quarta-feira, 28 de março de 2018

Contos de Andersen - OS DOZE PASSAGEIROS

Fazia um frio cortante: o céu estava cheio de estrelas; nem a mais leve aragem movia as folhas das árvores.
   - Paf!
   Foi uma panela velha que caiu junto ao portão do vizinho.
   - Pum! Pum! 
   Eram tiros. Saudações ao Ano Novo. Porque isso foi na noite de São Silvestre, e naquele instante o relógio da torre dava as doze badaladas.
   -Pa-ta-trás!
   Era a diligência que vinha chegando.
  A grande carruagem parou à porta da cidade. Trazia doze passageiros; nenhum assento vazio.
    - Viva! Viva! Hurra!Hurra!
   Eram as pessoas da cidade que assim festejavam a noite de Ano Bom. À meia-noite levantaram-se, com as taças cheias na mão, para dar vivas ao ano que acabava de entrar.
  - Feliz Ano Novo! Desejo-lhe uma bonita esposa, muito dinheiro, e nenhum desgosto, nenhum pesar!
    Eram os votos que uns apresentam aos outros. Depois tocavam os copos, que tiniam e cantavam. E a diligência, com os hóspedes estrangeiros, doze ao todo, lá estava parada diante do portão da cidade.
   Mas quem eram os forasteiros? Cada um trazia seu passaporte e sua bagagem; e até traziam - todos eles - presentes para mim e para ti, e para todos os habitantes da cidade pequenina. Mas quem eram? Que queriam ali? E que viriam trazer?
   - Bom dia! - disseram eles à sentinela postada à entrada da cidade. 
   - Bom dia! - respondeu o homem.
   Porque já tinham soado as doze badaladas.
   - Seu nome? Sua profissão? - perguntou a sentinela ao primeiro que desceu do carro.
   - O senhor pode ler tudo isso no meu passaporte - respondeu o hóspede. - Eu sou eu!
   E era mesmo um homem de verdade; trajava um sobretudo de pele de urso, e calçava notas forradas de pele.
E continuou:
   - Eu sou o homem em quem muita gente deposita suas esperanças. Vá visitar-me amanhã: Quero oferecer-lhe um brinde de Ano Bom,. Ativo moedas e mais moedas para a multidão. Arranjo bailes - trinta e um bailes, bem contadinhos! Mais não posso dar: não posso gastar em bailes mais de trinta e uma noites. Meus navios estão presos no gelo, mas no meu escritório reina o conforto e há calo. Sou comerciante, chamo-me Januário, e só trago faturas no bolso.
   Nesse momento descia o segundo passageiros. Era um sujeito divertido. Empresário de espetáculos, de profissão, diretor de bailes a fantasia, e de toda a espécie de divertimentos. Sua bagagem consistia em um grande barril. E, apontando para ele, foi dizendo:
    - Deste barril, na época do carnaval, saíra o gato. Não se preocupem, eu vou diverti-los a todos, e me divertirei também. Não tenho muito tempo de vida, pois viverei menos que todos os outros da família: somente vinte e oito dias...De vez em quando dão mais um dia; mas isso nem serve de nada...Viva! Viva!
   - O senhor não pode gritar aqui! - disse a sentinela.
   - Certamente que posso! - brandou o homem. - Eu sou o rei Momo, e viajo sob o nome de Fevereiro!
  Desembarcava nesse instante o terceiro, que parecia o jejum em pessoa; mas vinha de nariz para o ar; porque era parente dos "quarenta cavalheiros". e era que predizia o tempo. Não é, contudo cargo lucrativo, e por isso mesmo ele tratava de referir-se somente à sua função na quaresma. Trazia na lapela um raminho de violetas muito pequeninas.
  -  Márcio! Márcio! Olá, Márcio! - gritava o quarto passageiro atrás dele, batendo-lhe no ombro. - Não sentes o perfume? Entra depressa no quartel! Lá estão tomando ponche, a tua bebida predileta. Até sinto o cheiro daqui! Vai ligeiro, Márcio!
   Mas isso não era verdade. O que ele queria era somente apresentar-se, pregando no outro um logro de 1 de abril. E foi assim que o quarto iniciou sua carreira na cidade. Era muito elegante, e pouco trabalhava. Em compensação, arranjava muitos feriados.
   - Quem dera que o mundo fosse mais constante! - disse ele. - Mas é assim,...A gente ora anda contente, ora mal-humorado, conforme as circunstâncias. E já chove, e já faz sol: é época de mudanças. Eu sou gato-pingado. Posso rir e chorar, conforme a necessidade. Trago na mala roupas de verão, mas seria insensatez vesti-las agora. Aos domingos passeio de sapatos brancos e meias de seda, e com as mãos metida em um regalo.
  Depois dele desceu uma mocinha. Era a senhorita Maia, de vestido de verão e galochas. O vestido era verde, cor de folha de tília. Trazia anêmonas mo cabelo, mas apesar de tudo isso cheirava tão a aspérula que o guarda deu um espirro.
  - Deus o ajude! - disse a mocinha.
   E era tão linda! era cantora, não dessas de teatro nem de variedades, mas cantora de bosque: andava  vagando pelo mato fresco e verde, cantando para si própria, para seu prazer.
  - Vai descer Dona juno! Aí vai Dona Juno! - gritaram de dentro do carro.
   E a jovem Dona Juno desceu - bela, distinta e soberba. Via-se que Dona Juno - ou Dona Junho, como lhe chamam agora- estava habituada a ser servida pelos sete dorminhocos preguiçosos. Costumava dar um grande banquete no dia mais comprido do ano, para dar tempo aos convidados de comer os numerosos pratos do cardápio. Tinha carruagem própria, mas viajava na diligência, como os outros, para mostrar que não era arrogante. Não viajava sozinha: acompanhava-a o irmão mais novo, o Júlio.
    Era esse um mocinho nutrido, trajava roupas de verão e chapéu Panamá. Não carregava consigo bagagem volumosa, porque isso é desagradável, com o muito calor. Só se preocupava, pois, com o calção de banho, o que já não é pouco.
  Foi a vez da própria mãe descer do carro: Dona Augusta, por corruptela, Agosto. Negociante de frutas por atacado, era agrônoma e também se dedicava à criação de peixes. Andava de crinolina, era gorda e corada. Auxiliava todo o trabalho com as próprias mãos, até levava a cerveja aos peões na lavoura. E costumava dizer:
   " - Tu comerás o pão amassado como suor do teu rosto - assim está escrito na Bíblia. Mas virão depois os passeios, e as danças, e as brincadeiras na relva, e as festas da colheita.
  Era uma boa dona de casa.
  Logo atrás dela desceu outro homem. Era um pintor, mestre Setembrino, perito no colorido. A floresta inteira tinha de lhe passar pelas mãos: as folhas deviam mudar de cor. Mas quando estava disposto, fazia um trabalho lindo! Em breve a mata começaria a rutilar, na cintilação de vermelho, e do amarelo, e de castanho. O mestre assobiava, como um estorninho, enquanto ia trabalhando ativamente; e enfeitava a sua caneca de cerveja com um ramo de lúpulo estanho-esverdeado. O homem gostava de ornatos. Aí vem ele descendo com toda a bagagem: a sua caixa de tintas.
  Segue-o o estancieiro, que vem pensando no mês da seara , na lavra de terra; mas também se lembra dos prazeres da caça. E traz um cão e uma espingarda, e nozes na bolsa de caça. E só se ouve craque,craque, porque ele viaja com grande bagagem: até um arado inglês carrega! E fala de agricultura; não é porem, muito ouvido, por que o vizinho vem tossindo e gemendo, que dá pena.
   É novembro, que vem assim tossindo. Está muito resfriado e assoa-se constantemente. Mas dizia ele que assim mesmo tinha de acompanhar as criadas, para lhes ensinar o serviço de inverno. Aquele resfriado passaria, quando se pusesse a rachar lenha. Cumpria-lhe serrá-la e parti-la, porque era mestre no grêmio dos lenhadores. Passava as noites cortando paus para fabricar patins; dentro de poucas semanas começaria a procura desses calçados graciosos.
  Surgiu, enfim, o último passageiro: era uma mulher, era a vovó dezembro, trazendo o seu braseirinho. A velha estava com muito frio, mas os olhos brilhavam como duas estrelas claras. Trazia um vaso de barro com um pinheirinho.
   - Vou cuidar muito desta árvore, para que esteja bem alta na noite de Natal - disse ela. Há de chegar ao teto, cheia de velas acesas, de maças douradas e de figurinhas recortadas. Então o braseirinho estará quente como uma estufa; eu tiro do bolso o livro de contos de fadas e leio em voz alta. E todas as crianças que estão na sala ficam quietinhas; mas as figurinhas da árvore ganham vida, e o anjo de cera que está lá bem no topo abre as asas de ouropel, e desce voando la do seu ninho verde para beijar todos os que estão presentes, gente grande  e gente miúda - e beija até as crianças pobrezinhas que ficaram lá fora no corredor e na rua, cantando o Hino de Natal da estrela de Belém.
   - Bem - disse então a sentinela. - O carro pode partir agora. estão aqui os doze. Vamos à baldeação!
   - Espere! - disse o oficial de plantão. - Primeiro quero que todos entrem no meu gabinete, de um em um! Vou ficar com os passaportes. Cada um vale por um mês. Decorrido este, atestarei o comportamento de cada um no passaporte. Sr. Januário, faça o obséquio de entrar...
   E o Sr. Januário entrou.
   Quando o ano se houver escoado,eu te direi o que te trouxeram os doze viajantes - e também o que me trouxeram, para mim e para todos nós, enfim. Agora ainda nada sei, e nem eles mesmos o sabem. É que vivemos em uma época tão esquisita...
FIM

quarta-feira, 21 de março de 2018

CONTOS DE ANDERSEN - UMA FOLHA DO CÉU

   Lá bem em cima, no céu, no ar mais puro, um anjo voou do jardim do paraíso com uma flor. Uma folha desprendeu-se da haste e veio sair na terra, no meio de um bosque. Logo criou raízes e começou a crescer.
   Não quiseram as outras reconhecer nela uma das suas iguais. E diziam:
   - Que broto mais esquisito!
 Quem mais a ridicularizava era o cardo e a urtiga; falavam com o maior desprezo:
   - De onde virá isso? É alguma semente de hortaliça, sem dúvida..Pois já se viu árvore alguma brotar tão depressa? E pensará ela que estamos aqui para amparar?
  Chegou o inverno; a terra cobriu-se de branco. A planta celeste comunicava à neve um brilho maravilhoso, como se um raio de sol a iluminasse interiormente. Na primavera apresentou uma flor tão linda, como nunca se vira igual.
   Fizeram uma comunicação ao professor de Botânica mais afamado do país. Deu-se ele pressa em aparecer, munido do diploma que atestava seu vasto saber. Examinou a planta, analisou-a, provou as folhas. Não se assemelhava a nenhuma planta conhecida por ele. Não encontra gênero, não achava família em que a classificar. E acabou por declarar:
   - É uma planta anômala, uma aberração da natureza: não se enquadra em nenhum sistema.
   - Isso não se enquadra em nenhum sistema! - repetiram cardos e urtigas.
   Vieram as árvores altas e corpulentas e ouviram contar o que se passava. Nada disseram, nem de bem nem de mal, que é a coisa  mais sensata que pode fazer quem ignora.
   Chegou àquele bosque uma pobre mocinha, que parecia a própria inocência: puro era o seu coração, e grande a inteligência, pela fé que a animava. A única coisa que possuía no mundo era uma Bíblia pela qual parecia que Deus lhe falava. Aprendera ali quão maus são os homens, mas sabia também que quando eles nos forçam a sofrer a injustiça, quando não nos compreendem e zombam de nós, devemos lembrar-nos do exemplo do melhor, do mais puro dos filhos de Deus, que eles pregaram à cruz e repetir as suas palavras:
   - Perdoa-lhes, Pai, que eles não sabem o que fazem! 
    A moça parou diante da planta miraculosa, cuja flor espalhava no ar um perfume agradável, e que brilhava ao Sol como um ramalhete de fogo de artifício. Quando o vento lhe agitava as folhas, ouvia-se o eco de harmonias celestes. A jovem ficou em êxtase diante daquela maravilha. Curvou-se sobre a planta, para admirá-la de mais perto, e para lhe aspirar o perfume. Sentiu o coração vivificado, o espírito esclarecido pela sabedoria divina. De boa vontade teria colhido a flor;  mas seria malfeito, e a flor murcharia. Apanhou apenas uma folhinha, que pôs entre as páginas da Bíblia; e a folha ali ficou, fresca e verde.
    Algumas semanas mais tarde a bíblia foi posta sob a cabeça da mocinha, que dormia no seu ataúde. A folha lá estava ainda. A jovem repousava no caixão tranquilamente, e no seu rosto, suave  e grave, notava-se um ar de felicidade.
     Enquanto isso a planta ia crescendo e florescia. As aves de arribação inclinava-se diante dela com respeito e os cardos e espinheiros resmungavam:
   - Olhem só esses estrangeiros! Nem sequer sabem por que prodigalizam assim suas homenagens! Não, nós cá não nos portamos tão estupidamente!
    E as feias lesmas são mato cuspiam diante da planta caída do céu.
  Um porqueiro, que andava juntando gravetos para acender o fogo, arrancou cardos, espinheiros e urtigas, e também a bela planta com toda as a s raízes, dizendo consigo:
   - Tudo isso só serve para cozinhar a minha sopa.
   Já fazia muito tempo que o rei daquele país sofria de uma melancolia atroz, que nada conseguia dissipar. Para se distrair, resolveu tomar conhecimentos dos problemas do seu povo, através da literatura. Ouviu a leitura de todas as obras nacionais, boas e más, profundos e leves, e não obteve resultado algum. Buscaram recurso na sabedoria do homem mais sábio do universo. Respondeu ele que havia um meio de curar o rei: era fazer com que sua majestade apanhasse uma folha de flor celeste que se achava em um bosque do seu reino. E dava a descrição da planta. Reconheceu então aquele espécime que despertara tanta curiosidade. - Com a breca! E eu que a arranquei! - disse consigo o porcariço. - Há tempo que há não resta dela senão um punhado de cinza...Ora vejam o que é a ignorância!
   Ficou muito confuso com o seu procedimento inconsiderado, mas guardou-se bem de ir contar o que acontecera, afinal...ainda fazia muito em se envergonhar; tinham os sábios revelado mais conhecimento do que ele?
    Sumira-se a planta. Não restara dela mais que uma única folha, no túmulo de uma mocinha. Mas ninguém o sabia.
   O rei foi em pessoa ao mato para verificar por seus próprios olhos a desaparição da planta.
   - Era então aqui que ela estava! - exclamou ele. - Será este doravante um lugar santo.
   Mandou cercar o sítio com uma grade de ouro e ali foram postadas sentinelas para o guardar.
  O famoso professor de Botânica escreveu uma longa dissertação, empanturrada de ciência, sobre as qualidades da planta divina; demostrou tudo o que se perdera, com o  eu desaparecimento. O rei cobriu de ouro cada página da obra  - e foi o asno do autor quem mais ganhou no caso.
   E as pobres sentinelas se aborreciam de morte lá no mato.
FIM