sexta-feira, 21 de julho de 2017

A OBRA-PRIMA - CONTOS DE ANDDERSEN

 No ar rosado da alvorada brilha uma grande estrela, a mais clara da madrugada. Tremulam seus raios sobre a parede branca, como se quisessem escrever ali o que ela pode contar - o que observou durante milênios no nosso globo sempre em movimento.
   Queres ouvir uma de suas histórias?
 Há pouco tempo - nota que esse "pouco tempo" da estrela significa "séculos " para nós - há pouco tempo meus raios acompanhavam um moço artista. Era na cidade dos Papas, na metrópole romana.
   Naquele tempo, como ainda hoje, o castelo imperial era uma ruína. Entre as colunas de mármore derribadas vicejavam figueiras e loureiros, que estendiam sua folhagem sobre as termas destruídas, em cujas paredes ainda hoje se vê o ouro dos ornatos. Também o Coliseu era apenas uma ruína. Repicavam os sinos das igrejas, o incenso exalava seu aroma, procissões passavam pelas ruas, com seus círios acesos, seus esplêndidos baldaquins. Reinava ali a santidade da igreja, e a arte era sublime e sagrada.
   Era em Roma que vivia o maior pintor do mundo, Rafael; era lá que vivia o maior escultor da época, Miguel Ângelo. O próprio Papa rendia homenagem aos dois artistas, honrando-os com a sua visita. A arte era reconhecida, venerada, e também recompensada. E, mesmo assim, nem tudo o que era grande e tinha valor chegava a ser conhecido.
  Numa estreita viela, em uma casa velha, que fora outrora um templo, morava um jovem artista, pobre e desconhecido. Tinha, é certo, amigos, moços como ele, como ele artistas, jovens nos ideais e nas esperanças. Diziam-lhe todos eles que tinha talento, e grande capacidade: mas que era um tolo porque não acreditava no próprio valor. Era um tolo, porque destruía as obras que formava no barro, sem nunca se dar por satisfeito, sem jamais terminar nenhuma delas. E, diziam, era aquilo um erro porque uma obra deve ser vista, apreciada - e paga.
   - Não passas de um sonhador - diziam - e é nisso que está o teu mal: ainda não viveste, não viveste a vida como deve ser vivida. E é justamente na juventude que o Eu deve confundir-se com a vida para que forme um todo uno. Olha o grande mestre, Rafael, a quem o Papa honra e o mundo admira: Rafael não despreza o pão, nem o vinho!
   Quanta coisa não diziam eles! Cada um aquilo que a idade e a imaginação lhe ditavam.
   Queriam convencer o moço artista de que devia acompanhá-los, divertindo-se mais e trabalhando e sonhando menos. E o caso é que ele as vezes se sentia meio seduzido. Tinha uma imaginação robusta, e sabia partilhar também de uma palestra alegre, rir de boa vontade com os companheiros.
    Mas aquilo a que eles chamavam" a vida divertida de Rafael" dissipava-se-lhe do espírito como orvalho da madrugada, quando via o esplendor divino que irradiava dos quadros do grande mestre.
  E no Vaticano, quando se achava diante das estátuas de beleza que há milênios os mestres arrancaram do seio dos blocos de mármore, sentia o peito intumescer-se; e no íntimo do seu ser ouvia alguma coisa elevada, santa, sublime, verdadeiramente boa. Então sentia também o desejo de transformar o bloco de mármore em figuras semelhantes; queria criar a imagem daquilo que se elevava do seu coração, em busca do infinito. Mas...como? E que aspecto lhe daria? O barro dúctil ia-se plasmando ao contato dos seus dedos em belas formas; no dia seguinte, porém, o artista despedaçava, como sempre, o que acabara de criar.
    Um dia, passou por um daqueles ricos palácios que abundam em Roma. Parou diante da ampla entrada. Viu arcadas, ornadas de pinturas, cercando um jardinzinho, em que floresciam as mais lindas rosas, da bacia de mármore, onde murmurava a água límpida, brotavam grandes copos-de-leita, entre as folhas viçosas e verdes. De repente passou um vulto; uma mocinha esbelta, maravilhosamente bela, e tão leve, que antes parecia adejar do que andar. Era a filha daquela casa principesca.
    O artista jamais tinha visto aquela figura de mulher; e no entanto reconheceu-a: pintara-a Rafael, na figura de Psique, num dos palácios romanos. Sim! lá figurava a sua imagem; ela, porém, estava ali, cheia de vida!
    Era aquela que vivia no seu pensamento, no seu coração.
   O artista voltou ao seu humilde cubículo e plasmou a Psique em barro. E surgiu dele a nobre donzela que vira.
   Pela primeira vez olhou satisfeito uma obra de suas mãos. Aquela obra significava muita coisa para o artista: era ela! E quando seus amigos a viram exultaram de contentamento, e disseram que era a manifestação do valor do artista, valor que eles já tinham reconhecido, e que agora seria reconhecido também pelo mundo.
    Mas, diziam também eles, embora aquele barro tivesse vida, representasse a carne, não possuía a brancura e a durabilidade do mármore. Era preciso agora que a Psique adquirisse a vida no mármore, e o artista já dispunha de um bloco precioso que jazia no pátio já anos desde o tempo de seus pais. Estava coberto de cacos de vidro, ervas daninhas, talos de verduras, que lhe iam corroendo a superfície; no interior, porém, aquele bloco tinha a alvura das geleiras, e desse mármore devia surgir a Psique.
     Ora, sucedeu um dia - não que a estrela clara o contasse: ela nada disse do caso, mas nós sabemos como se passou - sucedeu um dia que um grupo de nobres romanos se apresentou naquela pobre ruela estreita. Parou a carruagem à embocadura da viela e os passageiros foram a pé até a casa do jovem artista, para examinar o seu trabalho, pois tinham ouvido falar nele.
   E - pobre do artista! Pobre? Não: Feliz, feliz jovem! Lá estava a nobre donzela. E que sorriso lhe abriu os lábios, quando o pai disse:
   - Mas é tu! És tu, em carne e osso!
  O sorriso não pode ser plasmado, o olhar - o maravilhoso olhar que ela fitou no jovem artista - esse olhar não pode ser fixado. Era um olhar que elevava a alma enobrecia-a...e esmagava-a, ao mesmo tempo.
    - Esta Psique deve ser executada em mármore - disse o opulento aristocrata.
   E essas palavras, que deviam animar o barro morto e o mármore pesado, foram palavras de vida para o moço. E o homem rico continuou:
   - Comprarei o obra, quando estiver terminada.
   Foi como se uma nova era tivesse surgido naquela oficina. A vida e a alegria, irradiavam ali, enquanto o artista trabalhava, num esforço febril. E a brilhante estrela-dalva via o trabalho progredir. O próprio barro parecia animado, desde que ela lá entrara; reproduziu-lhe, sublimada, a beleza das feições. E o artista exclamava, exultante:
   - Agora sim, sei o que é viver! Viver é amar! É o abandono sublime de uma união encantadora com a beleza...O que meus colegas chamam vida é coisa efêmera, bolhas da matéria em fermentação: não é, não poderá ser jamais o puro, o celestial vinho do altar que nos consagra para a vida.
    Foi posto de pé o bloco de mármore. O cinzel arrancou-lhe grandes lascas. Foi medido; marcas e sinais se cruzaram nele; a mão do  artificie desbastou-o, até que, aos poucos, a pedra se foi transformando em um corpo, em um vulto formoso de Nossa Senhora. A pedra pesada tornou-se leve, graciosa, aérea - uma esbelta Psique, com um sorriso de inocência celestial a brincar-lhe nos lábios, tal como se gravara no coração do jovem escultor.
   A rosada estrela da manhã via e entendia perfeitamente o que se agitava no íntimo do moço artista; sabia de luz que  lhe brotava dos olhos, quando estava trabalhando - quando dava forma à inspiração que recebera de Deus.
   E os amigos, encantados, diziam-lhe:
   - Tu és um mestre! Um mestre, como o forma os antigos artistas gregos. Dentro em breve o mundo inteiro há de admirar a tua Psique!
   - A minha Psique! Minha! ...Sim: ela deve ser minha. Sou um artista, como os grandes artistas do passado. Dando-me este dom milagroso, elevou-me Deus à altura da donzela nobre.
   Ajoelhando, chorando, cheio de reconhecimento, orava a Deus; e depois tornava a esquecer-se do Criador por causa da moça, por causa da sua imagem de mármore, daquela Psique que se erguia, como se fosse plasmada na neve, corada pela luz da alvorada.
   Mas ia enfim vê-la; ia vê-la na realidade cheia de vida e de graça; ia ver aquela cujas palavras soavam aos seus ouvidos como uma música. Podia finalmente ir levar ao luxuoso palácio a notícia de que estava terminada a Psique de mármore.
  Entrou. Atravessou o pátio descoberto; e água, murmurando, jorrava da boca dos golfinhos para a bacia de mármore; onde os copos-de-leite estavam em for, e rosas frescas desabrochavam, exuberantes. Pisou no amplo vestíbulo, cujas paredes e teto ostentavam escudos e quadros. Criados cheios de ornamentos, arrogantes e afetados, iam e vinham; outros, ociosos e altivos, espreguiçavam-se nos bancos de madeira esculpida, como donos da casa.
   Explicou-lhes o artista o motivo da visita e foi convidado a subir a escada de mármore polido, coberta de tapetes macios e flanqueada de estátuas. Atravessaram salas pavimentadas de moisaicos esplêndidos, e que guardava ricas telas. A princípio, sentiu-se oprimido diante de tanta pompa, de tanto esplendor; mas passou-lhe logo o assombro.
    O acolhimento que lhe dispensou o velho príncipe foi não somente amável, senão que manifestamente cordial; e, ao despedir-se dele, pediu-lhe que entrasse no gabinete da signora, que teria também prazer em vê-lo. Conduziu-o o criado por suntuosas salas até aquelas em que a própria dona representava o esplendor e a magnificência.
   E a moça falou-lhe. Nenhum misere, nenhum coral teria o poder de lhe comover assim o coração, de lhe elevar alma, como aquela voz! O artista tomou-lhe a mão e apetou-a nos lábios: não é mais macia uma rosa delicada, e contudo, daquela rosa saíam chamas!
   Foi sublime a sensação que teve. E brotaram-lhe as palavras da boca...Que palavras? Nem ele próprio o sabia. Sabe acaso a cratera que vomita lavas em brasa? Confessou-lhe o seu amor eis o que disse.
   Plasmada, ofendida, ali estava ela, com ar escarninho e arrogante, olhando para o artista. Pela expressão do rosto, dir-se-ia que tinha tocado, de inopino, em um sapo frio e viscoso. Corou, mas os lábios ficaram brancos. E aqueles olhos, negros como a treva da noite, despediam chamas.
     - Estás louco? - brandou a moça. - Fora daqui! Some-te, some-te daqui!
   E voltou-lhe as costas.
   O rosto da bela moça apresentava agora a expressão daquela máscara petrificada e coroada de serpentes - a Medusa.
   Descendo a escadaria a cambalear, como se fosse uma massa inerte, inanimada, o artista atravessou as ruas e assim chegou à sua morada. Somente lá despertou, tomando de dor e de fúria. pegou em um martelo e brandiu-o no ar, na intenção de despedaçar a bela imagem de mármore. Nem sequer notara que estava ao seu lado o   seu amigo Ângelo, que lhe segurou firmemente o braço.
   - Louco! Que ias fazer?
   Lutaram, mas Ângelo era mais vigoroso; arfando de fadiga, o jovem artista atirou-se sobre uma cadeira.
   - Que aconteceu? Acama-te e fala, afinal!
   Mas que poderia ele dizer? Que tinha para contar? Compreendeu que Ângelo não poderia destrinçar a meada intrincada do seu caso; resolveu pois nada dizer. Mas o outro continuou:
   - São os teus eternos devaneios, bem sei: eles é que te fazem perder a cabeça!
   E de novo procurou desviar o amigo, agora desesperado, para a sua maneira de levar a vida - uma vida cheia de alegrias e sem preocupações. E tanto insistiu que conseguiu tirá-lo de casa.

   De novo se achava o artista no seu quarto. Sentado em uma cadeira, procurava concentrar-se. De repente ouviu, saídas da própria boca, estas palavras:
   - Miserável! Fora daqui! Some-te daqui!
   E um suspiro, profundo e dolorido, escapou-lhe do peito.
  "Fora! Some-te daqui"! Aquelas palavras, que ela a Psique, a Psique viva, lhe dissera, ecoavam-lhe no coração, ressoavam-lhe nos  lábios. Afundou a cabeça no travesseiro; pouco a pouco foram-se-lhe enevoando as ideias, e por fim adormeceu.
   Acordou de madrugada, sobressaltado. Procurou mais uma vez concentrara as ideias. Que lhe acontecera? Sonhara tudo aquilo? Ou estivera mesmo no palácio do nobre?
   Não! Era tudo realidade, realidade!
   No ar rosado da madrugada tremia a clara estrela, iluminado-o, a ele e à Psique de mármore. O artista estremeceu ao dar com a imagem da beleza eterna. Já não queira contemplá-la: lançou um pano sobre a estátua. Depois tentou retirá-lo, para descobri-la de novo, mas sentiu-se incapaz de olhar para a própria obra.
   E durante o dia permaneceu taciturno, sombrio de tudo alheado, sem se aperceber de nada do que se passava ao redor si.
  Ninguém, entretanto, sabia o que se passava dentro daquele peito humano!
   Correram os dias e a semanas. As noites pareciam-lhe intermináveis. Uma manhã viu a estrela cintilante o artista, pálido, agitado pelos calafrios da febre, aproximar-se da imagem de mármore, afastar o pano que a cobria e deitar-lhe um demorado, um doloroso olhar. Depois, mal podendo com aquele peso, arrastou a estátua para o jardim.
     Havia lá um poço, então seco, do qual apenas restava a cova.
   Lançou nessa cova a Psique. Depois deitou terra sobre a estátua, cobrindo enfim tudo com galhos e urtigas.
   - Fora! Fora!...somete-te!
    Foi o breve necrólogo que concedeu à sua obra.
   No ar rosado da manhã a estrela via tudo. Seus raios refletiam-se, trêmulos, em duas lágrimas, duas grandes lágrimas que deslizavam pelas faces exangues(sem forças) do moço artista, agitado pela febre, mortalmente enfermo. Pelo menos assim disseram, quando ele entrou no hospital.
   Foi visitá-lo, como amigo e como médico, o monge Inácio, que lhe levava o consolo da religião, falando-lhes da paz e da beatitude da Igreja, falando-lhe do pecado dos homens, e da misericórdia e da paz de Deus.
   - Essas palavras caíram como quentes raios de sol sobre um solo em fermentação. Por entre o nevoeiro, o vapor que se erguia do chão brotavam quandros imaginários, imagens que tinham um fundo de realidade. Foi dali, dessas ilhas flutuantes, que ele lançou um olhar sobre a vida humana. Descobriu nela erros e ilusões, tal e qual como se dera consigo.
   É que a Arte é uma bruxa, que nos arrasta para a vaidade, para os desejos terrenos. Somos então falsos - falsos para com nós mesmos, para com os amigos, para com Deus. É a serpente, que está sempre a nos dizer:
   - Come, e serás igual a Deus!
   Só então lhe pareceu que se compreendia a si próprio, que encontrara enfim, o caminho que conduz à verdade e à paz. Sim, é na Igreja que estão a luz e a claridade de Deus; na cela monacal e que existe a quietação, que permite à arvore da vida humana crescer para a eternidade.
   O irmão Inácio fortaleceu-lhe a alma, e firmou-se nele a decisão. E o homem do mundo tornou-se servidor da Igreja; o jovem artista renunciou ao mundo e entrou para o convento.
   Acolheram-no os Irmãos carinhosamente; o sacramento da Ordem foi-lhe conferido em um belo ofício divino de domingo. Parecia-lhe que Deus estava presente, no brilho do sol que se refletia nele, nas santas imagens e na cruz rutilante.
   E quando, ao pôr-do-sol, se achou na sua cela estreita, abriu a janela e lançou um olhar sobre a velha Roma: viu os templos destruídos, o Coliseu, imenso, mas inanimado, e tudo aquilo trajando as roupagens da primavera - as acácias em flor, as sempre-vivas frescas, as rosas brotando por toda a parte; limoeiros e laranjeiras em pompa, palmeiras abrindo os leques...Sentiu-se comovido; sentiu que sua alma se elevava, como jamais o sentira. Aberta e tranquila, estendia-se a campanha até as montanhas azuis, cobertas de neve, e que pareciam pintadas no espaço. Tudo se confundia, tudo respirava paz e beleza, e flutuava, desvanecendo-se - tudo era sonho!
   Sim, naquele lugar o mundo era mesmo um sonho; e esse sonho dura horas, e pode tornar a voltar, horas depois. Mas a vida no convento é uma vida de anos - longos e numerosos anos.
    Mas ele se sentia entregue à misericórdia, por ela elevado; pois então não tinha lançado para longe de si a vaidade deste mundo? Não era um filho da Igreja?
   E os pensamentos, que o assaltavam em um turbilhão, eram como uma bola de neve que rolava, crescia, esmagava-o, apagava-o.
    Mas a força divina que nele vivia não deixava de lutar e de padecer.
   E ele pensava no dom maravilhoso que de Deus recebera, e que deitara fora, deixando inacabada a sua missão. Porque lhe faltara a força necessária para levá-la a termo. E a imortalidade, a Psique que vivia no seu  peito devia ser sepultada, com aquela outra Psique, o melhor raio de luz da sua vida, que jamais havia de ressurgir do seu túmulo!
    A estrela cintilava no ar rosado, a estrela, que há de se extinguir, que há de parecer, enquanto a alma há de viver e brilhar eternamente. Seus raios trêmulos caíram sobre a parede caiada, mas eles não escreveram ali nada que falasse da magnificência de Deus, nem da sua misericórdia, nem do amor universal, que canta no peito dos crentes.
   - A Psique que vive dentro de mim não morrerá nunca! Pode acontecer o inconcebível. Inconcebível sois Vós, ó Senhor! Todo o Vosso mundo é inconcebível: uma obra miraculosa de poder, de grandeza, de amor!
   Brilhavam os olhos do monge...
   E vidraram-se-lhe os olhos.
   Os sinos da igreja repicavam acima da sua cela, e foi este, o último som que ouviu. Está morto.
   Sepultaram-no em terra trazida de Jerusalém, misturado com os restos de piedosos defuntos.

Século depois continuava a estrela clara a luzir, imutável, cintilante, como luzia há milênios. O ar fulgia fresco como as rosas, purpurino como o sangue.
   Lá, onde outrora serpeava uma estreita ruela, e se viam os restos de um templo, esguia-se agora um convento de freiras. Abria-se no jardim do convento uma sepultura para uma jovem religiosa, quando a pá bateu em uma pedra, de alvura ofuscante. Era mármore. E ia apresentando uma forma arredondada; um ombro ia surgindo da terra. Cavando agora com mais cuidado, descobriram uma cabeça feminina, depois umas asas de borboleta. Aberta a cova, em que pretendiam sepultar a jovem freira, revelou-se à luz deslumbrante da manhã uma esplêndida estátua de Psique, esculpida em mármore branco.
  - Que bela e que perfeita! Uma obra de arte, da melhor época! diziam todos.
   Quem seria o seu autor? Ninguém o sabia. Ninguém, a nãos ser a brilhante estrela que fulgurava há séculos e séculos. Essa sim, sabia a história do artista, conhecia-lhe a vida toda, as provações e as fraquezas. E sabia que fora apenas um ser humano.
  Mas ele morreu e se desfizera em pó. O resultado do seu melhor esforço, porém, o que houvera nele de mais grandioso para dar testemunho da centelha divina que seu ser ocultava - esse ficou e foi visto, reconhecido, admirado e transmitido aqui na terra.
   A brilhante estrela-dalva, no ar rosado, iluminou com seus raios cintilantes a estátua, e também os lábios e os olhos dos admiradores, que sorriam contemplativos, ao ver esculpida em um bloco de mármore - uma alma.
















Titarc Amigos, esta é mais um conto longo, preciso de tempo para digitar. lembra da minha paixão pelos meus livros, para glorifica-los estou digitando letra por letra , lendo e relendo, para resgatar o tempo que não os li,.
É um trabalho com sentimento, gosto muito de copiar os contos no meu blog, para eternizá-los.


 

terça-feira, 18 de julho de 2017

A tradição oral gerou os Contos as fábulas os apólogos as parábolas, lendas e os mitos.



os textos de tradição oral são histórias contadas em voz alta por um narrador a um grupo de ouvintes. Essa é uma tradição que data da Pré-História. Até hoje, nas tribos primitivas da África, da Austrália ou mesmo do Brasil, escutar um narrador contando histórias ainda é um costume comum.... A importância social da narrativa oral, cujas finalidades variam de acordo com as circunstâncias, gerou muitas maneiras de contar uma história. Isso criou vários gêneros de narrativas como o conto (popular, maravilhoso, de fadas),... -as fábulas, os apólogos, as parábolas, as lendas e os mitos.... - Por meio dessa diversidade de narrativas, entra-se em contato com ideias que já fazem parte do patrimônio cultural da humanidade. O advento da escrita ajudou a preservar as narrativas da tradição oral, desde as mais remotas, como ... as do Antigo Egito e da Mesopotâmia, até as mais recentes, como os contos de fadas. A importância de conhecer essa literatura é ampliar o nosso conhecimento de mundo e da história do homem. Abrir horizontes para o universo cultural da humanidade é um forma de crescer tanto pessoal quanto profissionalmente. Mas, além de conhecimentos, essas histórias - em especial por sua engenhosidade - também entretêm e proporcionam diversão.... 

Contos infantis
Alguns dos mais importantes pesquisadores dos contos da tradição oral universal foram o francês Charles Perrault (1628-1703), que recolheu várias histórias ainda muito conhecidas, como "Cinderela" e "O Pequeno Polegar", entre outras.Os alemães Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), que ficaram conhecidos como os Irmãos Grimm, dedicaram grande parte de suas vidas a recolher histórias contadas oralmente por pessoas comuns.
Além de escreverem as histórias, os dois estudiosos também registravam o modo como eram faladas, isto é, a linguagem popular de seu país. Finalmente, pode-se citar o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) que registrou muitas estórias da tradição oral de seu país. Seus contos, como "A Menina dos Fósforos" ou "A Pequena Sereia" também continuam a fazer sucesso ainda nos dias de hoje. No Brasil, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) foi um dos mais importantes pesquisadores da nossa cultura popular brasileira. Autor do "Dicionário do Folclore Brasileiro" registrou diversas narrativas populares, imortalizando personagens como o Saci, a Mula-sem-cabeça e o Curupira.

Histórias que o povo conta O adjetivo "popular" significa, segundo o dicionário Houaiss, "relativo ou pertencente ao povo, especialmente à gente comum ". O conto popular, portanto, é uma narrativa de tradição oral que não possui um autor específico, é anônimo, criado em local e época ignorados, e passado através de gerações Por ser constantemente recontado, sofre modificações ao longo do tempo. É comum nessas narrativas a criação de personagens típicos da região na qual a história se originou. É um dos mais antigos gêneros da tradição oral, uma manifestação cultural que surge de modo espontâneo e não tem um compromisso com a cultura formal. O conto popular possui uma riqueza expressiva e imagética e tende a ser universal, isto é, possui simbolismo e uma estrutura narrativa que é facilmente reconhecida e admirada pela maioria das pessoas, sejam adultas ou crianças, pessoas alfabetizadas ou não-alfabetizadas, gente instruída ou pessoas sem acesso à cultura formal, isto é, à escola. Apesar de nascer do imaginário do homem simples e não ter uma vinculação com regras e normas, o conto popular possui particularidades em sua forma de composição. Por exemplo, em geral, os personagens são pessoas simples que, após muitas aventuras,conseguem vencer na vida, por assim dizer. Nestes contos, em geral apresentam-se muitos enigmas e desafios que exigem dos personagens inteligência e esperteza.   É fantástico "Maravilhoso" é algo que sobrenatural, que nos surpreende e encanta e fascina. O conto maravilhoso é aquele que procura tornar concretas e verossímeis histórias cujo caráter derivam para o devaneio e a fantasia. Nestas narrativas, que se passam num tempo que não é real nem especificamente determinado, tudo pode acontecer. Os espaços onde elas ocorrem, em geral, são misteriosos e sombrios, como grutas e florestas. Os personagens principais passam por conflitos e são auxiliados por seres sobrenaturais, com poderes  e capacidades extraordinárias. Esses seres imaginários muitas vezes surgiram dos "Bestiários", livros da Idade Média que reuniam descrições e histórias de animais reais ou fantásticos. O grande escritor argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) fez um bestiário moderno e reuniu muitos seres fantásticos de diversos países. Veja, por exemplo, no breve trecho que segue, a descrição de um dragão chinês:

 Dragão chinês [...] O Dragão Chinês, o lung, é um dos quatro animais mágicos. No melhor dos casos, o dragão ocidental é aterrorizante, e no pior, ridículo; o lung das tradições chinesas, ao contrário, tem divindade e é como um anjo que fosse também um leão.. 

Contos de fada
 Vimos que nos contos maravilhosos a característica principal são as situações sobrenaturais e a presença de seres e objetos mágicos e encantados. Transformações, metamorfoses e ações extraordinárias de um modo geral podem acontecer a qualquer momento da história. Há também um tipo de narrativa maravilhosa nas quais as transformações, em geral, são particularidades de determinados seres encantados, dotados de grandes poderes mágicos. Trata-se dos contos de fadas. As histórias desses contos, em geral, possuem personagens como príncipes, princesas, camponeses, entre outros, que são auxiliados pelas fadas, ou seus similares do sexo masculino, os magos, gênios etc. 

A palavra fada vem do latim fatum que significa destino. Estes seres encantados orientam ou modificam o destino das pessoas. Por serem muito generosos e terem poderes sobrenaturais, eles surgem na "vida" dos personagens nos momentos de grandes dificuldades, quando parece que é impossível superar os conflitos. Nos contos de fadas, como em muitas narrativas literárias, existem episódios ou situações de equilíbrio e desequilíbrio que vão se modificando, de acordo com os acontecimentos que provocam a passagem de um estado para outro. O que prende a atenção do leitor são estas situações de conflitos e as soluções que vão acontecendo durante a narrativa.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

DAQUI A MILÊNIOS - CONTOS DE ANDERSEN Volume 5

Sim! Daqui a milênios, havemos de atravessar o oceano nas asas do vapor, viajando pelos ares. Os jovens habitantes da América visitarão a velha Europa. Farão a viagem por causa dos monumentos e das cidades que, a essa época, estarão já em ruínas - tal qual como nós peregrinamos hoje em busca da           magnificência caduca da Ásia Meridional.
   Sim!  Daqui a milênios eles hão de vir.
   O Tâmisa, o Danúbio, o Reno continuam a rolar as suas ondas. O Monte Branco ainda ergue nas alturas o seu cume coberto de neve. A Aurora boreal resplandece ainda sobre as terras do Norte. Mas gerações se transformaram em pó, uma após outra; séries inteiras de homens, poderosos na sua época, jazem esquecidas...esquecidas como aqueles que dormem no seio da colina sobre a qual o abastado mercador, seu proprietário, senta-se hoje, para olhar a ondulação dos trigais.
   - Vamos à Europa! - gritarão os jovens filhos da América.             - Vamos ver a terra de nossos antepassados, a terra esplêndida dos monumentos e da imaginação! Vamos à Europa!
   Chega a aeronave, repleta de passageiros; a viagem é assim mais rápida do que por mar. Já o frio eletromagnético, que passa por baixo do oceano, anunciou o número de membros da caravana aérea. Já a Europa está à vista. É a costa da Irlanda. Mas os passageiros ainda dormem. Desejam ser acordados somente quando estiverem voando sobre a Inglaterra. Lá, pisarão o solo da Europa na terra de Shakespeare, dizem os intelectuais; no país da política, ou no das máquinas, afirmam outros.
   Ficarão ali um dia inteiro: é o tempo que aquela raça pressurosa pode despender em uma visita à grande Inglaterra e à Escócia.
  E a viagem continua, através do Canal da mancha, em direção à França, a terra de Carlos Magno e de Napoleão. Ouve-se pronunciar o nome de Molière. Falam os sábios em uma escola clássica, da antiguidade remota. Há grande júbilo. Ouvem-se vivas aos heróis, aos poetas e cientistas que aquela idade não conheceu, e que, segundo a tradição, nasceram na cratera da Europa - Paris.
   Voa a aeronave a vapor sobre o país de onde partiu Colombo, onde nasceu Cortés, onde Calderon criou dramas de versos sonoros. Ainda vivem nos vales floridos mulheres encantadoras; e as canções mais antigas falam de Cid e de Alambra.
   Sempre pelos ares, atravessamos o mar em busca da Itália, do lugar onde existiu a velha e e eterna Roma. Roma desapareceu. A campanha é hoje deserta. Da Igreja de São Pedro o que se vê é somente uma ruína solitária, de cuja autenticidade há quem duvide.
   Vamos à Grécia; dormiremos uma noite no hotel elegante, construído no cimo do Monte Olimpo - assim poderemos dizer que estivemos lá. E a viagem prossegue, agora, em direção ao Bósforo; aí repousaremos algumas horas, e veremos o sítio onde existiu Bizâncio. No lugar em que, segundo a lenda, se erguiam os jardins do harém turco, pescadores estendem suas redes.
  Voarão os viajantes sobre os restos de cidades outrora importantes, no caudaloso Danúbio - cidades que o nossa época hoje  ignora, porque ainda não existem. Mas aqui e ali, nos lugares onde há abundância de monumentos, uns que nascem agora, outros que ainda estão por vir aqui e ali, a caravana aérea pousa, para logo tornar a se elevar nos ares.
      Lá está a Alemanha, outrora envolta em densíssima rede de canais e vias férreas.
     Eis a terra onde pregou Lutero, onde Goethe cantou, onde Mozart empunhou o cetro dos sons! Grandes nomes, espalhando brilho nas artes e nas ciências, são citados - mas nós os ignoramos. Um dia de estada na Alemanha, e mais outro no Norte, na terra de Oersted e de Lineu, e na Noruega, país dos antigos heróis e dos jovens normandos.
   No regresso visitarão a Islândia. Já lá não existe o gêiser; apagou-se o Hecla: mas a ilha, como a eterna tábua petrificada da saga, continua a enraizar seus penedos no mar.
   - Há muita coisa para se ver na Europa - declara o jovem americano. - E vimos tudo em oito dias. Não é tão difícil, quando se observam os preceitos do grande viajante, o Sr...- cita aqui o nome de um dos contemporâneos dessa época futura - na sua famosa obra: A Europa inteira, vista em oito dias..
FIM

quinta-feira, 13 de julho de 2017

O PACTO DE AMIZADE - CONTOS DE ANDERSEN

   Mal acabamos de fazer uma pequena viagem, e já pensamos em efetuar outra, maior. Mas onde iremos? A Esparta, a Micenas, a Delfos! Há centenas de lugares, cujos nomes nos fazem arfar o coração, no desejo de viajar. Escalamos trilhas escarpadas, por entre brenhas e matagais. Nesses lugares, um único viajante parece uma caravana inteira. Ele vai à frente, seguido do agojat. Uma besta de carga leva as malas, a barraca e as provisões. Mais atrás alguns guarda-civis, que formam a escolta de proteção.
   Ao fim da jornada fatigante não encontra o viajante nenhuma estalagem, com uma cama macia à sua espera. Na maioria dos casos. O agojat prepara o jantar - um prato de arroz com galinha, temperado com curry e a que chama pilau. Ao redor  da barraca, dançam milhares de mosquitos, de sorte que a noite é desagradável.
    Amanhã teremos de atravessar rios que as chuva engrossaram...Se a gente não se firma na sela, pode até ser  arrastada pela correnteza.
   Procurei mostrar, em diversos esboços, um quadro que represente Atenas e seus arredores. Mas pobre de mim! Que mesquinho é o seu colorido! Como esse quadro mostra mal a Grécia - esse gênio enlutado da beleza, cuja grandeza e cuja dor o forasteiro jamais esquece!
  Talvez aquele pastor solitário que lá está naquele penhasco, com uma simples narrativa da sua vida, possa abrir melhor os olhos a quem quiser ver, em rápidos traços, o país dos helenos.
   - Deixa-o, pois, falar! - diz a minha Musa.
   Vá lá que seja! Um belo e característico costume pode fornecer ao pastor do alto do monte, assunto para o seu conto.

    " O PACTO DE AMIZADE

    " A nossa casa era toda rebocada de barro, mas os umbrais foram construídos de cubos de mármore, das colunas encontradas naquele lugar. O beiral do teto vinha dar quase no chão. Apresentava agora uma cor parda e feia, mas quando a casa foi coberta, via-se que eram ramos frescos de eloendro e de loureuro, colhidos além das montanhas. Pouco era o espaço que ficava ao redor da habitação: erguiam-se junto dela as paredes íngremes, escuras e nuas dos montes, em cujos cimos se viam quase constantemente pairar nuvens semelhantes a vultos esbranquiçados e viventes.
   " Jamais ouvi ali o canto de um passarinho; jamais vi os homens daquela região dançando ao som da gaita de foles; mas o lugar era sagrado, desde os tempos antigos. Até o nome o indica: chamaram-no Delfos.
   " Os graves montes tenebrosos estavam cobertos de neve. O mais alto, aquele que por mais tempo refletia as cintilações vermelhas do sol poente, era o Parnaso. O ribeiro que passava perto de nossa casa, e que também em tempos idos fora sagrado, descia vertiginosamente do seu flanco: turva-o burro com as patas, mas em breve a água torna à limpidez anterior.
   " Como me lembro de cada recanto da sua profunda e sagrada solidão! Acendia-se uma fogueira no meio da cabana, e quando a lenha estava reduzida a brasas, em um montão, cozia-se nelas o pão. E minha mãe parecia mais alegre do que nunca quando via a neve amontoar-se em redor da cabana. Tomava-me então a cabeça entre as mãos, beijava-me na testa e cantavam cantava aquelas canções que não cantava nunca, porque os turcos - nossos senhores - não as toleravam. E ela cantava:

   " No cimo do Olimpo, no bosque de pinheiros anões, havia um velho cervo.
    " Seus olhos estava arrasados de lágrima. Chorava lágrimas vermelhas, verdes, ou de um azul desmaiado. Passou por ele um veado novo:
    " - Por que choras tanto? Por que choras lágrimas vermelhas, verdes, e até de um azul desmaiado?
   " - É que o turco entrou na nossa cidade, e trouxe cães selvagens, uma grande matilha de cães de caça!
   " - Vou persegui-los por essas ilhas - disse o veado novo. - Vou persegui-los por essas ilhas, e pelo mar a dentro, pelo mar profundo!
    " Mas antes de chegar a tarde, o veado estava morto; e antes de cair a noite, o cervo fora perseguido e degolado!

  "E enquanto minha mãe cantava assim, seus olhos se umedeciam, e uma lágrima lhe tremia nos longos cílios. Mas minha mãe a ocultava, e ocupava-se em cozer nas brasas o nosso pão preto.
    " Eu então cerrava o punho e dizia:
   " - Vamos matar os turcos!
   " Mas minha mãe  repetia o estribilho da canção

    "- Vou persegui-los por essas ilhas, e pelo mar a dentro, pelo mar profundo!
     " Mas antes de chegar a tarde, o veado estava morto; e antes de cair a noite, o cervo fora perseguido e degolado.

   " Passamos muitos dias e muitas noites sozinhos na nossa cabana; mas afinal meu pai chegou. E eu tinha certeza de que me trazia conchas do Golfo de Lepanto, ou quem sabe até se um canivetinho, bem lustroso e afiado! Mas daquela vez trouxera uma criança, uma meninazinha nua, que escondera sob o casaco de pele de ovelha. Estava também envolta em uma pele, e, uma vez retirada de dentro da pele, e deitadinha no colo da minha mãe, tudo quanto possuía era três moedas de prata, amarradas nos cabelos pretos.
   "O pai contou-nos que os turcos tinham trucidado os pais da menina; contou tantas coisas, que sonhei com elas a noite inteira.
    Também ele fora ferido, e a mãe pensou-lhe o ferimento, que era profundo; o sangue secara sobre o espesso casaco de pele de ovelha, endurecido-o.
    " A meninazinha ia ser agora minha irmã. E que beleza radiante, a dela! Não eram mais meigos, os olhos de minha mãe! Sim, Anastácia seria minha irmã. Nossos pais tinham-se unido por um velho costume, que ainda conservamos: fizeram o pacto da fraternidade, e escolheram a moça mais bela e mais virtuosa de toda a região para consagrá-lo.
   "Eu ouvira falar muitas vezes desse belo estranho costume. E agora, a pequenina era minha irmã. Ela ficava sentadinha nos meus joelhos, bem quietinha. Eu colhia flores para ela, e penas das aves dos rochedos. Bebíamos juntos a água do Parnaso. Dormíamos lado a lado, sob o teto de loureiros da cabana, enquanto minha mãe cantava, no inverno, o cântico das lágrimas vermelhas, verdes e de um azul desmaiado. Mas eu ainda não compreendia que era as múltiplas preocupações do meu próprio povo que se refletiam nessas lágrimas.
   " Um dia chegaram três homens, vestido de maneira diferente dos nossos. Eram francônios. Traziam no dorso dos  cavalos camas e barracas, e acompanhavam-nos mais de vinte turcos, todos armados de sabres e fuzis; porque os francônios eram amigos do paxá, e traziam salvo-condutos assinados por ele. Só o que desejavam era ver os nossos montes; e escalar o Parnaso, por entre a neve e as nuvens; e galgar os estranhos penedos escuros; e ver de perto a nossa cabana. Nesta não havia acomodação para eles, e como não podiam também suportar a fumaça que se enovelava lá dentro e irrompia pela porta baixa, aramaram suas barracas no espaço estreito que ficava ao lado. Ali assavam cordeiros e aves, e bebiam vinhos doces e fortes, que os turcos não podiam beber.
    " Quando partiram, acompanhei-os até certo ponto, levando minha irmãzinha Anastácia, segura dentro de uma pele de cabra, e pendurada à costas. Um dos cavalheiros francônios desenhou-nos assim, e no desenho parecíamos vivos. A aparência era a de uma única criatura. Nunca me tinha ocorrido essa ideia, mas o fato é que eu e Anastácia éramos mesmo um único ser: ela estava sempre deitada no meu colo, ou pendente de meus ombros; e quando eu dormia, ela estava sempre nos meus sonhos.
   " Dali a dois dias apareceram outros homens na nossa choça; vinham armados de facões e fuzis, e eram albaneses - homens cheios de audácia, como disse minha mãe. Não se demoraram muito. Minha irmã Anastácia esteve sentada nos joelhos de um deles, e quando se retiraram, faltava uma das moedas de prata do seu cabelo. Aqueles homens enrolavam fumo em tiras de papel e fumavam-no. O mais velho indagou do caminho que deviam seguir, porque estava em dúvidas:---
   " Se cuspo para o ar, na cara me cai; se cuspo para baixo, me fica na barba - disse ele.
   "Mas era preciso escolher um caminho. Partiram, e meu pai acompanhou-os. Logo depois ouvimos tiros e grande barulho. entraram na nossa choça alguns soldados, que nos prenderam a todos, porque os salteadores tinham acampado na nossa casa, e meu pai lhes servira de guia. Vi os cadáveres dos salteadores; vi o cadáver de meu pai, chorei tanto, que adormeci, de cansado. Quando acordei estava na prisão - que não era pior que a nossa choça. Derem-me cebola eu um vinho resinoso, que tiraram de um surrão alcatroado. Em casa, também não tínhamos nada melhor para comer.
   " Não sei quanto tempo estivemos presos, mas creio que passamos ali muitos dias. Quando nos libertaram, era pela sagrada festa da Páscoa. Eu levava Anastácia às costas, porque minha mãe estava doente e tinha de andar muito devagar. Foi longa a caminhada, até que alcançássemos o mar - o Golfo de Lepanto. Entramos na igreja, toda resplandecente de imagens - eram anjos, sobre um fundo dourado. Eram muito lindos; contudo não me pareceu que o fossem mais do que a nossa Anastácia. No centro da igreja estava um ataúde cheio de rosas. Minha mãe contou-me que Nosso Senhor Jesus Cristo jazia dentro dele como uma bela flor. E sacerdote anunciou:
    "- Cristo ressuscitou!
   " E todas as pessoas que ali estavam abraçaram-se. Cada uma tinha na mão um círio aceso; eu também recebi um, e igualmente a pequena Anastácia. Ressoaram então as gaitas de fole; e os homens, de mãos dadas, saíram da igreja, dançando. Lá fora as mulheres assavam o cordeiro da Páscoa. Convidaram-nos, e sentei-me junto da fogueira. Um menino mais velho que eu abraçou-me, deu-me um beijo, e disse:
   "- Cristo ressuscitou!
   " E foi assim que nos encontramos pela primeira vez, eu e Aftânides.
    " Minha mãe era entendida na fabricação de redes de pesca; naquele lugar, junto do mar, esse trabalho dava bons lucros. Assim ficamos muito tempo à beira-mar - à beira daquele belo mar, que tinha gosto de lágrimas, e cujas cores lembravam as lágrimas do cervo - ora vermelho, ora verde, ora azul desmaiado.
    "Aftânides sabia remar; eu estava sentado um dia, com a pequena Anastácia, dentro do barco, que ia deslizando sobre a água como uma nuvem pelos ares. Ao por do sol, tingiam-se as montanhas de um azul mais profundo. As cadeias de picos erguiam-se, umas acima das outras, e lá, na mais distante, via-se o Parnaso, coberto de neve. Ao Sol poente o cimo do monte luzia como ferro em brasa; diria que a luz vinha de dentro, pois muito depois que o sol desaparecera ainda rutilava no ar azul. As brancas aves marinhas roçavam as águas com as asas. E era só aquele ruído que quebrava o silêncio, tão profundo como entre os penhascos de Delfos. Eu, deitado no fundo do barco, tinha Anastácia sobre o peito. Acima de nós já brilhava as estrelas, ainda mais claras que as lâmpadas da nossa igreja. Eram as mesmas estrelas, e ficavam no mesmo lugar, acima de mim, como se ainda me achasse em Delfos, à frente da nossa cabana. Já eu tinha a impressão de estar lá...
    " Nesse instante ouvi o som de um baque na água, e o bote deu uma sacudidela e ficou balançando. Soltei um grande grito: Anastácia caíra à água. Mas, com a mesma rapidez, Aftânides mergulhou atrás dela. Num momento, ergueu-se acima da água e entregou-me a menina. Então nós a despimos, torcemos a roupa da criança e Aftânides fez o mesmo com a sua, depois ambos tornaram a se vestir. Ficamos no barco, até que toda a roupa molhada secasse no corpo; e ninguém soube do susto que passamos por causa da minha irmãzinha adotiva, de cuja vida dali em diante Aftânides também participava.
   " Chegou o verão. O sol era tão ardente que a folhagem das árvores murchou. Lembrava-me dos nossos frescos montes e da água tão fria que lá bebíamos. Também minha mãe tinha saudades da montanha, e um belo dia partimos de volta.
   "Que sossego, que silêncio! Atravessamos campos cobertos de tomilho, ainda cheiroso, apesar de crestado pelo ardor sol. Não encontramos nenhum pastor; não vimos  cabana alguma. Tudo era tão calmo e solitário. Apenas uma estrela cadente lembrou-nos que lá no céu a vida continuava. Minha mãe fez fogo e assou cebolas, que levara. Eu e minha irmãzinha dormimos no meio do tomilho,     sem medo algum do temível Smidraki, o papão grego, que deita fogo pela boca, nem do lobo ou chacal. Minha mãe estava sentada a nosso lado, e para mim era proteção suficiente.
   "Chegamos à nossa antiga morada; mas a cabana era um montão de ruínas, e tivemos de reconstruí-la. Algumas mulheres ajudaram minha mãe, e em poucos dias se erguiam as paredes, cobertas pelo teto de eloendro. Minha mãe tecia estojos para garrafas, de peles e cascas de árvores; e eu guardava o rebanho dos sacerdotes. Anastásia e algumas tartarugas pequeninas eram os meus companheiros de brinquedos.
  " Um dia apareceu o nosso caro Aftânides, que vinha visitar-nos Sentira muitas saudades, e resolvera ir passar conosco dois dias.
   " Voltou daí um mês, e contou-nos que queria viajar; seguiria em um navio que ia a Patras e Corfu; mas antes quisera despedir-se de nós. Trouxera um grande peixe para minha mãe; sabia muitas histórias, não só dos pescadores do Golfo de Lepanto, mas de reis e heróis que tinham outrora dominado a Grécia, como os turcos a dominavam agora.
    "Vi como a roseira deita um botão, e como este em alguns dias desenvolve, e se transforma em flor; e a flor desabrocha antes que eu pudesse pensar quão grande, bela e vermelha seria ela. Assim foi com Anastácia. Era agora uma moça, e eu um robusto rapagão. As cobertas da cama de minha mãe e de Anastácia eram peles do lobo que eu arrancara do corpo das feras, depois de matá-las a tiro.
   " Passaram-se anos. Eis que uma tarde aparece Aftânides - esbelto como um caniço, vigoroso e crestado do sol. Beijou-nos a todos; e contou da vastidão do mar, e das fortificações de Malta, e dos esquisitos túmulos dos egípcios. Tudo aquilo nos parecia maravilhoso, como uma lenda dos sacerdotes; e eu o olhava com uma espécie de reverência.
   " - Quanta coisa aprendeste! - disse-lhe eu. - E como sabes contar!
    " - Mas noutro tempo tu me contaste coisa muito melhor do que tudo isso - respondeu ele. - Contaste uma coisa que jamais me saiu da memória: o belo costume antigo, do pacto de amizade. Gostaria de observar esse costume...Meu irmão, vamos à igreja. Anastácia, que é a moça mais bela e mais pura, consagrará a união. Nenhum povo no mundo tem costumes mais lindos do que nós, os gregos!
    "Anastácia ficou corada, como uma rosa fresca, e  minha mãe abraçou Aftânides.
   " A uma hora de caminho da nossa cabana, naquele penedo coberto de terra fofa, onde se estende a sombra de alguma árvores, erguia-se a igrejinha. Uma lâmpada de prata ardia em frente ao altar.
   "Vesti minha melhor roupa; o saio branco caía-me em largas pregas sobre os quadris. O gibão vermelho ajustava-se ao corpo, sem uma ruga. A borla do meu fêz era de prata, e levava no cinturão, facas e pistolas. Aftânides vestia um traje azul, como usam os marinheiros gregos. Pendia-lhe ao peito uma medalha, com a imagem de Nossa Senhora. Cingia-o uma banda de grande valor, daquelas que só usam os grande senhores. Todos sabiam, ao ver-nos, que íamos para alguma cerimonia.
    " Entramos na pequenina igreja solitária. Os raios do sol poente, penetrando pela porta, iluminavam a lâmpada  acesa e as imagens multicolores, postas sobre fundo dourado. Ajoelhamos nos degraus do altar, enquanto Anastácia se colocava à nossa frente. Um longo e amplo vestido leve e solto, cobria-lhe o belo corpo. Adornava-lhe o alvo pescoço, caindo sobre o peito, uma corrente feita de moedas antigas e novas, que formavam uma gargantilha. O cabelo um pequeno toucado de moedas de ouro e de prata, encontradas nos templos antigos. Nenhuma moça grega possuiu jóias mais belas. O rosto resplandecia, e os olhos eram duas estrelas.
   "Rezamos todos, em silêncio; depois ela perguntou:
   " - Quereis ser amigos para a vida e para a morte?
   "- Sim! - respondemos.
   " - Quereis, suceda o que suceder, guardar sempre na lembrança estas palavras: Meu irmão faz parte de mim; minha felicidade, meu segredo são seus; abnegação, resistência, tudo quanto em mim houver, lhe pertence, tanto com a mim próprio?
   " E nós repetimos: SIM.
    " Ela uniu nossa mãos, beijou-nos a fronte, e tornamos a rezar em silêncio. Então entrou o sacerdote, pela porta que fica junto ao altar, e abençoou-nos a todos. E de lá detrás da parede do altar,       ergue-se um hino, cantando por um coro de homens. E estava concluído o pacto de eterna amizade. Quando nos erguemos, vi minha mãe, que soluçava à porta da igreja.
   " Que alegria reinava na nossa cabana, à margem das fontes de Delfos! Na véspera da partida de Aftânides, estava ele sentado, pensativo, a meu lado, na escarpa do rochedo. Seu braço cingia-me o corpo, e eu o abraçava pelo pescoço. Falamos da miséria da Grécia, e dos homens em quem ela poderia confiar. Cada pensamento íntimo aparecia-nos nitidamente a ambos. Por fim peguei na mão Aftânides:
   " - Há ainda outra coisa que deve saber; uma coisa que até agora só eu e Deus conhecíamos. Minha alma inteira está cheia de amor! Um amor mais forte do que o que sinto por minha mãe e por ti!
   " - E a quem é que tu amas? - perguntou Aftânides, que corara intensamente, até as orelhas, até o pescoço.
  "- Amo Anastácia.
   " A mão dele tremia na minha. Ficou pálido como um morto. Vi isso e compreendi tudo. Creio que minha mão também tremia. Curvei-me para ele, beijei-lhe a fronte, e disse baixinho:
   " - Eu nunca lhe disse uma única palavra. Pode ser que ela não me ame...Lembra-te, meu irmão: vejo-a todos os dias; ela se criou a meu lado: é una com a minha alma!
   "- E ela deve ser tua - disse ele. - Tua! Não, não quero mentir-te! Eu também a amo. Mas amanhã partirei. Daqui a um ano, voltarei, e então estarão casados, não é? Tenho comigo algum dinheiro, fica tu com ele; deves aceitá-lo!
   "Em silêncio caminhamos pelos rochedos. Era noite cerrada quando chegamos à choça de minha mãe. Anastácia ergueu a lâmpada, quando entramos. Minha mãe não estava ali. Ela lançou sobre Aftânides um olhar cheio de uma tristeza maravilhosa, dizendo-lhe:
   " - Amanhã nos vais deixar, não é ? Como isso me entristece!
    " - A ti também? - exclamou ele.
   " E pareceu-me que havia naquelas palavras uma dor tão grande como a minha. Achava-me incapaz de falar; mas ele pegou na mão de Anastácia e disse:
   "- Nosso irmão ama-te. Sei o que ele representa para ti. Seu silêncio é prova do seu amor.
   "Anastácia estremeceu, e seus olhos se umedeceram. Naquele momento eu só a ela via, só pensava nela. Cingi-lhe os ombros com os braços, e disse-lhe:
   " - Sim, amo-te!
   " Abraçando-me, ela uniu a sua boca à minha. A lâmpada caíra ao chão. E ao redor de nós pairavam trevas - como no coração do pobre Aftânides.
  " Ergue-se ele do leito ao romper do dia. Deu-nos a todos o beijo de despedida e foi-se.
   "Entregara à minha mãe o dinheiro que nos destina.
  "Anastácia era minha noiva, e poucos dias depois era minha mulher." 
FIm