, pensando que prima Rufina estava maluca. Que maluca nada! era mais infelicidade saindo de mistura com bebida.
  Prima Rufina ficou doente uns dias. Depois sarou e aprendeu. Quando tinha vontade, ia nas vendas procurando homem disposto. Porém não sei como fazia, sei que nunca mais teve antraz. E foi desde aquela bebedeira que ela pegou chamando Nízia de "mia fia".
   Nízia, vinte , vinte e um, vinte e dois, continuava esquecida naquela chacrinha sem norte. Não tinha nada de feia, principiou se enfeitando, foi na cidade algumas vezes...Ficava no portão parada, sempre  de hora em hora alguém havia de passar...Passava porém mal reparava  em Nízia. Pois até, uma feita, ela foi numa loja concorrida da cidade, se encostou no balcão esperando. Os caixeiros passavam, serviam todo mundo, pois não é que esqueceram de servir Nízia! Esqueceram meu caro! Não estou fantasiando não! Então ela  chamou um e pediu entremeio.
    - Sim, senhora, já trago.
   Outro pediu que ele endireitasse a pilha de chita quase caindo, começou a endireitar, endireitou, não sei quem pediu entremeio pra ele, serviu outra freguesa e esqueceu Nízia. Ela ficou ali muito serena,e esperando. Quando viu que entremeio não vinha mesmo,desolada, foi-se embora. e prima Rufina continuou comprando tudo quanto. Nízia precisava.
    Desejos, não posso dizer que não tivesse desejos, teve. Olhava homens passando, alguns eram bem simpáticos, havia de ser bom com eles... Mas iam distraídos na rua republicana já! Nízia voltava murcha pra dentro, sempre matutando que havia de ser bom com eles. Porém isso era  fogo-de-palha. Sapatinho de lã toma atenção se não agente erra o número dos pontos...Quedê tempo pra imaginar nos homens?...
   O que  cresceu foi a intimidade com prima Rufina. Começaram a conversar mais. Nízia inventava curiosidades depois do jantar, ali sentadas na varanda. A filha de nhô Guuimarães enfim tinha casado com o moço médico; o caso da mulher que matou o marido na rua Major Quedino, e assim. Então quando teve aquela dor de dente, por causa duns limões verde que andou chupando e comeram o esmalte dum canino, prima Rufina fez ela beber um trago importante de cachaça. Nízia quase morreu de angústia, ficou tonta, lançou que foi um horror. Prima Rufina sempre junto dela, consolando, limpando a blusa suja, deitando a bêbeda com tanto carinho... A dor de dente passou, isto é que eu sei. E a intimidade entre as duas aumentou muito. Nunca mais Nízia bebeu, mas a outra contava as razões da pinga, e Nízia acabou sabendo as tristezas do nosso mundo.
   Teve um momento em que a humanidade pareceu se lembrar dessa apartada. Foi com o seu Lemos o caso. Seu Lemos era fluminense não sei donde, meio pálido, com bigodinho torcido e cabelo crespo repartido do lado. Vinha pela estrada, sem custo carregando o corpo baixote, saber duas, três vezes por semana o protetor como passou, lá num sítio enorme que ficava mais ou menos onde é o bairro do Anastácio agora. Assim também o graúdo, que já dera pistolão pra ele entrar como carteiro nem bem chegadinho do Estado do Rio, não se esquecia de arranjar coisa milhar. Homem...será mesmo que seu lemos queria coisa milhor?  Indivíduo macio, fala rarra, não olhando. Sentado, ficava ali uma meia hora, respondendo si perguntavam, que ele ia bem, que mamãe também ia passando bem, que o serviço ia muito bem...Tudo ia bem pra seu Lemos! Depois pegava no chapéu, ia-se embora pra casinha, alugada debaixo do viaduto do chá.
     _ Sua benção, mamãe.
    - Como vai seu Anastácio?
    - Bem.
   Comiam. Estou pensando que foi esse Anastácio que decerto de nome pro bairro, não?...Depois seu Lemos ia palitar o dente na janela baixa. A noite vinha descendo, tapando o Anangalbaú com uma escureza solitária. Os quintais molhados do vale, botavam uma paininha de névoa sobre o corpo e ficavam bem quietinhos pra esquentar. Era um silêncio!... Poc, poc, poc,,, Alguém passando no viaduto. Sapo, que era uma quantidade. Euzinha aqui, luzinha ali, mais sapo querendo assustar o silêncio, qual o quê! silêncio matava São Paulo cedinho, não eram nem nove horas, Seu Lemos não tinha mais no que imaginar. Ia direito botar o restico de palito mastigado no lixo, fazia o Nome-do-Padre e caía na cama já dormindo. A mãe inda ficava rezando, uns pares de horas, pra cada santo esquisito que ela escarafunchava lá de quanta alcova tem o paraíso. Santo Anastácio mártir; novena se São Nicolau; oração pra evitar moderdura de cobra; oração pra evitar esbarro-de-esômago; oito Crem-dos-padre para não pegar fogo na cidade. Acabava rezando a missa das almas do outro mundo, de que  ela tinha um vruto dum pavor. Vela também se acavava. Era um despesão de vela naquela casa, porém São Paulo nunca pegou fogo, ninguém não teve esbarro-de-estômago na família. e seu Lemos nunca foi mordido de cobra quando ia na rua do Carmo, rua de Santa Teresa, por ali, entregando carta. Filho bom ele não era não...Respeitar a mãe, respeitava nisso da  gente tomar a benção, não fumar na frente dela, falar bom-dia, boa-noite, levar ela ver Senhor Morto na noite de Sexta-feira Santa. Mas a pobre que cozinhava,inda lavava e engomava toda a roupa do filho, ete. Nem conversa. Aliás seu Lemos não conversava mesmo com ninguém. E quando a mãe morreu de repente, o que sentiu foi o vazio inquieto de quem nunca lidara com pensão nem lavandeira.
   E foi então que, palitando dente, ele afinal principiou reparando naquela moça do portão. No dia seguinte, francamente, foi até lá só para ver que tinha mesmo moça no portão daquela chacra. Nízia estava lá meia lânguida, mui mansa, não pedindo nada, só por costume duma  esquecida que não esperava mais ninguém. Quando palitou de novo a barulhada dos sapos nessa noite, seu Lemos começou a pensar que ali estava uma boa moça para casar com ele. Não refletiu, não comparou, não julgou, não resolveu nem nada, seu Lemos pensava por decretos espaçados. Pois um decreto aparaceu em letras vagarentas no bastunto dele: Ali está uma boa moça para casar com você. Na palitação do dia, estava escrito na cabeça dele: você vai casar com a moça do portão. então seu Lemos foi visitar o Anastácio e, passando, cumprimentou a moça do portão. Nízia estava já tão esquecida de si mesma que nem se assutou que o cumprimento, respondeu. Seu Lemos, que não via razão pra visita todo dia na chacra do padrinho, passava, cumprimentava, andavaa mais meio quilômetro pra disfarçar, ficava por ali dando-de-agarra-compadre do caminho, voltava, e cunprimentava de novo, rumo de Anhangabaú.
   Depois de mês e meio de tanto bate-perna seu Lemos, palitando, soletrou o decreto novo aparecido de repente na cachola: Amanhã é domingo pé-de-cachimbo, e você vai pedir a mão da moça da chacra. Note bem a graça desses decretos: de primeiro so falava em moça do portão, mas agora vinham falando em moça da chacra, mais útil pra casar.
    Ali pelo meio-dia, prima Rufina muito espavorida veio ver quem e estava batendo. Era seu Lemos. Prima Rufina quase que dá o seuíte no indivíduo, mas enfim Dona Nízia devia de saber o que era aquilo. Decerto encomenda....
    -  Mecê entre!
   Seu Lemos não esperou nem dois minutos no copiar, veio Nízia, assim como estava, com o trabalhinho no colo. Ele fitou que vinha pedir a mão dela em casamento. Ela respondeu que estava bom. Foi lá dentro dizer que prima Rufina preparasse também uns bolinhos pro café e voltou. entraram na varanda. Nízia continuando o sapatinho pricipiado.
    - Como é sua graça?
   Olhou pra ele espantada. perguntar como era a graça dela...Decerto que ela é que não sabia! Seu Lemos esclareceu:
   - Me chamo Lemos, José Lemos, seu cirado. Queria também saber o nome da senhora.
   - Nízia Figueira, sua criada.
   - Sim senhora.
   Seu Lemos parou de brincar com os dedos emcima das pernas.
   _ A senhora gosta muito de fazer sapatinhos, Dona Nízia?
   - Já estou muito acostumada.
 - Muito bonito esse que a senhora está fazendo, é presente?
   - Não senhor, eu vendo.
   - Ahn...
   - Quantos faço; prima Rufina vende nas casas.
    - Sei...Quem é prima Rufina?
   Seu Lemos recomeçou brincando com os dedos em cima das pernas.
   - A preta que recolheu o senhor.
   - Anh...Mas ela não é sua prima da senhora, não?
   - É prima criada. Me acostumei chamando ela de prima Rufina desde criança. E ficou.
  - Engraçado.
  Trinta e seis, trinta e nove, quarenta e oito, pronto, acabava mais uma carreira.
  - Está um dia bonito hoje, não?
   - Está mesmo.
   - Que sol mais claro, não?
  - Quem sabe está incomodando o senhor? eu fecho a janela...
   - Não senhora, até nem me incomoda.
  Veio o café com leite e bolinhos. Tomaram café com leite e comeram dois bolinhos cada um. Fazia uma tarde sublime lá fora. Claro, claro, com o sol quente despencado sobre os campos. E por esse instinto de domingo que a natureza parece ter, aquela baixada estava tão sossegada, tomava um ar de repouso largado, imensamente  largado, esparramado no chão. Eles ficaram ali fechados na varanda, seu Lemos palitava, Nilza tricotava, até que que enxergavam os primeiros rumores longe no horizonte, entardecendo o dia.
   - Bom dia, já vou indo.
  Então Nízia percebeu a ventura inconcebível que lhe trazia aquele homem. olhou. Viu na rede o bigode e o topete simpático. Sorria pra eles. O vestido de casa recortava as redondezas do corpo dela, feito como era costume naquele tempo, quase gordo, mais gordo que magro, peitos enchumaçados, pernas grossas, curtas, mãos parando no meio. Na cara , os olhos castanhos embaçavam de rubor liso que vinha empalidecendo até um queixo  feito barrete frígio. Nariz simples, com as narinas quase grandes, ondulando nas mesmas curvas dos bandós castanhos. A boca sorrindo era pálida, com dentes cerrados e monótonos. Falou um "Já vai" meio pergunta, meio aceitação duma calma dominical.
   - Já vou sim, Dona Nízia, são horas. Tive muito prazer em conhecê-la.
   Inquietação antiga desmanchou a cara dela:
   - O senhor volta!
   - Volto. Não volto sempre porque creio que vou mudar de emprego. Trabalho no correio, é . Meu padrinho parece que vai arranjar qualquer coisa pra mim na Secretaria do Tesouro, mas volto. passe bem.
  Ela entregou-lhe a mão e a vida:
  - Passe bem.
   Acompanhou-o até o portão. Ficou ali, enquanto ele partiu pelo caminho ruim. Tomando a estrada larga seu Lemos nem disse outro adeus. Nízia entrou; andava meia sem serviço pela casa.
  - Essas toalhinhas de crochê estão carecendo lavar, Prima Rufina.
     - Antão num lavei elas na semana retrasada memo!
  - Mas olhe como estão!
   - Num inxergo nada não, porém, mecê qué eu lavo! Tou vendo mas é que seu Lemos veio atrapaiá tuda a vida desta casa! Mecê intá parece que enm num sabe adonde assentá! Cadera num farta! Sente, fique sussegada que é mió!
    - Você  não gostou de eu ficar noiva, é?
   - Até que gostei bem. Mecê carece dum home nesta casa que lhe proteja mas porém ansim! Premero que aparece, vai ficando noiva! Nem sabe si seu Lemes quem é, arre, credo! Será que anda de bem com os puliça! Isso que num posso assigurá pra mecê!
  - Como você está braba comigo. Prima Rufina! Ele é empregado no correio!
   - Isso antão é imprego que se tenha! Gente boa num carece di andá iscrevendo carta não! Veve que nem nóis memo, bem assusssegado no seu canto! Mia fia, vassuncê num cunhece nada deste mundo, mundo é mais ruim que bão...Essa história di sê impregado no correio, num mi parece que seja coisa dereita não, imfim...
    Foram deitar. A felicidade de Nízia fizera dela uma desgraçada. Do passado e esquecimento de dantes não se lembrava, mas  agora é que fazia ela sofrer. Noivo, seu Lemos achou que não carecia mais de passar todo santo dia pela casa tão longe da noiva. Tarde veio e seu Lemos não veio. Nízia vivia num deslumbramento simultâneo de felicidade e amargura. Que amasse não digo, mas tinha alguém que se lembrara da existência dela. Isso lhe dava um gosto inquieto, gosto de comparação, gosto de mais de um, não sei se explico bem. De repente ficara desinfeliz. " Vem amanhã", murmurejou sofrendo de prazer. E repetiu. "Vem amanhã" até na quinta-feira.
    Seu Lemos chegou não eram bem seis horas,jatando. Entregou pra ela o brochinho de ouro escrito LEMBRANÇA.
      - Muito obrigada, seu Lemos!
       - Senhora tem passado bem?
   Etc....
   Ficou lá até oito, creio. Nizia trabalhando, sob o lampião de querosene. Ele assustando as assombrações do teto. Falavam de vez em quando aquelas frases de companheiro que não espera resposta, só pra certidão de existência junta. Um pouco de Correio, um pouco de trabalhinho de lã. Prima Rufina pitando na cozinha. Seu Lemos afirmou que voltava no domingo e então haviam de combinar o casório.
   Não veio no domingo, veio na terça-feira. Que andara muito atrapalhado por causa duma visita que fora obrigado a fazer. Depois tivera de levar uma carta do tal pra um graúdo, estava quase arranjado o lugar na Secretaria. Trazia aquela meia dúzia de lencinhos, desculpasse. Nízia foi lá dentro e voltou. feliz duma vez, com o cachenê feito por ela na mão. Seu Lemos agradece e achou que estava muito bonito. Estava. Era pardo, todo com listas pretas, barra de lã com seda.
   Seu Lemos levou uma semana sem aparecer. Só na outra terça-feira estourou na chacrinha, muito afobado, só tivera tempo pra arranjar aquelas cravinhas, de tão atrapalhado que andava, desculpasse. Saíra a nomeação e no dia seguinte tomava posse.
   - Custou mas enfim!...
   - Quem espera sempre alcança.
   - É mesmo mas custou. Já ia desanimando.
    Seu Lemos estava mais tagarela. Nesse dia sapatinho de lã não entrou na conversa, era só serviço ruim do correio, serviço bom da secretaria, ordenado bem melhor, seu chefe de secção, " me disseram" e outras coisas nessa toada. Nízia escutando. As palavras caíam dentro dela ta, qualmente flor de paína, roseando a alma devagar. Foi-se embora mais cedo? Não fazia mal! Nem soube que eram nove horas, que eram dez e muito mais, ficou sozinha no trabalho, sem saber que trabalhava, acabando carreira numa conta, acabando sapatinho,acabando outro sapatinho, escutando. Não tinha nem bulha na noite fora. Os homens estavam dormindo em São Paulo. Nem poeira, nem grilo, nem vento, que nada. Um silêncio de matar gesto do braço. Nízia tricotando sem saber. A luz do lampião mariposava em volta da cabeça dela e, no calor seco da sala, as palavras de seu Lemos se pronunciavam ainda, sonoras de verdade, como afago doce de companheiro. Nízia sofreu que você não imagina. Sofreu aquele sapatinho de lã; sofrei por causa da Prima Rufina que estava envelhecendo bem depressa; sofreu aqueles vestidos de cassa eternamente ps mesmos, carecia fazer outros; as toalinhas de crochê não ficaram bem lavadas; também Prima Rufina nunca trouxera uns pés de cravina para plantar no jardim! flor tão bonita....
    Todas essas infelicidades que nunca sentira, e que doem tanto pra que, não pode ter outras: era a voz de eru Lemos que trazia pondo como espelho diante dela, o corpo do companheiro. Foi pro quarto e pela primeira vez depois do antrás da preta, não dormiu logo. Pensar não pesnou, er atambém do genero dos decretos. Como decreto não vinha, ficou espalhada na escuridaão, sentindo apenas que vivia feloz, encostada na vida do companheiro.
    Seu Lemos levou duas semanas sem paarecer.
    - Poisé!si mecê já estivesse priguntado pra ele adonde que ele mora, eu ia até lá sabê si é douença....
   Numa quarta-feira seu Lemos apareceu. Vinha com barba por fazer e de mãos vazias, puxa! que serviceira! estava arrependido. Depois, tanta responsabilidade!....Entregar carta, a gente entrega e pronto, agora? escreve número aqui, escreve número noutra parte, e não se pode errar porque livro de Secretaria não é coisa que a gente ande rabiscando nem raspando. depois: ainda não estava bem enfronhado do serviço, que barafunda! nunca imaginei que fosse tão difícil!....
     O engraçado que ali mesmo, diante de Nízia, sem se lembrar dela, seu Lemos estava lendo os decretos da cabeça. E não pense que lia todos em voz alta que nem estou fazendo, não! Parava de falar às vezes, e lia só consigo. E que diferença agora a cabeça de seu Lemos! Antigamente era vazio, grande sem anda, só de três em cinco palitações um decretinho curto. agora? era ver página do Correio Paulistano, " que barrafunda!, como ele dizia...Foi-se embora remoendo decreto sem parda,
   Nízia ficou na porta, metade do corpo na noite, metade dentro de casa, partida pelo meio. Bem sentiu que seu Lemos, coitado!. não era por querer, porém, estava escapando dela. Voltou pra dentro, e custava se lembrar do que seu Lemos falara. Quis sossegar-se. Coitado! tanta ocupação...Sossegou-se mas num sossêgo, sozinho, de morte e desagragação. Quando ficou bem só, não sofreu mais. Dormiu.
   Seu lemos só apareceu vinte dias depois. Vinha magro, passando. Viu Nízia no portão, aprou pra saudar. Tinha que ir ver o protetor, por causa duns embrulhos na repartição. ela meia que ficou até espantada com a figura do estrangeiro. Teve uma dor terrível.
   - Na volta os enhor entre sempre seu Lemos?
   - Pra falar verdade, Dona Nízia, não sei si posso parar, sii puder , paro. Mas não se incomode por minha causa não.
   - Passe bem.
   Seu lemos tinha revivido nela uma infelicidade pesada. Mas não desejou que seu Lemos voltasse, como seria milhor pra ela e foi. Seu Lemos não voltou. Padrinho deu estrilo com ele por causa de tal encrenca, seu Lemos zangou com o padrinho, seu lemos saiu de secretaria, seu Lemos banzou sem decretos uma porção de dias, seu lemos arranjou emprego numa loja de fazendas. O coitado não queria riqueza, queria sossego...Arranjou uma mulata gorda pra cozinhar, dormiu uma noite no quarto de Sebastiana e depois todas as noites a Sebastiana no quarto dele, que era mais espaçosos. Sebastiana cozinhavaa, porém não era cozinheira mais; dona de casa sempre querendo chinela novo no pé cor de sapota.
   Nízia...Teve um homem que veio morar bem perto da chacrinha dela. Não demorou muito uma família vizinhou com o tal. E aos poucos fdoi se azendo a rua Guaicurus, foi-se fazendo amsi um bairro desta cidade ilustre. Uns se davam com os outros; uns não se davam com os outros, ninguém não se dava com Nizia; Prima Rufina se dava com todos. Nízia serenamente continuava, esquecida  do mundo.
  Deu mais é pra beber. Banzando pela casa, foi matar uma barata e encontrou debaixo da cama de Prima Rufina a garrafa que servia pra  de noite.Roubou um pouco por curiosidade. Muito pouquinho, de medo da outra. A  primeira sensação é ruim, porém o calor que vem depois é bom.
   Não levou nem mês, Prima Rufina percebeu. Não falou nada, só que trouxe um garrafão de pinga, e principiaram bebendo juntas. Cada mona!...Não digo que fosse todo dia, pelo contrário. Nízia trabalhava. Prima  Rufina vendia, sempre as mesmas. Trintonas, quarentonas, isto, é, Prima Rufina, sempre muito mais velha que a outra. Dera para envelhecer rápido, essa sim, uma coitada que não o mundo porém a vida esquecera, quase senil,arrastando corpo sofrido, cada nó destamanho no tronezelo, por cuasa do artritismo. Quando a dor era demais, lá vinha o garrafão pesado:
   - Mecê também qué, mia fia?
  -Me dá um bocadinho pra esquentar.
   - Pois é, mia fia, beba mesmo! Mundo tá ruim, cachaça dexa mundo bonito pra nóis.
   Era dia de bebedeira.Prima Rufina dava pra falar a chorar alto. Nizia bebia devagar, serenamente. Não perdia a calma, nem os traços se descompunham. A boca  ficava mais aberta um pouco, e vinha um filigrana vermelha debruar a fímbria das narinas e dos olhos embaçados. Punha a mão na cabeça e o bandó do lado esquerdo se arrepiava. Ficava na cadeira, meio recurvada, com as mãos  nos joelhos, balanceando o corpo instável, olhar fixo numa visão fora do mundo. prima Rufina se encostando em quanta parede achava, dnado embigada nos móveis puxava Nízia. Nízia se erguia,a garrafa o garrafão em meio, e as duas, se encostando uma na outra, iam pro quarto.
   Prima Rufina quase deixou cair a companheira. Rolou na cama, boba duma vez chorando, perna pedente, um dos pés arrastando no assoalho. Nízia sentava no chão e recostava a cabeça na perna de Prima Rufina.Bebia. Dava de beber pra outra. Prima Rufina punhaa mão sem tato na cabeça de Nízia e consolava a serena:
   - È isso memo. mia fia...Num chore mais não! A gente toma pifão dá gosto e bota disgraça pra fora...Mecê pensa qye pifão num é bão....é bão sim! pifão...pifaãozinho...pra esquentá disgraça dessemundo duro...O fio de mecê, num sei quedê ele não. Fio de mecê deve de andá por aí, rapais, de certo home feito.... De certo já isbarrrô cum ele, mecê nym cunheceu seu fio, seu fio num cunheceu mecê...Num chore mais  ansim não!... Pifão fis mecê esquecê seu fio, pifão..pifão...pifãozinho....
   Nízia piscava os olhos secos, embaçados,entredormindo. Escorregava. Ia babar num beijo mole sobre o pezão de Prima Rufina. Esta queria passar a mão na outra pra Consolar, vinha atpe a borda da cama e caía sobre Nízia, as duas se mosturando num corpo só. garrafão, largado, rolava um pouco, parava no meio do quarto.Prima Rufina ainda se mexia, incomodando Nízia. Acabava se aconchegando entre as penas desta e fazendo daquela barriga estufada um cabeceiro cômodo. Falava pifão não sei qiantas vezes e dormia. Dormia com o corpo todo engruvinhado de tanta vida que passara nele,  gasta , olhos entreabertos, chorando.
   Nízia ficava piscando, piscando devagar, mansamente. Que calma no quarto sem voz na casa...Que calma na terra inexistente pra ela...Piscava mais. Os cabelos meio soltos se confundiam com o assoalho na escureza da noitinha. mas inda restava bastante luz na sereno, um reflexo leve de baba no queixo, rubor mais acentuado na face conservada, sem uma ruga, bonito. Os beiços entreabriam pro suspiro do sono sair. Adormecia calma, sem nenhum sonho e sem gestos.
  Nízia era muito feliz.
                                         (BELAZARTE)