Achavam-se lado a lado, em uma caixa de brinquedos, um pião e uma bola,
- Por que não havemos de nos casar? - perguntou o pião - pois que teremos de viver sempre juntos...
Mas a bola, que estava toda recoberta de um belo marroquim, e não era menos orgulhosa que uma moça de alta estirpe, nem se deu o trabalho de responder.
No dia seguinte o menino, dono dos brinquedos, lembrou-se de pintar o pião de vermelho e amarelo, e ainda o adornou com uma ponta de latão, bem novinha. Quando o pião girava, era só um brilhar de cores magnífico.
- Olha para mim - dizia ele à bola. - Que dizes agora? Não vamos casar? Somos feitos um para o outro: tu saltas, eu danço. Quem poderia ser mais feliz do que nós?
- Que ideia! Parece-te isso? Não sabes então que meus pais eram soberbas pantufas de marroquim, e que meu corpo é de cortiça espanhola? - Pois sim, pois sim - replicou o pião - mas eu também, olha que sou todo de cedro! O autor de meus dias não é mais nem menos que o burgomestre da cidade em pessoa. Nas hora de lazer ele se diverte em tornear toda a espécie de coisas bonitas, e eu sou a sua obra-prima.
É mesmo verdade o que dizes? - perguntou a bola, já mais adocicada.
- Nunca mais menino algum me dê corda, se estou mentindo!
- Tens muita habilidade para te fazeres valer. Mas escuta lá, isso é impossível. Estou já mais ou menos prometida a um lindo pássaro. Cada vez que voo pelos ares ele espicha a cabeça para fora do ninho e me faz uma declaração de amor. Cá dentro, prometi a mim mesma casar com ele, já há muito tempo, e somos meio noivos. Não posso, portanto, aceitar os teus galanteios; mas dou muito apreço aos teus sentimentos, e prometo-te que jamais te esquecerei.
- Já é alguma coisa, sem dúvida - suspirou o pião, pesaroso - mas isso não basta para me consolar.
Foram as última palavras que trocaram. No dia seguinte o menino pegou na bola e atirou-a ao ar. Ela voava como um passarinho. O pião perdeu-a de vista, por um momento.
Voltou de novo, para ser outra vez impelida. Cada vez que ela tocava a terra, dava um salto surpreendente, ou porque quisesse pular até o ninho do pássaro, ou porque a isso a compelia a cortiça espanhola.
Da nona vez que saltou ficou pelo caminho: ninguém a viu mais. O menino procurou-a, procurou-a por todos os lados. Não pode descobrir o menor rasto dela: tinha desaparecido.
- Bem sei onde está ela - disse o pião, suspirando.
- A esta hora já estão casados!
E quanto mais pensava nisso, mais sofria. Nunca sentira tanto amor pela bola, como agora, que não podia mais vê-la. E o seu maior desgosto era saber que ela casara com outro.
Entretanto, continuava o pião a dançar e a fazer ronrom. Mas pensava sempre na bola, que na sua imaginação parecia cada vez mais encantadora. Afinal aquilo veio a acabar no que se chama uma paixão antiga.
O pião já não era mais moço. Um belo dia douraram-no todo, para algum novo menino. Jamais ele se vira tão brilhante. Era lindo, vê-lo girar, e circular, e reluzir como um sol. E que lindo ronrom, quando dançava! Ah! Se a bola tivesse podido vê-lo agora...
De repente topa com uma pedra e salta longe. E adeus, pião! Sumira-se, eclipsara-se! Procuraram-no por toda a parte, até no porão, onde afinal podia ter caído por alguma gateira. E nada. Não foi encontrado.
Onde tinha ido parar o pião? Na cesta do lixo, entre a poeira, as cascas de batatas e de cebolas, os talos de couve, e outros resíduos não muito limpos.
- Estou bem aviado! - disse consigo. - E que vai ser agora dos meus belos dourados? Ah! Mas que é isto? Quem é esta gentalha que me cerca?
Olhou em roda e avistou um talo de couve muito feio e uma coisinha redonda que parecia uma batata velha: era uma bola, que passara anos e anos na goteira do telhado e estava ainda toda encharcada da água da chuva.
- Louvado seja Deus! - disse ela, quando viu o pião dourado. - Ora afinal encontro gente da minha categoria, com quem poderei conversar. Aqui onde me vês, sou feita de cortiça da Espanha, e toda coberta de marroquim, e quem me coseu foi uma bela moça. Sim, de fato, ainda que o não apareça. Estava a ponto de casar com um lindo pássaro, quando fui lançada em uma goteira do telhado, e lá fiquei cinco anos. Aí! Como a chuva me deixou inchada! Que feia fiquei! O que te posso afirmar é que aquilo era um suplício cruel, para uma donzela de boa família, como eu!
O pião nada disse. Pensava no seu antigo amor, e adivinhava que era quele o objetivo que tanto o inflamara nos anos de sua mocidade.
Chegou a criada. Foi despejar a cesta do lixo.
- Olá! - exclamou ela, vendo o pião dourado.
Pegou nele e levou-o às crianças. E o pião recobrou a antiga glória.
Quanto à bola, foi atirada à rua.
O pião nunca mais falou na sua velha paixão. Quando viu a bola inchada da água da chuva toda enrugada e hororosa, fingiu que não a reconhecia.
FIM
Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.